Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano III    Nº29    Julho 2000

 

Investigação

ATACAR AS CAUSAS DA POBREZA

A obra da rua


O Padre Américo pode ser considerado um “educador social que não fez formação pedagógica nem filosófica, mas que tinha uma grande capacidade intuitiva, e que desenvolve uma filosofia de acção muito própria; acarreta ideais, valores religiosos e morais, que depois vai canalizando para a prática”.

A sua obra, embora se lhe reconheça valor e impacto, não traria hoje nada de novo às pedagogias e conceitos teóricos vigentes. Mas o interesse passa por analisar a acção do educador no tempo preciso que vai dos anos 30 aos anos 50. Isto, em Portugal, porque na África lusófona actual, procura-se a integração social para superar bolsas de pobreza.

“Em Moçambique, as casa do Gaiato têm a função de ajudar as populações a integrar-se, não só pelo trabalho e pela cooperação, mas também proporcionando uma interajuda e uma solidariedade entre as pessoas. Uma padaria comunitária, por exemplo, pode produzir pão para sete ou 10 povoações”.

Por cá, há 50 e 60 anos atrás, o Padre Américo tentou desenvolver, ainda que de forma diferente, a integração. Considerava que cada paróquia se devia responsabilizar pelos seus pobres. “Isso é uma revolução no seu tempo. É por isso que digo que o Padre Américo, no seu tempo, foi um revolucionário de forma pacífica”.

DUALIDADE. Segundo Ernesto Candeias Martins, a preocupação do Padre Américo com a evolução social está “vinculada à sua espiritualidade activa. É um indivíduo que se serve de uma dualidade oração/acção. Oração porque deve ser entendido como o homem do silêncio, mas também como o homem do diálogo”.

O silêncio é algo de interior que dirá respeito à sua aproximação ao sagrado, à reflexão, à meditação. “Muitas vezes encontrava o Padre Américo lá na Igreja de Paço de Sousa, retirado, com a mão na cabeça, a meditar, logo de manhanzinha”, recordam os gaiatos daquele tempo em resposta a um questionário enviado pelo professor albicastrense.

Depois ia para o Porto, para a zona da Foz, porque, “tinha que ir ver como estavam os pobres ou a construção de casas ou moradias para serem entregues”. É aqui que entra a acção e o diálogo, refere Ernesto Candeias Martins. Assim, oração e acção, meditação e diálogo estão ligados. “O diálogo pressupõe encontro e o Padre Américo desenvolve uma verdadeira filosofia do encontro”.

O encontro não era porém com pessoas ditas normais ou com pessoas influentes na sociedade. “São encontros com aqueles que a sociedade quer esquecer. E aí é que está a grande valorização do seu pensamento. Ele vai ao encontro deles para tentar dar uma consolação moral ou espiritual, mas para resolver, possivelmente, a primeira grande prioridade, que era material”.

Para isso, vai pedir ajuda às pessoas e entrega depois os objectos que as pessoas tinham necessidade. Um cobertor, uma cama, fruta, ou outros. As solicitações eram muitas vezes feitas através do jornal e depois as pessoas entregavam as doações em locais próprios ou enviavam-nos de comboio.

AUTO-GOVERNO. Candeias Martins considera assim que “o padre Américo é um homem de acção que se serve do diálogo, mas ataca as causas. Fez por isso uma política social que remetia para uma incapacidade por parte do Governo”.

Ainda assim, o Governo de ditadura sempre coabitou com a situação, até porque a situação lhe interessava. “Foi um caminheiro de lés a lés, da África às Ilhas, contacta as realidades. Sente o sofrimento da pessoa, mas não fica só por uma consolação espiritual ou moral. Vai resolver o problema. E quem é que faz calar uma via destas?”.

Já no final de 48, em Coimbra, num discurso público, dirige-se aos agentes da Pide, da censura dizendo-lhes: “«estou a dizer a verdade. Querem-me levar preso por dizer a verdade? O que não me fazem é calar daquilo que é a aflição das pessoas». Ele tinha consciência disso”. Que era um padre diferente.

Mas não interessava aos outros padres que existisse um «padre diferente». “Alguns padres pediam as congras para fazerem algo e não faziam. Aquele fazia. Pedia a solidariedade das pessoas mas fazia”.

Como a maior parte do clero se acomodava, custava-lhe então ouvir que cabia aos padres encontrar soluções para auxiliar os pobres da sua paróquia. Porque o Padre Américo dizia-o abertamente. “Teve muitos problemas de início, mas depois os padres vão aderindo, por exemplo ao projecto do Património dos Pobres, que está espalhado de norte a sul”.

AMBIENTE. Ainda hoje existem muitos bairros que foram feitos no âmbito do Património dos Pobres, cujas casas tinham condições boas para o seu tempo. “A condição é que o bom ambiente estivesse sempre presente. As moradias tinham só um piso, mas o jardim e o quintal existiam”. Eram estas casas que serviriam de lar àqueles que eram retirados de ambientes degradantes, de álcool e prostituição, de mendigos.

A verdade é que se alguns padres aderiam, os problemas não terminavam por aí. O Governo exigia-lhe a prestação de contas, o que ele sempre se negou a fazer por considerar que uma obra com as características da sua não poderia apresentar contas. “Ele ia no comboio ou na rua e as pessoas davam-lhe uma ajuda para os gaiatos. Como é que isso se contabilizava?”.

Em 1952 tem o primeiro processo nesse âmbito. Então já o seu grande admirador, o ministro das Obras Públicas, Duarte Pacheco, importante membro do Governo, falecera. Perante a obrigatoriedade, o Padre Américo perguntava como é que um pai de família contabilizava o que dava aos seus filhos. E pede ao secretário de Estado que visitasse a Casa do Gaiato para saber como viviam.

Já então tinha terminado a II Guerra Mundial há algum tempo. E quando o movimento sindical esperava uma maior abertura, a repressão cresceu. A trilogia Deus-Pátria-Família é mais forte que nunca. Américo, padre diferente, tem uma trilogia diferente.

A trilogia passava pelo Trabalho, porque todas as casas do Gaiato têm oficinas para os gaiatos aprenderem a trabalhar ou um ofício. A outra vertente era a Capela, para a educação religiosa, e então a Escola. Escola que o governo salazarista defende com os planos de alfabetização de 51 a 53.

“Mas o Padre Américo, quando funda a primeira casa em 1940, em Miranda do Corvo, coloca lá uma escola e uma regente. Combate a analfabetização, enquanto que o Governo salazarista só o faz mais tarde, por pressões externas e para lavar a cara de Portugal”. Américo preocupava-se mais com a pessoa humana, com a sua formação, e a grande maioria dos gaiatos concluiu lá a 4ª classe. Depois, muitos prosseguiram estudos.

 

CANDEIAS MARTINS

Américo: Padre!


Teorizar o pensamento do Padre Américo a partir da acção que aquele “trabalhador social” desenvolveu em Portugal até à sua morte em 1956. Este foi um dos principais objectivos de Ernesto Candeias Martins (na foto), professor da Escola Superior de Educação de Castelo Branco, que acaba de terminar a sua tese de doutoramento, na Universidade das Ilhas Baleares.

A dissertação do quarto professor da ESE de Castelo Branco a conseguir o doutoramento, teve como tema a “Perspectiva Social e Ambiental da Obra da Rua. Contributos Pedagógicos do Padre Américo”. O júri foi constituído por quatro professores espanhóis e um português, atribuiu a pontuação máxima ao trabalho, além de o nomear para os prémios extraordinários da universidade.

Ao todo, são mais de mil e 500 páginas acerca de um tema pouco investigado em Portugal, pelo menos no que diz respeito à teorização do padre Américo. Um trabalho de investigação desenvolvido ao longo de sete anos, no âmbito do qual foram realizadas dezenas de entrevistas e recolhidas dezenas de fotos alusivas a uma obra que esteve sempre à frente do tempo.

A tese de Ernesto Candeias Martins pretende definir algo que o Padre Américo nunca fez: estruturar o pensamento que esteve na base do desenvolvimento de uma obra ímpar, ao humanismo, à axiologia, a um personalismo e a um naturalismo pedagógico que sempre foram demonstrados pelo Padre Américo.

Ao longo da investigação, aquele professor procurou enquadrar a acção no tempo, um tempo de muitas dificuldades, de muitos bairros degradados e famílias desfeitas. O Governo não avança com medidas, mas o Padre Américo fá-lo.

O sucesso esteve e está à vista. Dos 120 gaiatos entrevistados nesta investigação, sendo que todos estiveram na Casa do Gaiato ainda em vida do Padre Américo, 85 por cento estão bem na vida familiar, social e profissional, além de terem um zelo especial na educação dos seus filhos. “O que sou devo-o à Casa do Gaiato”, dizem muitos deles.

Casa do Gaiato que ainda hoje existe e funciona, mantendo o seu sistema de auto-governo. Muitos gaiatos saíram, alguns ficaram e ainda hoje continuam a chegar mais gaiatos. A Casa do Gaiato foi evoluindo. O Jornal do Gaiato também e será mesmo na sua tipografia que a tese de Ernesto Candeias Martins será publicada.

Uma tese inspirada no conhecimento que Candeias Martins teve da obra, desde criança, através do jornal O Gaiato. Hoje a sua tese funciona também como uma forma de demonstrar a justiça na canonização do Padre Américo. O processo está elaborado e chegou ao Vaticano em 1995. Até hoje ainda não obteve qualquer resposta. Mas o País espera que ela chegue depressa.

 

 

 

A RAZÃO DE SER PADRE

Tendência desde cedo

 

JOSÉ CRISANTO, PROFESSOR NA FIGUEIRA DA FOZ

Da Casa do Gaiato para a vida

 

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS

O rumo de uma obra

 


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