Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XIII    Nº145    Março 2010

Entrevista

RUI RANGEL, JUIZ-DESEMBARGADOR

Falta disciplina e autoridade nas escolas

Com a Justiça sempre no topo da actualidade, Rui Rangel é das personalidades ligadas ao sistema mais escutadas. O juiz-desembargador e presidente da Associação dos Juízes pela Cidadania entende que o segredo de justiça é a lei mais violada do país. Sobre a corrupção, diz que deve ser investigada «até ao osso» e aponta o dedo ao poder político por falta de vontade para combatê-la. Rangel afirma ainda que a escola, transformada em depósito permanente de alunos, tem de voltar ser amiga dos estudantes. Sobre os casos de indisciplina o magistrado é partidário, caso a lógica pedagógica fracasse, da penalização criminal.
 

Preside à Associação dos Juízes pela Cidadania (AJpC) que tem como principal objectivo reabilitar a imagem da Justiça. Não acha que é um objectivo utópico?

Não creio, mas acho que viver de utopia nunca fez mal a ninguém. Veja o seguinte: o modelo democrático não se esgota nos partidos políticos, e precisa dos valores da cidadania para aumentar a sua transparência. O lema da AJpC é «somar e construir» e não dividir e subtrair no seio da magistratura, contribuindo com ideias, projectos de lei e análise legislativa, tendo por base uma lógica virada para o cidadão. Não temos nenhum preconceito do ponto de vista corporativo e se nos apresentarem medidas que ataquem interesses das corporações, mas que sejam correctas para o modelo de desenvolvimento da Justiça, estaremos na primeira linha para apoiar. O compromisso da AJpC é com o cidadão e com os valores da cidadania. Movimentos desta natureza fazem todo o sentido numa altura em que os portugueses não confiam no sistema político que têm.
 

É justo assacar todas as culpas aos eleitos ou o imobilismo da sociedade civil tem responsabilidades pela situação que vivemos?

A culpa não deve morrer solteira. Os responsáveis políticos não são os culpados de tudo. Os índices de iliteracia e o analfabetismo fazem com que exista uma fraca tendência para a sociedade participar. Não sei se há uma explicação sociológica semelhante ao fado, mas é inegável que os portugueses são pouco reivindicativos, exigem menos ainda e esperam sempre que alguém lhes resolva os problemas. No que diz respeito à componente de responsabilidade cívica, o cidadão tem-se mantido alheado, restringindo a sua participação aos actos eleitorais em função do ciclo político.
 

Qual é a principal lacuna do sistema judicial?

A morosidade é o problema que motiva os cidadãos a afastarem-se da sua Justiça, mas a questão da confiança e do prestígio assume uma importância fundamental. O poder político actual criou uma lógica de conflitualidade permanente entre vários órgãos de soberania, promovendo uma cultura que é preciso «quebrar a espinha» às corporações e introduzindo na cena política portuguesa um discurso de colisão permanente com as instituições – neste caso, com os tribunais, um inestimável parceiro de soberania.
 

No que é que se traduziu essa conflitualidade?

Tudo começou com as férias judiciais. Passou-se a mensagem de desprestígio que; os juízes tinham férias em excesso e não trabalhavam. Quatro anos depois o Governo recuou, colocando o diploma quase no ponto inicial. As questões da Justiça têm de ser tratadas no recato da soberania, com bom senso. Se isto não for feito, a opinião pública é contaminada e as corporações saem beliscadas. A lógica adversarial tem de acabar na Justiça nacional. Não há Estado de Direito nenhum que funcione e nenhuma economia que prospere se a Justiça estiver em permanente crise e agitação. O ex-ministro da Justiça, com a conivência do Primeiro-Ministro, urdiu uma lógica de confrontação gravíssima e gratuita que levará anos a ser reparada.
 

Basicamente foi o mesmo que aconteceu no braço de ferro entre o Ministério da Educação e os professores…

A lógica foi a mesma: é preciso acabar com as corporações. Primeiro atacou-se os médicos, depois os professores e, finalmente, os juízes.
 

O segredo de justiça tem estado na ordem do dia. Como explica que não haja inquéritos conclusivos sobre a sua sistemática violação?

A regra é a publicidade dos processos mas, consoante o seu andamento, o Ministério Público ou o juiz podem sujeitá-los a patamares de segredo. Acontece que o legislador teve falta de sensibilidade ao não perceber que isto não pode ser feito genericamente, nomeadamente nos processos da criminalidade económica e financeira. Aqui os níveis de segredo devem ser outros. Eu defendo dois regimes. É certo que o segredo de justiça é a lei mais violada em Portugal, mas discordo com os que defendem a sua abolição completa. Há virtualidades que devem ser salvaguardadas. Agora o Ministério Público tem uma enorme responsabilidade nesta matéria porque os processos mais violados são os mais mediáticos. Todos os dias há centenas de processos pelos tribunais do país que correm bem.
 

De quem parte, normalmente, a violação?

Estou cansado de ver só jornalistas a serem responsabilizados nos tribunais pela violação do segredo de justiça. É preciso que os inquéritos apurem quem são os responsáveis de dentro do sistema. Porque eles existem e não vi nenhum ser responsabilizado.
 

Pensa que a violação do segredo de justiça serve para encobrir incompetências?

Serve para tapar debilidades e ineficiências dos investigadores, quer da Polícia Judiciária, quer dos magistrados do Ministério Público, os principais agentes pelo rumo da investigação.
 

O sociólogo António Barreto disse ao «Expresso» que «há pessoas na magistratura a ganhar fortunas e a vender informação em segredo de justiça». Como reage?

É uma acusação gravíssima. Ao dizer isto tem de o provar. Respeito a craveira intelectual do António Barreto, mas não é admissível que ele ache que há uns «bandidos», é essa expressão usada por ele, na magistratura do Ministério Público e judicial que andam a ganhar muito dinheiro com a violação do segredo de justiça. O que é denunciado é um crime público e segundo sei que há pedidos para que a Procuradoria-Geral da República investigue a fundo essas declarações.
 

É deitar mais achas para uma fogueira já muito incendiada…

Repare o que está aqui em jogo: está a atacar-se a «jóia da coroa» que é a honestidade intelectual da magistratura. Ataquem-nos por sermos morosos, por sermos incapazes, por sermos incompetentes, mas não questionem a nossa integridade! No dia em que a corrupção entrar no domínio das magistraturas é a desgraça completa. Agora se há corruptos na magistratura, que se acuse e que se identifiquem os culpados. Insinuações sem prova é que não.
 

Por falar em corrupção, tem defendido uma luta sem quartel. Defende uma operação «mãos limpas» como aconteceu em Itália?

Não no sentido do termo de ser uma operação que pode indiciar um «governo de juízes», mas é preciso fazer algo com convicção. Antes de mais não tem havido coragem política para combater a corrupção que é um fenómeno que mina os alicerces do Estado, a partir do complexo triângulo formado pelas autarquias, poder central e poder do cimento. Acarreta prejuízos gravíssimos ao Estado e quem paga é o cidadão. E não estou a falar da corruptela, mas da verdadeira corrupção. Há muito por investigar e, de preferência, até ao osso, como eu costumo dizer. As leis existem. Falta a vontade e os meios para as aplicar.
 

Criticou num artigo recente a «ineficiência larvar» do DCIAP do Ministério Público. Falta de meios aliada a alguma incompetência explicam o estado do sistema judicial?

O DCIAP funcional mal, está deficientemente estruturado e pior coordenado. É verdade que há falta de meios e investigadores, mas isso não explica tudo. Os DCIAP’s têm nas mãos os grandes processos e carecem de reorganização urgente. Não basta dizer: «está a ser investigado». O que os cidadãos querem é resultados. É preciso sangue novo. Com todo o respeito, creio que a procuradora Cândida Almeida já cumpriu o seu caminho no DCIAP…
 

O Procurador-Geral da República tem estado no olho do furacão, multiplicando-se em declarações avulsas e algo contraditórias. Esta exposição não é um sinal de insegurança?

O Procurador-Geral da República não se pode expor em vão e em qualquer lugar. Pensava que Pinto Monteiro ia num rumo diferente do seu antecessor, Souto de Moura. Sinto alguma fragilidade na sua posição. Há um aspecto fundamental: as magistraturas têm de saber comunicar, abrindo-se à comunicação social séria e responsável que se movimenta nos corredores dos tribunais. De uma vez por todos, a Justiça tem de saber o local e o tempo certo para falar com os «media».
 

Quer dar exemplos de falhas na comunicação protagonizadas por agentes do sistema judicial?

O caso «Face Oculta», por exemplo. Se a Justiça soubesse comunicar tinha logo diminuído o ruído em torno do caso. Infelizmente; nem o presidente do Supremo Tribunal de Justiça, nem o próprio PGR souberam comunicar e quando o fizeram foi tardiamente e abusaram das intervenções na rua, à saída de uma conferência, à entrada para um espectáculo. É inconcebível o presidente do Supremo estar ao mesmo tempo nas três televisões. Não pode ser. Dá má imagem.
 

Faz sentido falar em politização da Justiça?

A alegada contaminação política dos processos refere-se apenas a uma percentagem residual dos mesmos. Todos os dias são julgados, acusados, pronunciados, milhares e milhares de processos e ninguém diz que existe politização. Ainda subsiste uma cultura que acha que a Justiça é só para os «descamisados» e que não deveria chegar aos ditos «intocáveis». Não estamos habituados a que a Justiça penetre pelos desígnios dos responsáveis políticos que eventualmente estejam a ser investigados. E sucede isto: se a Justiça investiga é porque está politizada, se a Justiça não investiga, é porque há cidadãos de primeira e de segunda. Admito que haja essa percepção por parte da opinião pública e da comunicação social, mas afirmar assim, sem mais, que a Justiça está politizada, sem fundamentar e sem demonstrar cabalmente, é um chavão. Por isso é que o Ministério Público tem uma responsabilidade fundamental em dar resposta rápida a estes processos.
 

Sobre os Códigos Penal e do Processo Penal, pensa que temos uma boa legislação para aplicar?

Temos uma legislação excessiva, avulsa e de péssima qualidade. A Assembleia da República não tem sido boa legisladora nas matérias para a área da Justiça. Qualquer pessoa legisla. Muitos consultores de ministérios que produzem leis nem sequer são licenciados em Direito. Não se faz um estudo sobre o impacto negativo ou positivo da legislação e, pior, abusa-se da importação de legislação externa, sem verificar a compatibilidade entre ordenamentos, colocando em risco a harmonização do sistema jurídico.
 

Legisla-se ao sabor de uma dificuldade, como dizia um conhecido penalista?

É mais ou menos isso. No Estado Novo a produção legislativa era muito mais responsável e reflectida. Fazer uma lei por dá cá aquela palha dilata a malha para a criminalidade. Legisla-se por tudo e a propósito de tudo, numa voragem incontrolável. Qualquer ministro da Justiça que se senta na cadeira do poder só quer ter um código com o seu nome. O legado é deixar o seu nome estampado numa reforma para a posteridade. Veja o caso da passagem da prisão preventiva de 3 para 5 anos. Foi uma medida que visou aliviar as cadeias, tendo sido criticada pela AJpC em tempo oportuno, mas acabou por agravar o sentimento de insegurança. Agora, percebido o erro, a prisão preventiva foi reposta no patamar dos 3 anos. Devo realçar que a Unidade de Missão foi trágica para a Justiça. Mas neste país as pessoas mesmo fazendo disparates, são compensadas: é o caso do actual ministro da Administração Interna, Rui Pereira, que coordenou essa Unidade e recebeu o prémio por isso. Estou a lembrar-me de outra medida trágica para a Justiça em Portugal, a acção executiva, da responsabilidade da então ministra da Justiça, Celeste Cardona, que também recebeu um prémio, passando a integrar a administração da Caixa Geral de Depósitos.
 

Pelo que descreve não é só a falta de qualidade das leis, mas pura incompetência…

Quando não se consegue resolver o problema dentro do sistema, cria-se uma coisa chamada desjudicialização. Na acção executiva há milhares e milhares delas paradas. O processo de inventário é outra desgraça. Estes dois exemplos que lhe dei são actos de juiz. A penhora com remoção de bens da casa de um cidadão tem um efeito intrusivo na vida privada das pessoas e não pode ser decidida por um solicitador que verdadeiramente não dá garantias de imparcialidade e independência. Tem de ser um tribunal soberano a determinar. Chamo a atenção para a lógica que está em curso de privatização da Justiça. É inadmissível.
 

O bastonário da Ordem dos Advogados prossegue a sua «cruzada» contra os juízes, acusando-os de terem uma postura de majestades e de conspirarem contra o Primeiro-Ministro. Trata-se de uma guerra pessoal?

O bastonário Marinho Pinto acerta em muito do que diz, mas depois falha por excesso de demagogia e generalizações. Concordo com ele quando diz que há juízes que cultivam uma visão majestática do exercício da sua função e que essa interpretação faça com que entendam que não têm que dar explicações ao seu concidadão. Quanto às suas recentes declarações sobre a alegada conspiração de juízes contra o Primeiro-Ministro, elas entroncam naquilo que eu designo a liturgia do «achismo», em que todos entendem que podem achar algo sobre isto ou sobre aquilo. O pior é quando o «achismo» acha coisas do género que o poder judicial quer derrotar o Primeiro-Ministro só porque a Justiça está a investigar o líder do governo. Eu continuo a confiar na separação de poderes.
 

Os juízes são formados no Centro de Estudos Judiciários (CEJ). Os magistrados da nova geração são mais sensíveis à nova e cada vez mais especializada criminalidade?

Eu sou um crítico do CEJ, acho até que devia fechar para balanço. Este governo viu recusados 9 convites para dirigir esta instituição devido à sua falta de credibilidade. Estou em desacordo completo com a sua gestão e com a forma como as pessoas são escolhidas para lá ministrar aulas. Continuam a recrutar-se professores segundo a lógica do amiguismo. Eu posso ser um grande juiz e ser um péssimo professor, sem qualquer capacidade pedagógica para transmitir os conhecimentos. Para além disso, rejeito a visão escolástica que continua a perpassar. O CEJ é uma escola de formação e não pode ser uma continuidade da universidade, a avaliar pela própria estrutura curricular que apresenta. Tem de ter uma visão mais pragmática do exercício da Justiça.
 

Qual é o perfil do juiz do futuro?

O contexto em que um juiz opera, hoje em dia, é complexo, devido à sociedade da comunicação em que vivemos, a lógica avassaladora da criminalidade económico-financeira e a permanente evolução do conhecimento. O CEJ e as universidades têm de absorver os novos saberes. É preciso olhar para os sinais que vêm do exterior. Sem actualização face a novos mundos no domínio da investigação o juiz ou o magistrado do Ministério Público não têm competência para actuar. Trata-se de uma profissão de desgaste rápido que exige uma formação contínua a sério e não apenas para marcar o ponto.
 

Que opinião genérica tem sobre o sistema de ensino em Portugal?

Com preocupação. Sou pai, tenho um filho que está a concluir um curso superior. Foram cometidos muitos erros que eu classificaria de trágicos: descredibilizou-se e retirou-se força e autoridade ao papel do professor em Portugal muito por culpa da massificação destes profissionais e promoveu-se um excesso de horários e disciplinas para ocupar os alunos. Os estudantes perderam a motivação para irem para a escola que tem de voltar a ser amiga do aluno. A lógica do confronto pelo confronto entre Ministério e professores também não ajudou. Isto já sem falar da ânsia de avaliar o ensino à luz de estatística, em detrimento do critério da aquisição de conhecimentos.
 

Indisciplina e falta de autoridade são duas chagas do sistema. Esta face negativa do sistema tem no «bullying» a sua demonstração mais recente com os casos do Leandro, em Mirandela e do professor de música de Rio de Mouro. Falta punir em tempo útil os comportamentos desviantes?

O problema é que os exemplos não vêm de cima. Vivemos numa sociedade de quebra de auto-estima, de pouco respeito, fraca responsabilidade e escassa disciplina. As escolas têm um défice terrível de disciplina e autoridade e estão formatadas para serem depósitos permanentes de estudantes. Os estabelecimentos de ensino são estruturas físicas frias e qualquer situação que escape ao domínio da aula, o caso do «bullying», podem não ser perceptíveis. Os casos relatados na imprensa são arrepiantes. Aqui também importa não inocentar os pais. A casa e a família são determinantes em toda a dinâmica escolar. Sempre que não for possível debelar este fenómeno pela via pedagógica, evidentemente que tem que haver uma penalização, até do ponto de vista criminal. Não devemos ter medo das palavras. Se não for de outra maneira, terá de se enveredar pela lógica punitiva.

Nuno Dias da Silva
 

 

 


Cara da Notícia

Rui Rangel é juiz-desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. É Mestre em Direito na área de Ciências Jurídico-Comerciais, pela Faculdade de Direito da Universidade Católica de Lisboa, que concluiu com Distinção em Julho de 1999. Licenciou-se em 1981 na Faculdade de Direito de Lisboa. Exerceu funções de docência na FDL em Direito Processual Civil, de 1981 a 1983. Foi secretário-geral da Associação Sindical de Juízes Portugueses. Tem diversos livros publicados, entre os quais, “Os Princípios Fundamentais do Processo Civil Declaratório”,“A Legitimidade Processual” e o “O Registo da Prova: a Motivação das Sentenças Civis no Âmbito da Reforma do Processo Civil e as Garantias Fundamentais do Cidadão”. Tem escrito diversos artigos de opinião publicados em órgãos de imprensa escrita, nomeadamente no “Público”, “Expresso” e “Jornal de Notícias” e participou igualmente em diversos debates televisivos e radiofónicos, sobre temas ligados ao Direito, independência do Poder Judicial e investigação criminal em Portugal, reformas do Direito Processual Civil, entre outros. Actualmente escreve uma coluna semanal no «Correio da Manhã» intitulada «Estado das coisas».
 

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