Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº116    Outubro 2007

Entrevista

NUNO CRATO, PRESIDENTE DA SOCIEDADE PORTUGUESA DE MATEMÁTICA

A crítica ao Eduquês do sistema

É uma espécie de iconoclasta das teses oficiais veiculadas pelos teóricos do sistema educativo. Nuno Crato defende um investimento mais eficiente no sector, a redução do peso do Ministério da Educação e o reforço da avaliação de professores e alunos. O presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática é da opinião que a calamidade a que chegou o ensino no nosso País radica nas “falhas” que ocorrem desde o início da escolaridade.
 

Quais os erros mais graves que foram cometidos no ensino nos últimos 30 anos?

Há várias décadas que se cometem erros, mas creio que os mais graves ocorreram na década de 80. A formação de professores não foi suficientemente cuidada, desleixou-se a qualidade dos manuais, os programas começaram a ser facilitados, as orientações pedagógicas não foram as adequadas. Creio que os aspectos de orientação pedagógica são dos mais importantes no ensino, mas há outros assuntos como a organização, horários, promoção de professores, etc, em que se falhou redondamente.
 

Como explica o fenómeno da indisciplina dentro e fora das salas de aula?

Há problemas sociais de fundo. Mas a escola não fez tudo o que poderia ter feito. As orientações do Ministério chegaram a dificultar a acção disciplinadora dos professores.

É claro que disciplinar uma turma não é condição suficiente para que os estudantes aprendam, mas é, certamente, uma condição necessária. Se a turma tiver disciplina e houver respeito pelo professor é possível trabalhar e aprender. Caso contrário, tudo isto deixa de ser exequível.
 

O estado do sector é, na sua opinião, “calamitoso”. Que responsabilidades devem ser atribuídas aos políticos?

O estado a que chegámos na educação é um problema político, há responsabilidades políticas de todos os sectores e é necessário fazer correcções na política educativa.
 

Costuma dizer que a concentração e o esforço são pouco valorizados, mas não é o sistema educativo o espelho da sociedade que temos?

Sem dúvida, mas quase tudo é o espelho da sociedade. Creio contudo que essa imagem reflectida pode ser mudada, aumentando o respeito que a sociedade deve ter pelo saber.
 

Insurge-se contra a cultura do facilitismo instalada. Como alterar essa lógica e a quem atribui as maiores culpas?

Mais uma vez não posso deixar de apontar o dedo aos políticos. Durante bastante tempo transmitiu-se a ideia que a escola tinha de ser, sobretudo, um local lúdico. E omitiu-se a ideia que a escola é um local de trabalho e de esforço. Nem tudo é brincadeira na vida e quanto mais cedo os jovens perceberem isso, melhor.
 

Introduzir o “Big Brother” em programas curriculares é uma forma de tornar o ensino um espectáculo?

É um dos exemplos extremos. Os programas não devem ser facilitados, simplificados e descaracterizados. Praticamente em todos os níveis de escolaridade encontramos programas que são uma pálida imagem do que eram há 20 ou 30 anos e do que deveriam ser hoje. Mesmo nas universidades, aquilo que se aprende nos primeiros anos de curso nem por sombras se compara com o que se leccionava num passado não muito distante. A ideia de que a simplificação dos programas se iria traduzir numa melhor compreensão, não resultou.
 

O défice educacional tem reflexos na produtividade e potencia o atraso económico, nomeadamente em comparação com os nossos congéneres europeus. Como é que se resgata Portugal da cauda dos rankings de várias organizações internacionais?

A educação está confrontada com um mundo de problemas. Mas penso que há alguns que são a chave do estado a que chegámos: a abolição dos cursos técnicos e comerciais foi um grande erro. Repare-se no próprio abandono escolar, que em parte cresceu devido ao facto de alguns jovens não encontrarem na escola o caminho para a profissão que ambicionavam ter...
 

Estamos perante uma falta de vocação dos alunos para certos cursos?

Há muitos jovens que gostariam de ter profissões não intelectuais e prefeririam ser, por exemplo, carpinteiros, mesmo que a sociedade desvalorize (e não deveria desvalorizar) essas profissões. Timidamente as escolas vão dando resposta aos anseios de jovens que preferem vidas mais técnico-profissionais. Mas isso não pode querer dizer, mais uma vez, facilitar os estudos ao ponto de nada se estudar, mas sim, torná-los mais estimulantes, rigorosos e ambiciosos. É falsa a ideia de que os jovens aderem a fórmulas simplistas na aprendizagem. Os jovens respondem, sim, quando vêem que estão a ser exigentes com eles e conseguem evoluir.
 

O processo de Bolonha tem merecido críticas e apreensões várias. Pensa que é mais um contributo para facilitar a progressão dos alunos, não exigindo a qualidade suficiente?

Bolonha é como o euro, uma inevitabilidade. Ao lado das vantagens de incentivo à internacionalização, acarreta alguns problemas. A maneira como está a ser aplicado nalgumas escolas não é a melhor. Está a desvalorizar-se o primeiro ciclo e o que eu receio é que daqui a alguns anos, esse ciclo, que é o equivalente ao bacharelato ou à licenciatura, se transforme em algo parecido com o que era o liceu há uns tempos atrás. Bolonha não devia ser encarado como uma simplificação do ensino ou uma redução da sua exigência. Veremos o que vai ser feito.
 

No seu livro mais famoso, “O «Eduquês»”, ao que parece um vocábulo da autoria do professor Marçal Grilo, nascido no decurso de uma conversa com teóricos da pedagogia, denuncia um certo lirismo e laxismo que derrota o rigor e o esforço. Quer dizer que o ensino em Portugal vive numa realidade utópica?

O subtítulo do livro era “uma critica da pedagogia romântica e construtivista”. E porquê? Julgo que por detrás do palavreado confuso de muitos teóricos e ditos especialistas da educação, existem ideias que são perniciosas. São ideias românticas e utópicas que acreditam exclusivamente na motivação, na experiência directa e no valor puro da vontade, sem perceber que a escola tem de dirigir e orientar os jovens.

“A imaginação dos técnicos do Ministério e de alguns ideólogos podem transformar uma boa ideia numa coisa inútil”, foi uma frase que disse numa entrevista passada.
 

Quer explicitar melhor?

Desde o ministro David Justino, e agora com Maria de Lurdes Rodrigues, notou-se uma tentativa de contrariar, pelo menos na aparência, o discurso habitual dos teóricos da educação ou do “eduquês”. Foram tomadas medidas, mas nem sempre como deveria ser. Muitos dos partidários das tais ideias românticas, acabaram por desvirtuar as ideias originais e transformar medidas boas em medidas más.
 

A “dança das cadeiras” dos ministros pelo Ministério da Educação é estonteante. Uns deixaram história, outros nem uma nota de rodapé merecem. Radica também no Ministério a raiz do mal da educação?

A instabilidade ministerial, as reformas sucessivas e as constantes reorientações no Ministério são problemas graves. Mas há um ponto que quero ressalvar: existe uma casta ou uma nomenklatura, um grupo de pessoas que fazem a simbiose entre alguns departamentos de educação de universidades e escolas superiores de educação e alguns técnicos superiores do Ministério. Basicamente, essas pessoas estão agarradas ao poder no Ministério, independentemente dos ministros ou dos governos que estejam no edifício da 5 de Outubro. Muitos ministros têm deixado que as coisas ocorram nas suas costas, ao sabor destes ideólogos do sistema que controlam como querem o Ministério.
 

A Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM) queixa-se de ser deixada à margem dos trabalhos da Comissão de Acompanhamento do Plano de Acção da Matemática por, alegadamente, ter feito criticas à ministra. É verdade?

Não, isso não é verdade. Mas a SPM não tem sido convidada para várias coisas decisivas, por exemplo o plano de formação de professores, por exemplo, o Plano de Acção da Matemática, por exemplo, a reformulação dos programas do Básico. E é triste que os críticos do estado actual do ensino não sejam convidados para tentar recuperar o sector.

De há alguns anos a esta parte que se assiste uma divisão clara de opiniões na educação: uns são críticos e outros favoráveis às orientações que têm vingado de há 20 anos a esta parte. Os que são favoráveis calaram-se, mas continuam no poder. Os críticos não se calaram, nem se calam e, talvez por isso, continuam sem ser tidos nem achados para muitas coisas. O que os partidários do “eduquês” já não conseguem defender publicamente, porque já caiu em descrédito, conseguem depois impor nos corredores dos ministérios, das secretarias e de departamentos de educação.
 

O descalabro prossegue na performance nos exames de Matemática e Português. Na Matemática, praticamente três quartos chumbaram no 9.º ano e a Português as negativas duplicaram. Se a motivação não chega, o que fazer para os alunos assimilarem as matérias?

É urgente traçar, ano a ano, objectivos concretos, relativamente exigentes, mas ao mesmo tempo, simples. Definir metas por cada ano de escolaridade. O importante é compreender, mas para isso é preciso dominar conhecimentos básicos, o que se torna difícil visto que muitos não têm essa “bagagem” por não verem consolidados esses conhecimentos no tempo próprio. Há falhas logo no início da escolaridade. Para começar, o programa de Matemática que existe para o ensino básico é mau e a proposta de reformulação desse programa está longe de ser a melhor.
 

Como comenta o conflito entre professores e Ministério da Educação?

Por um lado, acho que o Ministério tomou algumas medidas importantes, e que alguns sindicatos reagiram de forma despropositada. Contudo, entendo que houve uma grande inabilidade por parte do Ministério da Educação na apresentação e aplicação dessas medidas. Gerou-se a ideia que os culpados pelo estado actual do ensino eram os professores e que o Ministério estava a ser atacado apenas por pretender metê-los na ordem. Nada de mais errado. Se quisermos falar de culpados pela destruição do ensino, temos de falar do Ministério da Educação, que desorganizou o ensino com uma série de directivas desconexas que de há 20 anos para cá tem tomado.
 

Os docentes estão completamente isentos de responsabilidades?

Os professores são heróis na batalha da educação e têm sido sujeitos a um enxovalhamento injusto. Boas iniciativas que partiram deste Ministério, têm sido manchadas por uma certa arrogância relativamente aos professores. Provavelmente, existe por parte de alguns o seguinte raciocínio cínico: como há mais pais do que professores, uma batalha contra professores ganha mais votos do que os que perde.
 

Já aqui falámos que falta uma cultura de rigor e avaliação permanente. Pensa que deve ser aplicada a alunos e extensível aos professores?

Faltam mais momentos de verdade para os alunos e professores. Para os alunos, praticamente não há exames. Ao longo dos 9 anos têm lugar, apenas, dois exames nacionais, num universo de dezenas de disciplinas. E esses dois exames apenas valem para a nota final cerca de 30 por cento. Esta é uma das causas do abandono escolar. Os jovens arrastam-se durante 9 anos pelos bancos da escola, sem nunca enfrentarem provas de fogo, e quando finalmente aparecem os verdadeiros testes, muitos desistem.
 

Quantos exames defende que deveriam existir?

Neste momento, pelo menos mais um momento de avaliação, um exame nacional, ou no 4.º ou no 6.º ano de escolaridade, ou então nos dois.
 

É partidário de exames de admissão para a profissão de professor. Porquê?

A SPM defende isso há muitos anos. Muito antes de esta equipa ministerial ter chegado à 5 de Outubro. É muito importante que na profissão entrem os mais bem preparados. E onde isso se pode medir com objectividade é no conhecimento que o candidato a professor tem das matérias que se propõe leccionar. Ora num universo em que se apresentam candidatos vindos de muitas escolas e com formações muito desiguais não é justo avaliá-los unicamente pela nota final de curso.

A actual ministra decidiu levar para a frente esse exame de entrada na profissão, mas vamos esperar para ver no que se baseia essa avaliação. Em nosso entender, deve centrar-se nos conteúdos disciplinares.
 

Concorda com o actual modelo de gestão vigente nos estabelecimentos de ensino?

É um assunto em que prefiro não me alongar porque não o conheço bem. Mas sei que há gestores de escolas actuais muito bons e outros que são maus. O presente sistema de gestão enferma de vários vícios. Um deles é permitir que em certos estabelecimentos sejam eleitas pelos professores as pessoas que os que os que os elegem sabem, à partida, que menos problemas vão colocar.
 

O investimento do Estado na Educação é suficiente para dar frutos?

O Estado investe mal na Educação. E o problema não passa por investir mais, mas melhor, com mais eficiência. A SPM publicou um livro intitulado “Desastre no ensino da Matemática”, em que um estudo feito por dois economistas portugueses que trabalhavam na OCDE, conclui que o nosso dinheiro que é aplicado no sector está, sobretudo, mal aproveitado.
 

A democratização do ensino gerou uma massiva entrada de alunos no ensino superior e criou um negócio florescente com a multiplicação de cursos. É legítimo afirmar que as universidades se transformaram numa linha de montagem para “fabricar canudos” de forma rápida?

Há universidades que se transformaram numa “fábrica de canudos”, outras não. Umas funcionam bem, outras não. Por exemplo, a Universidade Técnica, tem muitos pólos de excelência espalhados por Lisboa.
 

O muito falado escândalo da Universidade Independente feriu o ensino superior de uma forma geral?

Foi nocivo para a imagem do ensino, mas é corrigindo os erros que se progride. A longo prazo, a atenção que se dá às universidades e o grau de exigência que delas se requer será sempre maior. Estou em crer que as universidades privadas têm sido muito penalizadas com críticas desta natureza, tendo-se passado um bocado a imagem de que são os maus da fita. Quando não é assim. O ensino pode ser bom ou mau nas públicas, o mesmo acontecendo nas privadas. As privadas têm até, muitas vezes, demonstrado mais capacidade de iniciativa do que as públicas, que, não raro, denotam um certo imobilismo. Penso que precisamos de boas universidades privadas, mais que não seja para fazer concorrência ao sistema público.
 

Esteve 12 anos nos Estados Unidos, em Delaware e New Jersey, tendo conhecido de perto as universidades norte-americanas. Se pudesse, o que é que “importava” do sistema americano?

A flexibilidade, a concorrência e a avaliação constante de professores e alunos no sistema de ensino, por exemplo. O trabalho sério. Também seria bom transportar as condições das universidades privadas e escolas básicas americanas para o nosso País.
 

Assiste com apreensão à “fuga de cérebros” e investigadores nacionais para o estrangeiro?

A internacionalização é positiva. A ciência é global. Creio que os jovens portugueses que emigram e se fixam no estrangeiro constituem uma oportunidade para o País. Mas mais do que estarmos preocupados com a fuga de cérebros, devíamos criar condições para que os nossos compatriotas e os estrangeiros desenvolvessem ciência em Portugal.
 

O Presidente da República trouxe o tema educação para agenda no seu discurso do 5 de Outubro. Um pacto de regime entre os dois partidos pode ser um caminho a seguir?

Depende da natureza do acordo. Se os dois maiores partidos decidirem conferir maior estabilidade e avaliação ao sistema e maior atenção aos conteúdos disciplinares, então seria um entendimento bem vindo. Mas os dois maiores partidos têm sido, também, os que mais erros têm feito na educação.
 

Se fosse ministro da Educação por um dia qual a primeira medida que tomava?

Abrir as janelas da 5 de Outubro para entrar ar fresco...
 

Está a deixar nas entrelinhas que é preciso uma “limpeza”?

São precisas caras novas no ensino e na orientação do ensino. A todos os níveis. Vejo com apreensão que não se verifique renovação de professores. É fundamental que quando o sistema reabra, os professores admitidos sejam os melhores, os mais aptos e não os que tiveram a nota mais alta no curso. A próxima geração de professores tem de ser organizada em função do seu mérito. Depois, há outro ponto essencial: é preciso retirar o peso do Ministério da Educação. É preciso menos Ministério, menos legislação, menos controle e mais liberdade para as escolas, mais descentralização, mas acompanhada de responsabilidade e concorrência.

Nuno Dias da Silva

 

 

 

PERFIL

Cara da notícia

Aos 55 anos, este matemático e estatístico, nascido em Lisboa, é professor associado com agregação no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), desde 2000, e presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), desde 2004. Recebeu da Sociedade Europeia de Matemática, em 2003, o primeiro prémio do concurso “Public Awareness of Mathematics” pelo seu trabalho de divulgação científica, actividade a que tem dedicado boa parte da sua carreira.

Doutorou-se em Matemática Aplicada nos Estados Unidos, onde esteve durante 12 anos como investigador e professor.

É autor de vários livros, nomeadamente “O “Eduquês” – uma critica à pedagogia romântica e construtivista”, de 2006, com a chancela da Gradiva, uma contundente intervenção académica e pessoal no debate sobre o ensino em Portugal. No mesmo ano, coordenou o lançamento do estudo “Desastre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido”, da mesma editora.

É colunista do semanário “Expresso” e colabora assiduamente em programas de televisão (“4xCiência” e “2010”) e rádio (Rádio Europa).

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