Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XI    Nº120    Fevereiro 2008

Entrevista

GONÇALO M. TAVARES EM ENTREVISTA

O Superior deve formar mentes e não só braços

Com Jerusalém ganhou o mais importante prémio do Brasil, o Portugal Telecom. Venceu ainda o Prémio José Saramago e o Prémio Ler/Milliennium BCP. Em entrevista ao Ensino Magazine, Gonçalo M. Tavares, fala de como a Universidade deve ensinar a pensar e utilizando um modelo da escola primária explica como os alunos chegam até lá mais treinados para fazer “ditados” do que “redacções” de tema livre. Num compromisso individual escreve para provocar estranheza, e compreender melhor os outros Acerca da designação “escritor de ideias”, gosta que considerem que os seus livros as contêm, pois a literatura é um espaço de pensamento e reflexão e os livros são cada vez mais resistência e criação de tempo individual face aos meios de entretenimento, como a televisão ou a rádio. Das suas tetralogias, Os Senhores e O Reino explica a tranquilidade do “Bairro” em oposição à instabilidade, o medo e a violência do “Reino”.
 

A Literatura surgiu onde, como e porque na sua vida?

É difícil marcar um inicio, mas desde cedo comecei a ler e essa fase de leitura aumentou a partir de uma certa idade, a partir dos vinte talvez, começou a ganhar seriedade e disciplina. Passei a ler e a escrever com uma regularidade quase matinal.
 

É um escritor disciplinado, escreve todos os dias?

Sim. Mas já escrevi de uma forma mais disciplinada. Agora tento escrever todos os dias, por vezes nem sempre à mesma hora. Antes mantinha uns horários muitos rígidos, mas leio e escrevo o mais regularmente possível, porque há uma espécie de treino de mão que é necessário.
 

O Gonçalo afirmou que «escrevia para responder à estranheza de estar vivo.» Quer comentar?

Essa frase tem um pouco a ver com o meu método de escrita. Não escrevo ficção com um plano prévio. Escrevo mais ou menos instintivamente, espontaneamente. Portanto, para mim escrever é quase um processo de investigação, como outro tipo de investigação, científico, ou académico, e nesse sentido é muito uma tentativa de descobrir coisas, descobrir frases que eu não sabia que as tinha, não sabia que as sabia. É um processo de descoberta, não diria de psicanálise, mas de compreensão dos outros. Ao escrever compreendo melhor os outros.
 

A escrita é um partir de nós para o outro ou do outro para nós?

Conhecendo melhor o ser humano no geral e conhecendo melhor os outros, também me reconheço melhor. Mas em primeiro lugar eu vejo-me como um observador, alguém que está de fora a tentar ver como funcionam os seres humanos. Escrever é um pouco a manifestação desse olhar exterior, mas é evidente que eu não sou exterior aos seres humanos e portanto todas as análises que faço também me incluem a mim.
 

Volto a citá-lo :«A Literatura é um assunto de homem, não de pátrias. Os grandes temas humanos atravessam os vários homens dos vários países.» A Literatura derruba as fronteiras invisíveis entre os homens, cumpre um papel de aproximação?

Sim, é evidente que há uma separação inicial que tem a ver com a língua em que cada um escreve. Ao escrever em português, defino logo uma barreira e uma separação em relação a quem não me lê em português.

O que me interessa não são questões que se prendem com coisas muito particulares, do homem português, mas o que tem a ver, por exemplo, com a dor, o sofrimento, com a compreensão do homem em determinadas circunstâncias, de que forma é que a violência pode aparecer. Por outro lado, em relação aos “Senhores” interessa-me as questões da lógica, da linguagem, dos paradoxos da linguagem, dos limites do absurdo numa visão mais lúdica. Todos estes temas são temas que não são propriamente portugueses, mas que dizem respeito ao ser humano, ou à linguagem propriamente dita, e nesse aspecto talvez seja isso uma das característica da minha escrita e eventualmente que leva a pessoas de outros países a interessarem-se por ela. Apesar de não ter nada contra a escrita particular. Nós podemos falar de um habitante de Lisboa, ou de uma outra terra portuguesa e chegar a pontos universais. Aliás eu sou cada vez mais ligado à cidade de Lisboa, mas procuro nos habitantes da cidade saber o que é comum aos habitantes das outras cidades.
 

Como escritor qual é o seu maior compromisso?

O compromisso é um compromisso individual. Procuro que o que faço não seja uma mera repetição do que eu já fiz. O primeiro compromisso é precisamente com esta ideia de não repetir, de tentar investigar e investigar pressupõe procurar coisas novas que de certa maneira me provoquem a mim estranheza, ou seja, não é possível provocar estranheza, - que é uma palavra que me agrada - nos leitores, se primeiro não a provocar em mim próprio. O meu primeiro compromisso é esse, provocar estranheza em mim próprio.
 

Um Homem Klaus Klump; A Máquina de Joseph Walser; Jerusalém e Aprender a Rezar na Era da Técnica são os seus livros negros, também designados como “O Reino”. Qual o porque dessa designação e dessa ligação?

É uma ligação com o ambiente que é comum aos quatro romances, com uma paisagem de personagens que passam de um lado para o outro. Há personagens que são secundárias na Máquina de Joseph Walser, por exemplo, e passam para principais no Jerusalém. No Aprender a Rezar na Era da Técnica, o médico, o protagonista principal, a certa altura cruza-se com o Joseph Walser do romance A Máquina. Existem personagens que estão nos quatro romances, por isso chamo-lhe “O Reino”. É como se O Reino fosse um romance único, composto por quatro romances, é uma tetralogia, de certa maneira em oposição a uma outra série de livro que tenho, Os Senhores.
 

A série de livros Os Senhores também é designada pelo Bairro. Pode-se falar do Bem em oposição ao Mal?

O Reino e o Bairro são duas palavras quase antagónicas. O Bem em oposição ao Mal, não diria que é algo assim tão linear. O Bairro remete para um espaço acolhedor, que nós conhecemos, onde nos sentimos tranquilos, “Os Senhores” são livros que podemos ler com prazer e sensação de segurança. Pelo contrário, O Reino remete para um espaço geograficamente mais instável, mais agressivo, em que nos sentimos mais perdidos. Nós no reino estamos perdidos geograficamente e uma pessoa que está perdida, normalmente tem medo e pode ser agressiva - a raiz da violência muitas vezes está no medo. No Bairro, julgo que não temos esse medo, podemos estar mais seguros.
 

No Bairro está a tranquilidade das coisas que se conhecem?

Sim um pouco. No reino é a intranquilidade do que não se conhece e do que nos ameaça. No Bairro também há coisas, espero eu, desconhecidas, mas são num outro sentido, o centro está mais na linguagem, nos paradoxos e no absurdo, e não tanto nas relações humanas. O Reino são romances que estão muito mais centrados na violência e também nas relações amorosas entre seres humanos.
 

Da sua experiência como professor do Ensino Superior como avalia a qualidade dos alunos que chegam às universidades?

É difícil generalizar porque numa turma podemos ter três ou quatro alunos brilhantes e depois outros alunos mais medianos.
 

No geral os alunos chegam mais ou menos bem preparados?

Aqui a questão é que muitas vezes não estão preparados, ou totalmente preparados para pensar pela sua própria cabeça, para poder criar coisas. Há muita tendência para o ensino ser padronizado e para se padronizar e normalizar as cabeças. Transformar todas as cabeças em cabeças normais, que se repetem umas às outras. Quando é pedido aos alunos alguma coisa criativa e não lhe são dadas receitas, eles tem muitas dificuldades e pedem precisamente um receituário que faz com que percam essa capacidade de iniciativa que é muito importante. Generalizando, porque realmente há excepções, e pensando naqueles modelos clássicos que existiam na escola primária que eram o ditado e a redacção livre, o ditado em que a professora ditava um texto e todos os alunos repetiam o texto tentando não dar erros, na redacção livre, pelo contrário, partia-se de um tema e os miúdos com 7/8 anos tentam escrever alguma coisa de interessante a partir do tema. Tendo como padrão esses dois sistemas de pensamento, ao longo de todo o ensino o ditado ganhou mais força.
 

Há portanto um ensino centralizado…

O ensino dado é centralizado no professor. O professor diz o que é importante, e os alunos devem repetir o que o professor diz com a maior exactidão possível e sem erros. Gradualmente, o que vai acontecendo é que a redacção livre da escola primária vai desaparecendo e os ditados, quer sejam ditados matemáticos, ditados linguísticos, ditados pedagógicos, ditados de todos os tipos, vão prevalecendo. Os alunos ficam treinados quase exclusivamente para fazer bons ditados, para tentar dar o mínimo de erros possíveis. A outra parte, que é a parte da criatividade e iniciativa individual, fica um pouco posta de lado.
 

E as entidades de ensino em Portugal estão o bom caminho?

Eu não tenho uma visão do sistema educativo no seu geral, mas parece-me que há uma tendência técnico-profissional que começa desde cedo. É uma tendência que eu respeito, mas existe uma outra, que provavelmente as pessoas mais ligadas à filosofia defenderão, e eu incluo-me nesse núcleo, que não é técnica nem profissional, que vê o ensino não apenas como um processo para dotar as pessoas de meios para serem bons profissionais, mas também como um meio para as pessoas pensarem melhor, poderem olhar para as coisas e ver diferentes opções. Não apenas para perceberem como é que se pega no martelo e na chave de fendas, mas conseguirem enquadrá-los num sistema mais amplo. Muitas vezes a opção não é entre um martelo e uma chave de fendas, mas é entre não pegar numa coisa nem outra, e seguir por outro caminho. No ensino também é necessário os alunos aprenderem a afastar-se do objecto de estudo, não haver uma aproximação excessiva a este.
 

Tem que haver um equilíbrio…

Seria bom que existisse um maior equilíbrio entre especialização e capacidade para ligar e associar diferentes elementos. A visão que eu tenho é muito a nível de conteúdos, não tanto a nível do sistema educativo. Mas o que sinto no ensino universitário é também um pouco isto, é que há uma tendência cada vez maior para o ensino universitário se transformar no ensino técnico profissional. Ora, a Universidade na sua essência, e a própria palavra o diz, é um ensino que prepara as pessoas em primeiro lugar para pensarem, para poderem, perante um conjunto de hipóteses, decidirem o melhor possível e não apenas para agirem. Neste sentido, a universidade não está a caminhar na direcção ideal, infelizmente, nós também não vivemos numa sociedade ideal, têm de se defender os alunos em termos profissionais. Mas há aqui um equilíbrio, que julgo, poderia ser mais bem conseguido.
 

Eduardo Lourenço e José Saramago falaram da melhor forma sobre o seu trabalho, a crítica chama-lhe um escritor de ideias. Revê-se nessa designação?

Eu gosto que considerem que os meus livros tem ideias, porque o espaço da literatura é um espaço que tem de ser de reflexão. Até porque nós estamos inundados por meios que não alimentam o pensamento. Há um conjunto de meios, que passam pela televisão, rádio, etc., etc. em que como é evidente o seu objectivo é outro. Não estou a criticar os objectivos, estou a dizer que um livro não pode ter o mesmo objectivo de um programa de televisão. Um livro deve ser, e é cada vez mais, um espaço de resistência, um espaço de pensamento, um espaço que permite ao leitor a criação de um tempo individual que já não se consegue em nenhum outro lado. Quando eu vejo um programa de televisão, todos nós estamos a ver durante uma hora o mesmo programa de televisão. Pelo contrário, quando lemos um livro, há pessoas que podem ler um livro durante duas horas, outras que podem demorar meses ou semanas. O tempo de leitura é o tempo do leitor e não do livro, enquanto o tempo do programa de televisão é o tempo do programa e não o tempo do espectador. Logo aqui há uma diferença muito grande e nesse aspecto fico contente que considerem que os meus livros são livros de reflexão, eu pretendo isso, não quero que sejam meros passatempos, há outros meios que fazem isso melhor.
 

António Lobo Antunes disse que infância é um país estrangeiro. Visita com frequência esse país nos seus livros?

Sim principalmente no bairro. “O Senhor Valéry”; “O Senhor Brecht” são livros que tem o imaginário do absurdo e da lógica levado ao limite, e nesse aspecto é um imaginário muito infantil, quase de humor negro e também de não haver limites no pensamento. É um imaginário infantil com uma certa perversão, mas o imaginário infantil também tem essa característica. Muitas vezes nós queremos tirar a perversão, mas ela existe.
 

Um bom escritor é também um bom leitor? Que leituras traz consigo?

Acho que sim, um bom escritor tem de começar por ser um bom leitor. As leituras que trago comigo são de todo o tipo, desde a leitura de ensaios, filosofia, de ficção, romance, também poesia, teatro, ciência, gosto imenso de ciência; são um conjunto de leituras não especializadas, por exemplo leio muito sobre arte contemporânea; é um conjunto de leituras muito alargado e cada vez mais abrangente. Estou a tornar-me um leitor cada vez menos especialista, e mais curioso, e isso é um caminho que me agrada pessoalmente.
 

Acredita em Deus?

Essa pergunta é a mais difícil. Este último romance Aprender a Rezar na Era da Técnica aborda a questão da crença e de certa maneira o protagonista é colocado perante dilemas que passam por aí, se faz sentido manter a fé num mundo de técnica, se faz sentido rezarmos da mesma maneira no mundo das máquinas. Penso que este romance, para quem se interessa por esses assuntos, aborda de uma forma directa esta questão. Como manter a fé, como continuar a acreditar em Deus num meio do mundo que mudou completamente a paisagem. Quanto a mim, pessoalmente é uma pergunta tão íntima que tenho dificuldades em responder, é extremamente difícil. Vejo como uma necessidade de ir por esse caminho, tenho um respeito enorme pela crença, é algo que tanto quanto possível tento trabalhar nessa direcção, é se calhar o melhor que posso dizer.
 

Está à procura de Deus?

Não sei bem. Mas admiro as pessoas que tem uma crença forte, e portanto se admiro, gostaria de ter essa crença tão forte como a dessas pessoas.
 

É verdade que podia ter sido jogador de futebol? Ainda jogou no Beira Mar...

Sim, nós passamos por muitas vidas diferentes e provavelmente eu acabaria sempre por terminar nos livros. Podia ter tido um percurso diferente, aos 18 anos tinha um prazer enorme na parte desportiva e no futebol, um caminho possível. Aliás as coisas que menos me agradam na vida que levo hoje é que há anos que não jogo futebol. Desagrada-me, pois é um divertimento lúdico, muito engraçado e muito descompressivo. Mas seria difícil não vir parar a este mundo dos livros.
 

Actualmente encontra-se a trabalhar em algum livro?

Eu normalmente trabalho em diferentes coisas ao mesmo tempo. Neste momento estou a escrever uma coisa que não sei bem o que é. É sempre difícil, quando termino é que percebo. É capaz de ser um romance, ainda não sei bem. Estou a começar.
 

Gonçalo M. Tavares. M é inicial de…?

De Manuel. A coisa mais simples do mundo.

Eugénia Sousa


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