CAMILO LOURENÇO,
JORNALISTA
"Produzimos como
pobres
e consumimos como riscos"

O homem que descodifica aos portugueses
as suas dúvidas sobre a economia está pessimista quanto ao futuro de um
País onde as famílias, o Estado e os clubes de futebol vivem acima das
suas possibilidades. Camilo Lourenço afirma que é preciso recuperar a
cultura de poupança, hábito social perdido há 2 gerações, a partir dos
bancos das escolas. Sobre o sistema de ensino, o jornalista aponta que
lhe falta «rigor, seriedade e adaptação à realidade empresarial» e
lamenta que os melhores talentos que saem das faculdades estejam a
abandonar-nos.
A situação económica e financeira é
muito delicada. Era expectável termos chegado a este ponto?
Claro. Há pessoas que teimam em não ver. Recordo-me de dezenas de
artigos escritos por diversos analistas, entre os quais eu me incluo, a
alertar para a necessidade de o Estado não gastar tanto. Lembro-me,
também, do actual Presidente da República, salvo erro em 2003, ter
redigido um artigo em que abordava o problema da despesa pública.
Que problemas eram antecipáveis?
Por exemplo, a degradação da nossa competitividade. Era possível ver
isso à distância. As pessoas e os políticos não quiseram ver. Vão
vivendo bem e pensam que tudo se mantém eternamente.
A nossa integração na União Europeia
é uma almofada de segurança?
Acaba por ser por termos o apoio de outros países. Veja a situação da
Grécia: se não tivesse no Euro estava com o FMI à perna e seria obrigada
a seguir uma dieta ainda mais rigorosa do que a que vai enfrentar.
Acontece que esta espécie de seguro de vida também apresenta
inconvenientes. Partindo do princípio que alguém nos vai salvar, neste
caso a Europa, isso adia decisões difíceis e por isso é que chegámos a
este ponto.
A estratégia de investimentos
públicos é a mais oportuna?
Continuamos a insistir nos disparates, sabendo que mais dia menos dia,
alguém nos pode vir cobrar esta aventura. Estamos a falar em cortar nos
subsídios de desemprego e a prejudicar pessoas que já vivem em situação
deficiente, enquanto se insiste nas auto-estradas e no TGV.
Como explica que sejam os próprios
apelos do Presidente da República a caírem em saco roto?
Acho que o Presidente está a fazer um mau trabalho. Cavaco devia ser
muito mais explícito nas críticas que dirige ao Governo, nomeadamente em
matéria de investimentos públicos. E estou-me marimbando para que o
Presidente esteja a gerir o ciclo eleitoral com vista à sua reeleição, o
que me preocupa é o País.
O ex-Primeiro-Ministro, António
Guterres, utilizou na segunda metade da década de 90 uma expressão que
ficou famosa: «Temos que mudar de vida». Mais de dez anos depois estamos
ainda pior. Ninguém aprende a lição?
Curiosamente o engenheiro Guterres é o principal responsável pelo que
nos está a acontecer. Os disparates maiores verificaram-se durante o seu
governo. Quando o Estado devia apertar o cinto, gastou-se à tripa forra.
O desequilíbrio orçamental teve origem nesse momento. Foi também nessa
altura que o Governo desistiu de alertar os portugueses para os perigos
do endividamento. Lembro-me de ter tido uma conversa em público com o
ministro das Finanças de então, Sousa Franco, chamando-lhe a atenção
para o disparar do consumo privado, ao que ele respondeu que era um
crime não deixar que as pessoas vivessem melhor, ignorando que não
tínhamos economia para suportar as despesas acumuladas. Foi aí que
começámos a viver acima das nossas posses.
O acesso fácil ao crédito permitido
pelos bancos fez o resto e tornou-se uma espécie de vício…
Os bancos fazem o seu negócio. Mas o problema principal está em difundir
uma mensagem facilitista, que se pode viver acima das nossas posses. As
pessoas habituam-se a um determinado estilo de vida e depois é um
sarilho voltar a apertar o cinto. Ninguém quer «passar de cavalo para
burro».
Como se dá a volta a esta situação?
Temos um défice da balança de pagamentos de 10 por cento do PIB há 5
anos. Isto quer dizer que estamos a viver acima das nossas
possibilidades em 10 por cento. As pessoas queixam-se que nunca viveram
tão mal, quando isso é perfeitamente falso. O País tem uma produtividade
de pobre e consumo de rico, sendo que o consumo está a ser alimentado a
crédito. Não pode ser. Ninguém vive eternamente de pedir emprestado.
É sabido que se degradaram
fortemente os hábitos de poupança. Como incutir valores para recuperar
esses hábitos?
Não existe uma cultura de poupança. Esse é um trabalho que tem de ser
feito junto das crianças. As duas últimas gerações não têm a mais
pequena ideia o que é a poupança. Isto é uma atitude que choca com os
registos do passado, porque fomos dos povos da Europa que mais aforrámos
até aos anos 80. Quer dizer que temos que refundar a ideia de que a
prosperidade não nasce do crédito, nasce da poupança. Como dizia um
analista dos mercados financeiros, o objectivo de sermos ricos não
depende do nosso salário, mas antes da nossa relação entre a despesa e a
receita.
Temos sempre a mania de achar que não conseguimos poupar, mas isso não é
verdade. É possível sempre poupar algo, desde que se crie uma
mentalidade do género: eu vou poupar, mensalmente, 5 por cento do meu
salário.
Haverá força de vontade para
interiorizar esse compromisso?
O drama é que se perdeu esse hábito social há duas gerações. É preciso
reintroduzir estes valores a partir da escola primária. Se eu pudesse
introduzia nos currículos da escola primária os ensinamentos básicos
sobre gestão de dinheiro e prolongava isto pelas escolas secundárias,
onde introduzia outro factor esquecido, o empreendedorismo, ou seja, a
necessidade de correr riscos. Os valores do imobilismo e do jogar pelo
seguro, oriundos do salazarismo, ainda estão muito presentes. Erradicar
estes dois conceitos é decisivo para o futuro do País.
A imprensa económica revelou há dias
que uma comitiva com políticos e gestores vai viajar até aos Estados
Unidos para fazer uma operação de charme sobre Portugal. É sinal que a
imagem nacional está pelas ruas da amargura?
É uma forma de vender o país lá fora. Acontece que isto devia acontecer
permanentemente, com coisas novas para vender, e não apenas numa altura
em que Portugal está com uma enorme crise de credibilidade externa.
Corremos o risco de bancarrota?
Risco existe com cada vez maior premência. Os decisores políticos deviam
ter isso em conta. Compreendo que o Primeiro-Ministro queira ficar na
história como o homem que criou o TGV para Madrid, mas o destino
nacional é bem mais importante do que o curriculum do engenheiro
Sócrates.
Costuma dizer-se que somos um País
de brandos costumes. Imagina a reedição aqui das imagens de confrontos e
tensão social como temos vimos na Grécia?
Não. Somos um país mais responsável e mais sério do que os gregos, não
aldrabamos estatísticas como eles fizeram. Agora não é possível negar
que a conflitualidade social vai aumentar em Portugal, a avaliar pelo
número de greves previstas.
Apresenta na TV e na rádio programas
úteis do ponto de vista económico. Qual o segredo para descodificar o
complexo «economês»?
O segredo é falar para as pessoas como se estivéssemos a conversar em
casa ou a uma mesa de café. A economia não é mais do que um jogo de
somar e subtrair. Qual a necessidade que temos de complicar as coisas?
Os conceitos económicos são muito simples.
Que principais dúvidas e questões
são colocadas nos seus programas pelos ouvintes/telespectadores?
O grande receio das pessoas é a sua
reforma, a sua poupança ou o seu salário. É útil dar resposta a essas
dúvidas. E, de alguma forma, sinto que faço nos meus programas serviço
público. Inclusive noto isso não só pelas reacções que tenho no programa
«A Cor do Dinheiro», que dispõe de um serviço de aconselhamento e cuja
utilização tem vindo a ser crescente, bem como nas interpelações que
alguns portugueses, nomeadamente os mais idosos, me fazem na rua.
A economia está na moda. Os jornais
económicos foram dos que mais subiram nas vendas. O canal Económico TV
foi inaugurado há dias. Neste momento, a Economia comanda tudo?
A economia comanda a nossa vida porque mexe com o bolso das pessoas e,
acima de tudo, com o futuro. Imagine o que é o drama para milhares de
portugueses ter a incerteza do que irá acontecer à sua reforma? Uma das
perguntas mais frequentes que nos chegam é: o que acontece aos meus
depósitos se o banco for à falência?
Que outras questões são frequentes
no serviço de aconselhamento de «A Cor do Dinheiro»?
Há duas que ultimamente têm aparecido muito e que são um mau prenúncio:
O Estado pode ir à bancarrota e os certificados de aforro são seguros?
Significa isto que a confiança no Estado é muito baixa. Foi este governo
que «assassinou» os certificados de aforro, o que é pena porque se trata
de um instrumento útil e que cumpre 50 anos de existência.
Os elevados ordenados dos gestores
foram fonte de grande burburinho. Faz sentido o alarido criado ou a
opinião pública tem dois pesos e duas medidas, visto que os jogadores de
futebol, por exemplo, auferem salários ao mesmo nível e não são tão
visados?
A discussão foi empolada. Acho que os salários fixos devem ser baixos,
enquanto os salários variáveis devem ser elevados e fixados em função da
performance de 3 ou 4 anos de uma empresa. Porquê? Para encorajarem os
gestores a fazerem cada vez melhor. Acho ideal se existir uma relação
interessante entre o crescimento de uma empresa, o valor que ela cria e
o salário do gestor. Em muitos aspectos o miserabilismo português acaba
por emergir. Permanecemos agarrados ao conceito de Salazar que somos
pobres e envergonhados e ainda não o perdemos. Não me preocupa nada se o
presidente da EDP, António Mexia, ganha milhares em prémios se,
entretanto, a empresa cresceu bastante.
Os casos BPN e BPP contribuíram para
o descrédito do sector bancário. Como é que o poder político geriu estes
dois processos?
Francamente mal. O caso BPN foi denunciado por mim, em Março 2001,
quando eu dirigi a revista «Exame». O Banco de Portugal e os outros
reguladores demoraram 8 anos a perceber que o banco estava mal? Confesso
que fico preocupado enquanto cidadão.
Pelo facto de o regulador não ter feito o trabalho que lhe competia os
contribuintes vão pagar 2 mil milhões de euros por este disparate
chamado BPN. Quanto ao caso do BPP havia sinais mais do que evidentes
que algo estava mal, com as taxas que estavam a ser pagas, etc. Onde é
que estavam os reguladores? Espero que o próximo governador do Banco de
Portugal, para prevenir futuros casos destes, tenha o mau feitio
suficiente para poder fazer supervisão. Chegámos a isto: ao Banco de
Portugal só resta mesmo a regulação, porque a política monetária e a
taxa de câmbio são feitas em Frankfurt.
É um conhecido benfiquista. Foi
porta-voz do presidente Luís Filipe Vieira na sua corrida ao primeiro
mandato enquanto presidente. Este Benfica é um campeão falido?
Falido entre aspas, porque, apesar de tudo, tem capitais próprios
positivos. Basicamente em Portugal temos clubes mal geridos, exceptuando
o FC Porto, porque alia uma boa gestão desportiva a uma boa gestão
financeira. Os clubes, como o Estado e as famílias, também estão a viver
acima das suas posses. Os três «grandes» têm o chamado «buraco de
caixa». O do Benfica cifra-se entre 14 e 16 milhões de euros, o do FC
Porto é de 20 a 22 milhões e o Sporting de 10 milhões.
A solução para minimizar o défice
orçamental são os direitos televisivos e a venda de jogadores?
No final da temporada é preciso obter receitas, ou vendendo jogadores ou
competindo na Liga dos Campeões. Se estas receitas não forem suficientes
os clubes vão gerando um nível de endividamento que não é suportável por
muito mais tempo.
A Liga dos Campeões é, então, a
galinha dos ovos de ouro?
É a tábua de salvação dos clubes. Proporciona vários níveis de
recompensa monetária, seja pela simples participação, pela passagem às
sucessivas fases da prova ou pelos empates e vitórias obtidos ao longo
da competição. Para além dos direitos televisivos funciona como uma
apetecível montra para depois potenciar a venda dos passes de jogadores
para o estrangeiro.
Como é que os sócios dos clubes
fecham os olhos a contas tão catastróficas?
Os clubes são geridos com o coração e não com a cabeça e os sócios
reagem da mesma maneira. Por exemplo, comprar acções de SAD de clubes é
um mau negócio e só pode ser visto como um acto de caridade.
Estudou nos Estados Unidos. Qual o
paralelo que faz entre a realidade americana e a portuguesa?
Posso dizer-lhe que aprendi mais num ano nos Estados Unidos do que em
toda a minha vida de ensino em Portugal. Cá falta rigor, seriedade e
adequar o ensino à realidade empresarial. Estas três lacunas explicam
tudo. A falta de ligação entre o meio universitário e empresarial é
gritante, com honrosas e insuficientes excepções.
Preocupa-o a fuga de cérebros para o
estrangeiro?
Não estamos a gerar empregos para os talentos que aqui estudam. É normal
que eles se fixem em Madrid ou em Londres. É, de facto, preocupante
saber que estamos a perder bons valores. Estranho ouvir governantes
afirmar que estamos a estancar a saída de cérebros. É mentira. E
frustrante é saber que eles, com a sua capacidade de correr riscos, vão
mudar outros países, quando deviam cá ficar para mudar o que tarda em
ser alterado aqui.
Esse é um problema prioritário?
O País, infelizmente, tem vários problemas e continuamos sem coragem
para os enfrentar. A justiça e a educação são os maiores. Uma empresa
não pode levar 10 anos a falir, porque fica a fazer concorrência desleal
no mercado a outras. Temos de reformar o sector educativo sob pena de
continuar a formar um bando de inúteis para o mercado de trabalho. E,
para começar, no imediato, urge resolver a questão orçamental, com a
interiorização completa e permanente da mensagem que ninguém pode viver
acima das suas posses.
Vislumbra alguma luz ao fundo do
túnel?
Estou muito pessimista. A classe política não tem vontade de tomar um
conjunto de medidas duras. Precisamos de um pacto de regime em que os
dois principais partidos do arco da governação se comprometam a
implementar um naipe de reformas com um horizonte de 5 a 7 anos.
Provavelmente o crescimento económico iria estabilizar para os valores
que ambicionamos.

Nuno Dias da Silva
Pedro Aperta/Jornal de
Negócios
Cara da Notícia
Camilo Lourenço é
jornalista de economia, apresentando programas no Rádio Clube
Português e na RTP-N, para além de comentários no «Bom dia
Portugal», no canal 1 da RTP. «A Cor do Dinheiro» é um programa que
tem na televisão e na rádio. No RCP apresenta ainda, todas as
manhãs, o «Money Box». É colunista diário do «Jornal de Negócios».
Foi editor de economia da Rádio CMR e Rádio Comercial. Começou a sua
carreira no semanário «O Jornal» e «Correio da Manhã» e foi um dos
fundadores do «Diário Económico», tendo sido também redactor
principal do «Semanário Económico». Foi fundador e director da
revista «Valor», de onde saiu para assumir a direcção editorial da
revista «Exame», «Executive Digest», «Turbo», «Exame Informática» e
«Auto Guia». Enquanto docente deu aulas na Universidade Lusíada,
Universidade de Lisboa, ISCEM e leccionou em pós-graduações
diversas. Na escrita, editou no ano passado, «Como esticar o salário
e encurtar o mês». Em termos académicos, licenciou-se em Direito
Económico pela Faculdade de Direito de Lisboa e passou ainda pela
Universidade Católica, Columbia University e University of Michigan,
nos EUA, onde estudou Jornalismo Financeiro e Economia.

seguinte >>>
|