RUI RANGEL,
JUIZ-DESEMBARGADOR
Falta disciplina e
autoridade nas escolas

Com a Justiça sempre no topo da
actualidade, Rui Rangel é das personalidades ligadas ao sistema mais
escutadas. O juiz-desembargador e presidente da Associação dos Juízes
pela Cidadania entende que o segredo de justiça é a lei mais violada do
país. Sobre a corrupção, diz que deve ser investigada «até ao osso» e
aponta o dedo ao poder político por falta de vontade para combatê-la.
Rangel afirma ainda que a escola, transformada em depósito permanente de
alunos, tem de voltar ser amiga dos estudantes. Sobre os casos de
indisciplina o magistrado é partidário, caso a lógica pedagógica
fracasse, da penalização criminal.
Preside à Associação dos Juízes pela
Cidadania (AJpC) que tem como principal objectivo reabilitar a imagem da
Justiça. Não acha que é um objectivo utópico?
Não creio, mas acho que viver de utopia nunca fez mal a ninguém. Veja o
seguinte: o modelo democrático não se esgota nos partidos políticos, e
precisa dos valores da cidadania para aumentar a sua transparência. O
lema da AJpC é «somar e construir» e não dividir e subtrair no seio da
magistratura, contribuindo com ideias, projectos de lei e análise
legislativa, tendo por base uma lógica virada para o cidadão. Não temos
nenhum preconceito do ponto de vista corporativo e se nos apresentarem
medidas que ataquem interesses das corporações, mas que sejam correctas
para o modelo de desenvolvimento da Justiça, estaremos na primeira linha
para apoiar. O compromisso da AJpC é com o cidadão e com os valores da
cidadania. Movimentos desta natureza fazem todo o sentido numa altura em
que os portugueses não confiam no sistema político que têm.
É justo assacar todas as culpas aos
eleitos ou o imobilismo da sociedade civil tem responsabilidades pela
situação que vivemos?
A culpa não deve morrer solteira. Os responsáveis políticos não são os
culpados de tudo. Os índices de iliteracia e o analfabetismo fazem com
que exista uma fraca tendência para a sociedade participar. Não sei se
há uma explicação sociológica semelhante ao fado, mas é inegável que os
portugueses são pouco reivindicativos, exigem menos ainda e esperam
sempre que alguém lhes resolva os problemas. No que diz respeito à
componente de responsabilidade cívica, o cidadão tem-se mantido alheado,
restringindo a sua participação aos actos eleitorais em função do ciclo
político.
Qual é a principal lacuna do sistema
judicial?
A morosidade é o problema que motiva os cidadãos a afastarem-se da sua
Justiça, mas a questão da confiança e do prestígio assume uma
importância fundamental. O poder político actual criou uma lógica de
conflitualidade permanente entre vários órgãos de soberania, promovendo
uma cultura que é preciso «quebrar a espinha» às corporações e
introduzindo na cena política portuguesa um discurso de colisão
permanente com as instituições – neste caso, com os tribunais, um
inestimável parceiro de soberania.
No que é que se traduziu essa
conflitualidade?
Tudo começou com as férias judiciais. Passou-se a mensagem de
desprestígio que; os juízes tinham férias em excesso e não trabalhavam.
Quatro anos depois o Governo recuou, colocando o diploma quase no ponto
inicial. As questões da Justiça têm de ser tratadas no recato da
soberania, com bom senso. Se isto não for feito, a opinião pública é
contaminada e as corporações saem beliscadas. A lógica adversarial tem
de acabar na Justiça nacional. Não há Estado de Direito nenhum que
funcione e nenhuma economia que prospere se a Justiça estiver em
permanente crise e agitação. O ex-ministro da Justiça, com a conivência
do Primeiro-Ministro, urdiu uma lógica de confrontação gravíssima e
gratuita que levará anos a ser reparada.
Basicamente foi o mesmo que
aconteceu no braço de ferro entre o Ministério da Educação e os
professores…
A lógica foi a mesma: é preciso acabar com as corporações. Primeiro
atacou-se os médicos, depois os professores e, finalmente, os juízes.
O segredo de justiça tem estado na
ordem do dia. Como explica que não haja inquéritos conclusivos sobre a
sua sistemática violação?
A regra é a publicidade dos processos mas, consoante o seu andamento, o
Ministério Público ou o juiz podem sujeitá-los a patamares de segredo.
Acontece que o legislador teve falta de sensibilidade ao não perceber
que isto não pode ser feito genericamente, nomeadamente nos processos da
criminalidade económica e financeira. Aqui os níveis de segredo devem
ser outros. Eu defendo dois regimes. É certo que o segredo de justiça é
a lei mais violada em Portugal, mas discordo com os que defendem a sua
abolição completa. Há virtualidades que devem ser salvaguardadas. Agora
o Ministério Público tem uma enorme responsabilidade nesta matéria
porque os processos mais violados são os mais mediáticos. Todos os dias
há centenas de processos pelos tribunais do país que correm bem.
De quem parte, normalmente, a
violação?
Estou cansado de ver só jornalistas a serem responsabilizados nos
tribunais pela violação do segredo de justiça. É preciso que os
inquéritos apurem quem são os responsáveis de dentro do sistema. Porque
eles existem e não vi nenhum ser responsabilizado.
Pensa que a violação do segredo de
justiça serve para encobrir incompetências?
Serve para tapar debilidades e ineficiências dos investigadores, quer da
Polícia Judiciária, quer dos magistrados do Ministério Público, os
principais agentes pelo rumo da investigação.
O sociólogo António Barreto disse ao
«Expresso» que «há pessoas na magistratura a ganhar fortunas e a vender
informação em segredo de justiça». Como reage?
É uma acusação gravíssima. Ao dizer isto tem de o provar. Respeito a
craveira intelectual do António Barreto, mas não é admissível que ele
ache que há uns «bandidos», é essa expressão usada por ele, na
magistratura do Ministério Público e judicial que andam a ganhar muito
dinheiro com a violação do segredo de justiça. O que é denunciado é um
crime público e segundo sei que há pedidos para que a Procuradoria-Geral
da República investigue a fundo essas declarações.
É deitar mais achas para uma
fogueira já muito incendiada…
Repare o que está aqui em jogo: está a atacar-se a «jóia da coroa» que é
a honestidade intelectual da magistratura. Ataquem-nos por sermos
morosos, por sermos incapazes, por sermos incompetentes, mas não
questionem a nossa integridade! No dia em que a corrupção entrar no
domínio das magistraturas é a desgraça completa. Agora se há corruptos
na magistratura, que se acuse e que se identifiquem os culpados.
Insinuações sem prova é que não.
Por falar em corrupção, tem
defendido uma luta sem quartel. Defende uma operação «mãos limpas» como
aconteceu em Itália?
Não no sentido do termo de ser uma operação que pode indiciar um
«governo de juízes», mas é preciso fazer algo com convicção. Antes de
mais não tem havido coragem política para combater a corrupção que é um
fenómeno que mina os alicerces do Estado, a partir do complexo triângulo
formado pelas autarquias, poder central e poder do cimento. Acarreta
prejuízos gravíssimos ao Estado e quem paga é o cidadão. E não estou a
falar da corruptela, mas da verdadeira corrupção. Há muito por
investigar e, de preferência, até ao osso, como eu costumo dizer. As
leis existem. Falta a vontade e os meios para as aplicar.
Criticou num artigo recente a
«ineficiência larvar» do DCIAP do Ministério Público. Falta de meios
aliada a alguma incompetência explicam o estado do sistema judicial?
O DCIAP funcional mal, está deficientemente estruturado e pior
coordenado. É verdade que há falta de meios e investigadores, mas isso
não explica tudo. Os DCIAP’s têm nas mãos os grandes processos e carecem
de reorganização urgente. Não basta dizer: «está a ser investigado». O
que os cidadãos querem é resultados. É preciso sangue novo. Com todo o
respeito, creio que a procuradora Cândida Almeida já cumpriu o seu
caminho no DCIAP…
O Procurador-Geral da República tem
estado no olho do furacão, multiplicando-se em declarações avulsas e
algo contraditórias. Esta exposição não é um sinal de insegurança?
O Procurador-Geral da República não se pode expor em vão e em qualquer
lugar. Pensava que Pinto Monteiro ia num rumo diferente do seu
antecessor, Souto de Moura. Sinto alguma fragilidade na sua posição. Há
um aspecto fundamental: as magistraturas têm de saber comunicar,
abrindo-se à comunicação social séria e responsável que se movimenta nos
corredores dos tribunais. De uma vez por todos, a Justiça tem de saber o
local e o tempo certo para falar com os «media».
Quer dar exemplos de falhas na
comunicação protagonizadas por agentes do sistema judicial?
O caso «Face Oculta», por exemplo. Se a Justiça soubesse comunicar tinha
logo diminuído o ruído em torno do caso. Infelizmente; nem o presidente
do Supremo Tribunal de Justiça, nem o próprio PGR souberam comunicar e
quando o fizeram foi tardiamente e abusaram das intervenções na rua, à
saída de uma conferência, à entrada para um espectáculo. É inconcebível
o presidente do Supremo estar ao mesmo tempo nas três televisões. Não
pode ser. Dá má imagem.
Faz sentido falar em politização da
Justiça?
A alegada contaminação política dos processos refere-se apenas a uma
percentagem residual dos mesmos. Todos os dias são julgados, acusados,
pronunciados, milhares e milhares de processos e ninguém diz que existe
politização. Ainda subsiste uma cultura que acha que a Justiça é só para
os «descamisados» e que não deveria chegar aos ditos «intocáveis». Não
estamos habituados a que a Justiça penetre pelos desígnios dos
responsáveis políticos que eventualmente estejam a ser investigados. E
sucede isto: se a Justiça investiga é porque está politizada, se a
Justiça não investiga, é porque há cidadãos de primeira e de segunda.
Admito que haja essa percepção por parte da opinião pública e da
comunicação social, mas afirmar assim, sem mais, que a Justiça está
politizada, sem fundamentar e sem demonstrar cabalmente, é um chavão.
Por isso é que o Ministério Público tem uma responsabilidade fundamental
em dar resposta rápida a estes processos.
Sobre os Códigos Penal e do Processo
Penal, pensa que temos uma boa legislação para aplicar?
Temos uma legislação excessiva, avulsa e de péssima qualidade. A
Assembleia da República não tem sido boa legisladora nas matérias para a
área da Justiça. Qualquer pessoa legisla. Muitos consultores de
ministérios que produzem leis nem sequer são licenciados em Direito. Não
se faz um estudo sobre o impacto negativo ou positivo da legislação e,
pior, abusa-se da importação de legislação externa, sem verificar a
compatibilidade entre ordenamentos, colocando em risco a harmonização do
sistema jurídico.
Legisla-se ao sabor de uma
dificuldade, como dizia um conhecido penalista?
É mais ou menos isso. No Estado Novo a produção legislativa era muito
mais responsável e reflectida. Fazer uma lei por dá cá aquela palha
dilata a malha para a criminalidade. Legisla-se por tudo e a propósito
de tudo, numa voragem incontrolável. Qualquer ministro da Justiça que se
senta na cadeira do poder só quer ter um código com o seu nome. O legado
é deixar o seu nome estampado numa reforma para a posteridade. Veja o
caso da passagem da prisão preventiva de 3 para 5 anos. Foi uma medida
que visou aliviar as cadeias, tendo sido criticada pela AJpC em tempo
oportuno, mas acabou por agravar o sentimento de insegurança. Agora,
percebido o erro, a prisão preventiva foi reposta no patamar dos 3 anos.
Devo realçar que a Unidade de Missão foi trágica para a Justiça. Mas
neste país as pessoas mesmo fazendo disparates, são compensadas: é o
caso do actual ministro da Administração Interna, Rui Pereira, que
coordenou essa Unidade e recebeu o prémio por isso. Estou a lembrar-me
de outra medida trágica para a Justiça em Portugal, a acção executiva,
da responsabilidade da então ministra da Justiça, Celeste Cardona, que
também recebeu um prémio, passando a integrar a administração da Caixa
Geral de Depósitos.
Pelo que descreve não é só a falta
de qualidade das leis, mas pura incompetência…
Quando não se consegue resolver o problema dentro do sistema, cria-se
uma coisa chamada desjudicialização. Na acção executiva há milhares e
milhares delas paradas. O processo de inventário é outra desgraça. Estes
dois exemplos que lhe dei são actos de juiz. A penhora com remoção de
bens da casa de um cidadão tem um efeito intrusivo na vida privada das
pessoas e não pode ser decidida por um solicitador que verdadeiramente
não dá garantias de imparcialidade e independência. Tem de ser um
tribunal soberano a determinar. Chamo a atenção para a lógica que está
em curso de privatização da Justiça. É inadmissível.
O bastonário da Ordem dos Advogados
prossegue a sua «cruzada» contra os juízes, acusando-os de terem uma
postura de majestades e de conspirarem contra o Primeiro-Ministro.
Trata-se de uma guerra pessoal?
O bastonário Marinho Pinto acerta em muito do que diz, mas depois falha
por excesso de demagogia e generalizações. Concordo com ele quando diz
que há juízes que cultivam uma visão majestática do exercício da sua
função e que essa interpretação faça com que entendam que não têm que
dar explicações ao seu concidadão. Quanto às suas recentes declarações
sobre a alegada conspiração de juízes contra o Primeiro-Ministro, elas
entroncam naquilo que eu designo a liturgia do «achismo», em que todos
entendem que podem achar algo sobre isto ou sobre aquilo. O pior é
quando o «achismo» acha coisas do género que o poder judicial quer
derrotar o Primeiro-Ministro só porque a Justiça está a investigar o
líder do governo. Eu continuo a confiar na separação de poderes.
Os juízes são formados no Centro de
Estudos Judiciários (CEJ). Os magistrados da nova geração são mais
sensíveis à nova e cada vez mais especializada criminalidade?
Eu sou um crítico do CEJ, acho até que devia fechar para balanço. Este
governo viu recusados 9 convites para dirigir esta instituição devido à
sua falta de credibilidade. Estou em desacordo completo com a sua gestão
e com a forma como as pessoas são escolhidas para lá ministrar aulas.
Continuam a recrutar-se professores segundo a lógica do amiguismo. Eu
posso ser um grande juiz e ser um péssimo professor, sem qualquer
capacidade pedagógica para transmitir os conhecimentos. Para além disso,
rejeito a visão escolástica que continua a perpassar. O CEJ é uma escola
de formação e não pode ser uma continuidade da universidade, a avaliar
pela própria estrutura curricular que apresenta. Tem de ter uma visão
mais pragmática do exercício da Justiça.
Qual é o perfil do juiz do futuro?
O contexto em que um juiz opera, hoje em dia, é complexo, devido à
sociedade da comunicação em que vivemos, a lógica avassaladora da
criminalidade económico-financeira e a permanente evolução do
conhecimento. O CEJ e as universidades têm de absorver os novos saberes.
É preciso olhar para os sinais que vêm do exterior. Sem actualização
face a novos mundos no domínio da investigação o juiz ou o magistrado do
Ministério Público não têm competência para actuar. Trata-se de uma
profissão de desgaste rápido que exige uma formação contínua a sério e
não apenas para marcar o ponto.
Que opinião genérica tem sobre o
sistema de ensino em Portugal?
Com preocupação. Sou pai, tenho um filho que está a concluir um curso
superior. Foram cometidos muitos erros que eu classificaria de trágicos:
descredibilizou-se e retirou-se força e autoridade ao papel do professor
em Portugal muito por culpa da massificação destes profissionais e
promoveu-se um excesso de horários e disciplinas para ocupar os alunos.
Os estudantes perderam a motivação para irem para a escola que tem de
voltar a ser amiga do aluno. A lógica do confronto pelo confronto entre
Ministério e professores também não ajudou. Isto já sem falar da ânsia
de avaliar o ensino à luz de estatística, em detrimento do critério da
aquisição de conhecimentos.
Indisciplina e falta de autoridade
são duas chagas do sistema. Esta face negativa do sistema tem no «bullying»
a sua demonstração mais recente com os casos do Leandro, em Mirandela e
do professor de música de Rio de Mouro. Falta punir em tempo útil os
comportamentos desviantes?
O problema é que os exemplos não vêm de cima. Vivemos numa sociedade de
quebra de auto-estima, de pouco respeito, fraca responsabilidade e
escassa disciplina. As escolas têm um défice terrível de disciplina e
autoridade e estão formatadas para serem depósitos permanentes de
estudantes. Os estabelecimentos de ensino são estruturas físicas frias e
qualquer situação que escape ao domínio da aula, o caso do «bullying»,
podem não ser perceptíveis. Os casos relatados na imprensa são
arrepiantes. Aqui também importa não inocentar os pais. A casa e a
família são determinantes em toda a dinâmica escolar. Sempre que não for
possível debelar este fenómeno pela via pedagógica, evidentemente que
tem que haver uma penalização, até do ponto de vista criminal. Não
devemos ter medo das palavras. Se não for de outra maneira, terá de se
enveredar pela lógica punitiva.

Nuno Dias da Silva
Cara da Notícia
Rui Rangel é
juiz-desembargador do Tribunal da Relação de Lisboa. É Mestre em
Direito na área de Ciências Jurídico-Comerciais, pela Faculdade de
Direito da Universidade Católica de Lisboa, que concluiu com
Distinção em Julho de 1999. Licenciou-se em 1981 na Faculdade de
Direito de Lisboa. Exerceu funções de docência na FDL em Direito
Processual Civil, de 1981 a 1983. Foi secretário-geral da Associação
Sindical de Juízes Portugueses. Tem diversos livros publicados,
entre os quais, “Os Princípios Fundamentais do Processo Civil
Declaratório”,“A Legitimidade Processual” e o “O Registo da Prova: a
Motivação das Sentenças Civis no Âmbito da Reforma do Processo Civil
e as Garantias Fundamentais do Cidadão”. Tem escrito diversos
artigos de opinião publicados em órgãos de imprensa escrita,
nomeadamente no “Público”, “Expresso” e “Jornal de Notícias” e
participou igualmente em diversos debates televisivos e
radiofónicos, sobre temas ligados ao Direito, independência do Poder
Judicial e investigação criminal em Portugal, reformas do Direito
Processual Civil, entre outros. Actualmente escreve uma coluna
semanal no «Correio da Manhã» intitulada «Estado das coisas».

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