Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XI    Nº120    Fevereiro 2008

Entrevista

FRANCISCO MOITA FLORES

Estado da Educação
é "desgraça terrível para o País"

Desencantado com a política educativa, Moita Flores critica o número de licenciados que o sistema universitário produz, «com a abundância de uma tempestade de granizo», e sai em defesa dos professores, uma classe que diz «humilhada» pelos sucessivos governos. O escritor e autarca preconiza a rotatividade dos titulares de cargos públicos como uma das melhores armas para combater a corrupção, considera que existe uma nova idade do crime, mais sofisticada, em que o «gatuno do estendal» ou o «burlão do conto do vigário» já fazem parte do passado e alerta para a possibilidade de Portugal ser alvo de um ataque terrorista. Sobre o caso Maddie, aponta o dedo ao casal McCann e acredita que um dia saber-se-á toda a verdade...
 

Figura assídua do pequeno ecrã, apareceu com maior regularidade no último ano como comentador do caso Madeleine McCann, defendendo a tese que os pais estariam envolvidos no desaparecimento da menina britânica. Em que é que se encontra fundamentada essa sua convicção?

Não conheço o processo. Mas conheço as estatísticas, centenas de outros casos, comportamentos dos mais próximos a qualquer desaparecido para daí se colocaram muitas dúvidas quanto às explicações do casal McCann. A história começa com uma mentira. Eles abandonaram três crianças indefesas, muito pequenas, e nas primeiras declarações (aquelas que não são ditadas com preparação) afirmaram que estavam a jantar num sítio que poderia ser considerado «o jardim da vivenda», com o quarto à vista. É falso. Os testemunhos dos amigos são todos contraditórios e incompatíveis com os depoimentos de gente independente em relação ao caso.

Depois as estatísticas mostram que a esmagadora maioria dos casos de rapto de crianças dão-se na via pública, em espaços abertos e com muita gente. Ali, no Ocean Club, nas condições relatadas, com outras crianças no quarto, no contexto do próprio parque habitacional, era quase impossível. Finalmente, e mais importante, o móbil do rapto. Não existe. Não houve pedido de resgate, a menina não tem idade para criar o apetite de redes pedófilas, que procuram crianças acima dos oito, nove anos, não é possível admitir que fosse raptada para colheita de órgãos, na medida em que não existe esse mercado na Europa e é fácil e sem grande risco no Oriente ou em África e, que se saiba, também não existe nenhuma vingança política.

Então, qual é o móbil? O que leva alguém a raptar uma criança numa casa fechada, com outras crianças, sabendo-se que só à excepção daquele dia, eram acompanhadas por uma ama? Somando estas perguntas à falta de respostas e contradições dos pais e amigos, não restam dúvidas que a verdade que os pais quiseram impor tem insuficiências graves e que eles não querem corrigir. Digo, não querem porque quando confrontados por jornalistas menos dóceis, não respondem e quando o deveriam ter feito na PJ pediram que fossem constituídos arguidos para terem o direito de não falar.
 

Mostrou-se, desde a primeira hora, indignado pelo facto de os McCann se terem rodeado de uma entourage constituída por assessores profissionais ligados à política. Continua sem ter dúvidas que este caso envolve as mais altas esferas da política e diplomacia britânicas, com a cumplicidade das autoridades portuguesas?

Não me repugna o facto dos pais procurarem por todos os meios encontrar um filho desaparecido. No presente caso reagi mal a outra situação. A entourage de que fala quis impor uma tese. Cercar a polícia com a sua verdade, retirando a esta a sua arma essencial, fazer perguntas. Este cerco, quase asfixiante, bem preparado, condicionou fortemente a actividade da investigação criminal. Limitou diligências, criou uma bateria de informação construída a partir dos assessores e dos pais que expandiu a notícia a nível mundial, mas lançando pistas inconsistentes, fazendo grandes proclamações de fé, mas sem um único contributo para que todos se aproximassem da verdade, mesmo que a verdade fosse o rapto. E depois há essa relação muito íntima com o governo inglês. Está ainda longe de se saber até que ponto a política actuou deliberada ou, numa primeira fase, de boa fé para condicionar este caso. Mas um dia saber-se-á.
 

Se estivermos na presença de um crime sem corpo, este caso ganha macabras semelhanças com o caso Joana, curiosamente ocorrido a poucos quilómetros da Praia da Luz. No caso de este cenário se concretizar, pensa que a imagem da PJ e da Justiça portuguesas ficam fortemente afectadas?

A imagem de qualquer polícia fica afectada quando um caso de forte impacto mediático não é resolvido em tempo útil. Mas é uma perda precária que o tempo ajuda a recuperar com o sucesso noutros casos. Não é possível comparar com o caso Joana, nem com o recente caso Mariluz. Julgamentos de homicídios sem cadáver são mais vulgares do que se pensa, um pouco por todo o mundo e ainda bem. Em Portugal, conheço pelos menos sete casos. A não ser assim, qualquer assassino poderia admitir que bastava fazer desaparecer a sua vítima para se livrar da Justiça.
 

A reforma do Código Penal e do Código do Processo Penal gerou acesa polémica nos operadores judiciários. Diz-se que somos especialistas em elaborar legislação para não ser cumprida. Pensa que as leis são feitas de forma profusa, sem critério e ao sabor de interesses económicos e particulares?

Não tenha dúvidas. Legislamos ao sabor das opiniões e das agendas dos jornais e isso é muito mau. Conduz à ausência de uma estratégia concertada de objectivos a atingir. As reformas a que se refere não são más de todo. Foram atabalhoadas na sua aplicação inicial, possuem algumas lacunas que dificultam a investigação criminal, mas não são dois textos para deitar fora. Precisam de correcções pontuais.
 

As recentes declarações do Bastonário da Ordem dos Advogados agitaram a sociedade portuguesa. Partindo da premissa que não há ninguém preso no nosso País por práticas de corrupção, significa que o crime e o castigo continuam a visar unicamente o «peixe miúdo»? A guerra de “capelinhas” na Justiça portuguesa, nomeadamente entre Ministério Público, Judiciária e magistrados, prejudica o funcionamento do sistema?

As acusações de Marinho Pinto não são novas. Ganham força por serem ditas por um Bastonário, ainda por cima da Ordem dos Advogados. Só os falsos moralistas não se reconhecem nelas. O problema para que o combate aos crimes de corrupção tenha maior taxa de eficácia não resulta de guerras corporativas, que existem, mas que são irrelevantes. É essencialmente um problema de índole política e que a política não quer resolver. Veja a quantidade de deputados que envelhece no Parlamento. Veja a quantidade de autarcas que envelhece à frente das câmaras municipais. Décadas e décadas de compromissos, de clientelismos estáveis, de conformismo inerte. Uma das mais importantes armas do combate à corrupção é a rotatividade. Não permitir que alguém possa dispor de certos cargos públicos mais do que uma ou duas comissões de serviço, mais do que uma ou duas eleições consecutivas. Nem deputados, nem presidentes de câmara, nem vereadores, nem directores gerais, directores de departamentos, nem chefes de divisão pode estar mais do que seis ou oito anos nos lugares que ocupam, sendo imperativa a sua renovação. A médio prazo o problema da corrupção deixaria de ser esta suspeita incessante que atinge culpados e inocentes.
 

Distintos relatórios revelam que a criminalidade não tem aumentado, mas a sofisticação e a violência do delito tem-se incrementado. O desemprego e a pobreza têm exponenciado as condutas delitivas, gerando profissionais a full time no submundo do crime?

Estamos no início de uma nova idade. Os crimes violentos e a criminalidade em geral não têm aumentado em números absolutos, mas modificaram-se nos seus pressupostos qualitativos. Não aumentaram os crimes violentos, mas aumentou a quantidade de violência e a sofisticação. Não aumentaram as infracções económico-financeiras, mas modificou-se estruturalmente a sua complexidade. Não aumentou o crime relacionado com a droga, mas aumentou a organização das redes de tráfico e de branqueamento. É um caminho inevitável. O gatuno de estendal ou o burlão do conto do vigário são quase um achado arqueológico. Assim como os carteiristas que os cartões electrónicos liquidaram. Mas não é possível compreender, e querer viver, numa sociedade mais complexa, mais integrada em maiores territórios, com mais recursos tecnológicos, com maior abertura ao exterior e pensar que os comportamentos criminais não acompanhavam esse desenvolvimento. É um preconceito romântico que confunde a memória das coisas vividas com os desafios da inovação.
 

Como comenta as críticas à alegada actuação musculada da ASAE, um organismo já comparado à PIDE?

Essa comparação à polícia política é um disparate. A ASAE é uma instituição essencial à construção de um país competitivo e de qualidade. Tem de aplicar legislação absurda, verdadeiros disparates e em vez de cair sobre quem legisla o ónus da crítica, é sobre a ASAE. Tem de alterar algumas formas de intervenção, ter uma dimensão mais humanista da aplicação das leis mas é essencial que funcione e funcione bem.
 

Nos seus artigos regulares na imprensa tem criticado o desinvestimento em vários sectores do País, nomeadamente na segurança interna, afirmando que «aqui, as pessoas não contam. Só o défice». Temos razões para temer um ataque terrorista de grande escala ou somos apenas uma base recuada para operações terroristas noutros locais?

Temos razões para temer um ataque terrorista pois fazemos parte dos aliados contra a Al-Qaeda, mas julgo que a ameaça sobre Portugal é bem menor do que contra os países da linha da frente, como são os Estados Unidos, a Grã-Bretanha, a Espanha e a Itália. Quanto aos investimentos na política de segurança, não passam de operações de cosmética. Sobretudo no que respeita à investigação criminal, toda dispersa em «ilhas», sem coordenação nem meios de actuação.
 

Justiça e Educação são os dois maiores fracassos dos quase 34 anos de democracia que levamos?

Sobretudo a Educação. Ainda temos analfabetos, produzimos licenciados com a abundância de uma tempestade de granizo, sem saídas profissionais. Os professores deixaram de ser uma classe considerada. São mal pagos e sistematicamente humilhados por sucessivos governos. É uma desgraça terrível para o País.
 

Segundo o «Expresso», o Ministério do Ensino Superior exigiu às quatro universidades públicas com maiores défices a tomada de medidas radicais, que passam pela extinção de cursos, faculdades e cortes nas despesas de pessoal. É contra esta visão economicista da sociedade que se revolta?

Não seria contra se essas medidas tivessem como finalidade última aumentar a exigência do conhecimento, a multiplicação de saberes, um investimento sério na investigação científica.
 

Em 2005, ganhou de forma inesperada a Câmara de Santarém como independente, para posteriormente obter apoio partidário do PSD. Como é lidar de perto com os problemas e anseios de populações tão heterogéneas e, segundo é público, com poucos recursos financeiros para suprir essas carências?

É uma permanente angústia e uma mágoa persistente. Percebi finalmente as misérias e grandezas do Poder Local. É uma experiência única. Embora ainda seja cedo para fazer balanços, devo dizer-lhe que o economicismo do Governo produz desumanidade, a ausência de uma cultura democrática produz perseguições e ressabiamentos políticos inimagináveis no séc. XXI, que a burocracia do Estado, possuída por clientes, burocratas e servos ao poder dominante, destrói a possibilidade de trabalhar numa autarquia de forma coerente e consequente. É preciso vencer muitos «Adamastores» para servir apaixonadamente as populações que jurámos servir.
 

É um escritor com assinaláveis volumes de venda das suas obras, a última das quais editou em 2007, intitulada «A fúria das vinhas». Qual segredo para o sucesso das suas publicações? Como vê o fenómeno de best seller sucessivos alcançados por Miguel Sousa Tavares e José Rodrigues dos Santos, algo pouco usual para os hábitos de leitura dos portugueses?

Ao contrário do que se julga, lê-se cada vez mais em Portugal e é certo que cada vez são publicados mais livros. São raros os autores que ultrapassam a fasquia dos cinco mil exemplares, o que não significa que não tenha qualidade, por vezes excepcional. E nem todos aqueles que chegam aos setenta, oitenta mil exemplares, podem atribuir o seu sucesso ao talento. Não sei explicar o sucesso dos outros, embora me agrade saber que têm muitos leitores.

No que a mim diz respeito, julgo que os meus leitores gostam da seriedade com que invisto no trabalho intelectual. Já tenho uma carreira longa, quer em livro quer em suporte televisivo, para perceber que os meus leitores e telespectadores esperam dos meus trabalhos rigor e aderem à ideia essencial que cruza a minha obra: a vida só faz sentido se for pensada com outros ao nosso lado numa procura incessante da felicidade. E tendo vivido e estudado a violência, o sofrimento, a morte, com uma experiência única no que respeita aos limites da dor e da tragédia, com mais convencimento afirmo o meu trabalho para torná-lo sempre num acto de reflexão pelos caminhos das nossas utopias mais bondosas.

Nuno Dias da Silva

 

 

 

A CARA DA NOTÍCIA

O alentejano incansável

Escritor, ficcionista, criminalista, comentador, ex-agente da Judiciária, autarca, opinion maker em vários jornais e presença assídua nos ecrãs televisivos. Francisco Moita Flores consegue fazer tudo isto e o seu dia só tem, como para o comum dos mortais, 24 horas. Mas da fama e do proveito de trabalhador incansável não se livra.

Este alentejano de gema, nasceu a 22 de Fevereiro de 1953, em Moura. É licenciado em História e fez uma pós-graduação em criminologia no Institute de Criminologie de l’Université de Lausanne (Suiça).

Foi durante 12 anos agente da Polícia Judiciária em brigadas de assaltos à mão armada, furto qualificado e homicídio, o que lhe valeu inúmeras experiências e daí também a inspiração para escrever ficção. Posteriormente exerceu funções de assessor do Director Geral da Polícia Judiciária para as áreas de análise da criminalidade e relacionamento com os órgãos da comunicação social. Para além disso, foi professor do ensino secundário nas Escolas Secundárias de Moura, Azambuja e Filipa de Lencastre, e é desde 1989 docente uiversitário, sendo Doutorado pelo Instituto de História e Teoria das Ideias da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra. Mas foi a sua aparição no programa «Casos de Polícia», na SIC, no início da era da TV privada em Portugal, que lhe valeu o mediatismo inicial. Nesse programa, Moita Flores descodificava a linguagem e a estratégia das forças policiais perante os novos fenómenos de criminalidade. A ficção é outra das suas especialidades. «Ballet Rose», adaptado para televisão, terá sido um dos que mais sucesso teve. «Morte d’Homem», «Filhos do Vento», «Polícias», «Esquadra de Policia», «Alves dos Reis», «Capitão Roby», «O Processo dos Távoras», «Lusitana Paixão» e «A Ferreirinha», foram outros guiões escritos pelo seu punho. O volume de produção de obras literárias é igualmente invejável e com assinalável sucesso: «Polícias sem História», «Filhos da Memória do Vento», «O carteirista que fugiu a tempo», «Não há lugar para divorciadas», «Em memória de Albertina, que Deus Haja!», «A fúria das vinhas».

A sua experiência forense levou a que fosse convidado para dirigir a equipa que identificou e trasladou os mortos do cemitério da Aldeia da Luz, que seria submerso pelas águas do Alqueva, numa das operações científicas mais impressionantes dos últimos anos. Em 2005, venceu de forma surpreendente, e como independente, a Câmara de Santarém, o que o levou, a si e à família, a fixar residência na capital ribatejana, deslocando-se de forma regular de bicicleta, de sua casa, no bairro de S. Bento, até aos Paços do Concelho.

 

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