A RAZÃO DE SER PADRE
Tendência desde cedo
Ordenado padre em 1929, passa a assinar o nome com um ponto de exclamação à frente. “Ele próprio se admira de vir a ser padre, de mudar de vida, já depois dos 30 anos, quando estava bem na vida”. Mas a vontade já era muito anterior e só não tinha avançado por respeito à decisão do pai, que queria o filho voltado para os negócios.
Os tempos e as mentalidades eram outros. “O Padre Américo enquadra-se numa zona norte em que há um maior vínculo à propriedade, uma zona onde há condições para o desenvolvimento industrial, mas na qual agricultura é então quase familiar, pelo que as pessoas dependem muito da terra”.
A cidade do Porto é o centro para o qual convergem os produtos agrícolas. Ali chegam também os produtos de África e do Brasil, onde viviam muitos emigrantes portugueses.
O pai de Américo estava ligado à agricultura. Tinha várias herdades na zona de Penafiel e fez inclusive parte da Junta de Penafiel. Américo solicita seguir a carreira eclesiástica. “O pai sempre lhe negou essa possibilidade e ele, por respeito, seguiu esse conselho”.
Era o mais novo de oito irmãos. Um dos irmãos, José Monteiro de Aguiar, era padre, esteve na Índia. Foi um grande historiador e um arqueólogo. Outros familiares seus eram religiosos. Por isso, a sua vontade inicial dificilmente se perderia.
Vai no entanto para o Porto, onde se inscreve no Instituto do Comércio e Indústria. Estuda à noite e trabalha de dia. Então muitas pessoas rumavam a África. Américo, que já lá tinha um irmão, parte. Tinha 16 anos e já que não podia seguir a via sacerdotal, ruma à aventura em 1906 e só regressará em 1923.
REGRESSO. A mãe de Américo morrera em 1913. O pai sucumbira em 1921. O impedimento para ser padre chegava agora da hierarquia da Igreja. Tinha mais de 30 anos e o Bispo do Porto nega-lhe a entrada. Vai para o Convento de Vilariño da Ramalhosa, em Tuy, que pertencia à Ordem Franciscana portuguesa, embora estivesse em território espanhol.
Possivelmente, queria ser missionário e regressar a África. Mas a rigidez da ordem e o seu feitio irrequieto não combinam. A clausura imperava e nem sequer poderia auxiliar um pobre, em 1925 foi convidado a sair porque não serviria para aquilo.
Entra em Coimbra, a pedido do irmão e de outras pessoas que o conheciam. O próprio Bispo estava receoso, mas mais tarde, quando a obra se iniciou e se desenvolveu reconheceu que não havia motivos para essa apreensão. E é em Coimbra, com as colónias para crianças, que tudo começa.
“A ideia era recuperar fisicamente e mentalmente as crianças que viviam em ambientes degradantes, levando-as para zonas montanhosas à volta de Coimbra, para Penela, Penacova, para Miranda do Corvo. As colónias continuam sob sua responsabilidade de 1935 até 39 e 40. Depois são continuadas por outros padres da rua.
É aqui que vai buscar a ideia do auto-governo. No primeiro e segundo anos organiza toda a colónia, onde conta com o apoio de voluntários, alguns deles estudantes da universidade. Mas nos anos seguintes, já são os mais velhos que iam na colónia que serão os monitores. Uma passagem do testemunho que se manteve todos os anos de Maio a Setembro, altura em que funcionavam as colónias.
“Isto é o início do auto-governo que ele depois vai instalar na Casa do Gaiato. Aliás, ainda hoje, nas casas do Gaiato, quem manda lá não é o padre da rua. O padre é a figura espiritual. Quem manda é o chefe maioral, ou seja, os chefes nomeados pelo chefe de cada uma das casas de família”. Num mesmo espaço há diversas casas, de acordo com as idades dos jovens. Cada casa tem um chefe e um
sub-chefe.
DIVERSIDADE. Estavam lançadas as bases da Casa do Gaiato. Nas colónias ajudavam-se algumas crianças, muitas delas com problemas alimentares, proporcionava-se a inter-relação, existiam espaços naturais, culturais, desportivos, entre outros.
Este ambiente comunitário que apelava também à recuperação moral “fazia desenvolver relações de tal ordem fortes que perduram até mesmo depois de saírem de lá. E daí as reuniões que fazem periodicamente, onde se encontram os antigos com os actuais gaiatos, estejam noutros países da Europa ou cá, não faltam”.
Ernesto Candeias Martins destaca por isso este aspecto do ambiente, do amor e do carinho, da palavra amiga e orientadora, através do qual se pode reeducar. Era o caminho da liberdade responsável. Ao ponto de uma vez o padre Américo pedir a um gaiato de 14 anos que telefonasse ao ministro a pedir um vagão de trigo, porque não tinham que comer.
“Esse gaiato ainda está vivo. É o chefe de redacção do jornal. E foi telefonar para o secretário de Estado a dizer que necessitava do vagão. A secretária não passou a chamada. Mas quando ele disse que falava com a incumbência do Padre Américo ele foi atendido. E o Governo enviou o vagão”.
Também muitos gaiatos levaram cheques e dinheiro que davam à obra e que o Padre Américo lhes pedia para depositarem no banco, no Porto, que ficava a 30 quilómetros de Paço de Sousa. Era uma responsabilidade e uma confiança que as crianças nunca tinham tido, nem a pedido das próprias famílias, quando as
tinham.
JOSÉ CRISANTO, PROFESSOR
NA FIGUEIRA DA FOZ
Da Casa do Gaiato para
a vida
“Tive as minhas mãos, nas mãos de um Santo”. É assim que José Roque Crisanto, 60 anos, docente de história na Escola EB 2/3 João de Barros, na Figueira da Foz, começa por recordar o conhecimento e a amizade que travou com Padre Américo. Natural do Orvalho, Castelo Branco, José Crisanto foi para a Casa do Gaiato de Miranda do Corvo, aos 11 anos. “Não porque existisse por parte dos meus pais falta de posses extremas, mas sim porque aquela era a única forma de eu ir para o Seminário estudar”, lembra.
E assim, em 1950 José Crisanto partiu para a mais importante aventura da sua vida. “Estive quatro anos no Seminário da Figueira da Foz. Terminei o curso e continuei na Casa do Gaiato”. Sobre o Padre Américo, a quem carinhosamente os rapazes das Casas do Gaiato chamavam de Pai Américo, aquele docente diz tê-lo conhecido pessoalmente. “Infelizmente estive com ele uns dias antes da sua morte. Era um homem único. O seu processo de beatificação está praticamente pronto. Sabe que os santos são homens muito especiais. E ele era assim”, recorda José Crisanto. “Quando eu estava em Miranda do Corvo, sempre que ele lá se deslocava eram momentos de grande alegria. Sabe era um santo que aparecia por ali”, acrescenta.
A relação de Padre Américo para os rapazes das Casas do Gaiato eram, na opinião de José Crisanto, “uma relação de pais para filhos. Nós só o chamávamos de pai Américo. A pedagogia do Padre Américo baseava-se na Família, Deus e no Trabalho. Ou seja, o conhecimento do Senhor Deus, a família e o trabalho. Todos nós tínhamos uma função, por mais pequena que ela fosse”.
É com alguma saudade, mas com uma grande dose de orgulho de pertencer à família da Casa do Gaiato, que José Crisanto recorda o tempo que passou em Miranda do Corvo, onde também foi chefe daquela estrutura. “Houve um dia que o Padre Américo foi a Miranda do Corvo, e como eu era o chefe da Casa chamou-me e apertou as minhas mãos. Depois disse-me, afinal é verdade o que dizem a teu respeito, tens calos nas mãos, é sinal que trabalhas. Por isso eu digo muitas vezes que já tive as mãos, nas mãos de um santo”.
A filosofia de vida dentro das Casas do Gaiato mantém-se idêntica àquela que Padre Américo preconizou para aquelas instituições. “Era, e é, uma vida de oração, de trabalho, de família. Todos nós tínhamos uma função, desde os mais pequenos aos mais velhos. E não me digam que isso é exploração, porque eu não o aceito. Arrumar uma casa ou varrer uma rua não é exploração de trabalho”.
Quando terminou o curso no Seminário, José Crisanto teve a oportunidade de regressar a casa, mas optou por ficar na Casa do Gaiato. “Liguei-me de tal maneira à Casa do gaiato, que por lá fiquei. Estive em Miranda do Corvo e depois em Setúbal. Fiz o Magistério Primário, mais tarde licenciei-me em História e só saí da Casa do Gaiato no dia em que me casei em Miranda do Corvo”.
Aos 60 anos, lembra os momentos vividos naquelas que foram as suas casas durante parte da sua infância e juventude, com orgulho e sem qualquer tipo de preconceito. “Para mim a Casa do Gaiato significou tudo. Ainda hoje sou fã da Casa do Gaiato. Conheço muitas obras de beneficência, sou professor e lido muito de perto com as crianças, pelo que considero a Casa do Gaiato como uma estrutura única e actual”.
A sua ligação com a Casa do Gaiato e com a obra do Padre Américo mantém-se. “Aqui na Figueira da Foz, sou o responsável pela realização da tradicional festa da Casa do Gaiato. A minha ligação com a casa do Gaiato era feita através do padre Horácio, que faleceu há dias, mas continuo a dar o meu apoio à obra, pois considero-a importante e actual. A sua pedagogia continua a ser a mais correcta. Infelizmente é uma obra que ainda continua a ser necessária. Era bom que não fosse, pois significava que não havia problemas”.
José Crisanto foi chefe da Casa do Gaiato em Mirando do Corvo, Coimbra e em Setúbal. É aquilo a que hoje chama de “baptismo de fogo. As responsabilidades eram grandes, pois substituía o Padre sempre que ele não estava, marcava os trabalhos de cada um e estava sempre directamente ligado aos rapazes”. Aos 60 anos, José Crisanto seguiu a filosofia de vida aprendida na Casa do Gaiato. É casado com a vereadora do Partido Socialista, na Câmara da Figueira da Foz, e tem dois filhos já licenciados. “Toda aquela metodologia aprendida foi importante”.
Dos seus antigos colegas, lembra que muitos conseguiram tirar cursos superiores, outros viraram empresários. “Dentro do possível mantemos contactos uns com os outros, através da Associação dos Antigos Gaiatos. No próximo dia 17 de Setembro vamos homenagear o padre Horácio, que agora comemorava os seus 50 anos como elemento da Casa do Gaiato. Tínhamos tudo preparado para lhe fazer uma homenagem ainda em vida, o que não foi possível. Mas no dia 17, em Miranda do Corvo, vamos fazer-lha na
mesma”.
ATACAR AS CAUSAS DA
POBREZA
A
obra da rua
CANDEIAS MARTINS
Américo:
Padre!
PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
O
rumo de uma obra
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