NUNO CRATO, PRESIDENTE DA
SOCIEDADE PORTUGUESA DE MATEMÁTICA
A crítica ao Eduquês
do sistema

É uma espécie de iconoclasta das teses
oficiais veiculadas pelos teóricos do sistema educativo. Nuno Crato
defende um investimento mais eficiente no sector, a redução do peso do
Ministério da Educação e o reforço da avaliação de professores e alunos.
O presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática é da opinião que a
calamidade a que chegou o ensino no nosso País radica nas “falhas” que
ocorrem desde o início da escolaridade.
Quais os erros mais graves que foram
cometidos no ensino nos últimos 30 anos?
Há várias décadas que se cometem erros, mas creio que os mais graves
ocorreram na década de 80. A formação de professores não foi
suficientemente cuidada, desleixou-se a qualidade dos manuais, os
programas começaram a ser facilitados, as orientações pedagógicas não
foram as adequadas. Creio que os aspectos de orientação pedagógica são
dos mais importantes no ensino, mas há outros assuntos como a
organização, horários, promoção de professores, etc, em que se falhou
redondamente.
Como explica o fenómeno da
indisciplina dentro e fora das salas de aula?
Há problemas sociais de fundo. Mas a escola não fez tudo o que poderia
ter feito. As orientações do Ministério chegaram a dificultar a acção
disciplinadora dos professores.
É claro que disciplinar uma turma não é condição suficiente para que os
estudantes aprendam, mas é, certamente, uma condição necessária. Se a
turma tiver disciplina e houver respeito pelo professor é possível
trabalhar e aprender. Caso contrário, tudo isto deixa de ser exequível.
O estado do sector é, na sua
opinião, “calamitoso”. Que responsabilidades devem ser atribuídas aos
políticos?
O estado a que chegámos na educação é um problema político, há
responsabilidades políticas de todos os sectores e é necessário fazer
correcções na política educativa.
Costuma dizer que a concentração e o
esforço são pouco valorizados, mas não é o sistema educativo o espelho
da sociedade que temos?
Sem dúvida, mas quase tudo é o espelho da sociedade. Creio contudo que
essa imagem reflectida pode ser mudada, aumentando o respeito que a
sociedade deve ter pelo saber.
Insurge-se contra a cultura do
facilitismo instalada. Como alterar essa lógica e a quem atribui as
maiores culpas?
Mais uma vez não posso deixar de apontar o dedo aos políticos. Durante
bastante tempo transmitiu-se a ideia que a escola tinha de ser,
sobretudo, um local lúdico. E omitiu-se a ideia que a escola é um local
de trabalho e de esforço. Nem tudo é brincadeira na vida e quanto mais
cedo os jovens perceberem isso, melhor.
Introduzir o “Big Brother” em
programas curriculares é uma forma de tornar o ensino um espectáculo?
É um dos exemplos extremos. Os programas não devem ser facilitados,
simplificados e descaracterizados. Praticamente em todos os níveis de
escolaridade encontramos programas que são uma pálida imagem do que eram
há 20 ou 30 anos e do que deveriam ser hoje. Mesmo nas universidades,
aquilo que se aprende nos primeiros anos de curso nem por sombras se
compara com o que se leccionava num passado não muito distante. A ideia
de que a simplificação dos programas se iria traduzir numa melhor
compreensão, não resultou.
O défice educacional tem reflexos na
produtividade e potencia o atraso económico, nomeadamente em comparação
com os nossos congéneres europeus. Como é que se resgata Portugal da
cauda dos rankings de várias organizações internacionais?
A educação está confrontada com um mundo de problemas. Mas penso que há
alguns que são a chave do estado a que chegámos: a abolição dos cursos
técnicos e comerciais foi um grande erro. Repare-se no próprio abandono
escolar, que em parte cresceu devido ao facto de alguns jovens não
encontrarem na escola o caminho para a profissão que ambicionavam ter...
Estamos perante uma falta de vocação
dos alunos para certos cursos?
Há muitos jovens que gostariam de ter profissões não intelectuais e
prefeririam ser, por exemplo, carpinteiros, mesmo que a sociedade
desvalorize (e não deveria desvalorizar) essas profissões. Timidamente
as escolas vão dando resposta aos anseios de jovens que preferem vidas
mais técnico-profissionais. Mas isso não pode querer dizer, mais uma
vez, facilitar os estudos ao ponto de nada se estudar, mas sim,
torná-los mais estimulantes, rigorosos e ambiciosos. É falsa a ideia de
que os jovens aderem a fórmulas simplistas na aprendizagem. Os jovens
respondem, sim, quando vêem que estão a ser exigentes com eles e
conseguem evoluir.
O processo de Bolonha tem merecido
críticas e apreensões várias. Pensa que é mais um contributo para
facilitar a progressão dos alunos, não exigindo a qualidade suficiente?
Bolonha é como o euro, uma inevitabilidade. Ao lado das vantagens de
incentivo à internacionalização, acarreta alguns problemas. A maneira
como está a ser aplicado nalgumas escolas não é a melhor. Está a
desvalorizar-se o primeiro ciclo e o que eu receio é que daqui a alguns
anos, esse ciclo, que é o equivalente ao bacharelato ou à licenciatura,
se transforme em algo parecido com o que era o liceu há uns tempos
atrás. Bolonha não devia ser encarado como uma simplificação do ensino
ou uma redução da sua exigência. Veremos o que vai ser feito.
No seu livro mais famoso, “O «Eduquês»”,
ao que parece um vocábulo da autoria do professor Marçal Grilo, nascido
no decurso de uma conversa com teóricos da pedagogia, denuncia um certo
lirismo e laxismo que derrota o rigor e o esforço. Quer dizer que o
ensino em Portugal vive numa realidade utópica?
O subtítulo do livro era “uma critica da pedagogia romântica e
construtivista”. E porquê? Julgo que por detrás do palavreado confuso de
muitos teóricos e ditos especialistas da educação, existem ideias que
são perniciosas. São ideias românticas e utópicas que acreditam
exclusivamente na motivação, na experiência directa e no valor puro da
vontade, sem perceber que a escola tem de dirigir e orientar os jovens.
“A imaginação dos técnicos do Ministério e de alguns ideólogos podem
transformar uma boa ideia numa coisa inútil”, foi uma frase que disse
numa entrevista passada.
Quer explicitar melhor?
Desde o ministro David Justino, e agora com Maria de Lurdes Rodrigues,
notou-se uma tentativa de contrariar, pelo menos na aparência, o
discurso habitual dos teóricos da educação ou do “eduquês”. Foram
tomadas medidas, mas nem sempre como deveria ser. Muitos dos partidários
das tais ideias românticas, acabaram por desvirtuar as ideias originais
e transformar medidas boas em medidas más.
A “dança das cadeiras” dos ministros
pelo Ministério da Educação é estonteante. Uns deixaram história, outros
nem uma nota de rodapé merecem. Radica também no Ministério a raiz do
mal da educação?
A instabilidade ministerial, as reformas sucessivas e as constantes
reorientações no Ministério são problemas graves. Mas há um ponto que
quero ressalvar: existe uma casta ou uma nomenklatura, um grupo de
pessoas que fazem a simbiose entre alguns departamentos de educação de
universidades e escolas superiores de educação e alguns técnicos
superiores do Ministério. Basicamente, essas pessoas estão agarradas ao
poder no Ministério, independentemente dos ministros ou dos governos que
estejam no edifício da 5 de Outubro. Muitos ministros têm deixado que as
coisas ocorram nas suas costas, ao sabor destes ideólogos do sistema que
controlam como querem o Ministério.
A Sociedade Portuguesa de Matemática
(SPM) queixa-se de ser deixada à margem dos trabalhos da Comissão de
Acompanhamento do Plano de Acção da Matemática por, alegadamente, ter
feito criticas à ministra. É verdade?
Não, isso não é verdade. Mas a SPM não tem sido convidada para várias
coisas decisivas, por exemplo o plano de formação de professores, por
exemplo, o Plano de Acção da Matemática, por exemplo, a reformulação dos
programas do Básico. E é triste que os críticos do estado actual do
ensino não sejam convidados para tentar recuperar o sector.
De há alguns anos a esta parte que se assiste uma divisão clara de
opiniões na educação: uns são críticos e outros favoráveis às
orientações que têm vingado de há 20 anos a esta parte. Os que são
favoráveis calaram-se, mas continuam no poder. Os críticos não se
calaram, nem se calam e, talvez por isso, continuam sem ser tidos nem
achados para muitas coisas. O que os partidários do “eduquês” já não
conseguem defender publicamente, porque já caiu em descrédito, conseguem
depois impor nos corredores dos ministérios, das secretarias e de
departamentos de educação.
O descalabro prossegue na
performance nos exames de Matemática e Português. Na Matemática,
praticamente três quartos chumbaram no 9.º ano e a Português as
negativas duplicaram. Se a motivação não chega, o que fazer para os
alunos assimilarem as matérias?
É urgente traçar, ano a ano, objectivos concretos, relativamente
exigentes, mas ao mesmo tempo, simples. Definir metas por cada ano de
escolaridade. O importante é compreender, mas para isso é preciso
dominar conhecimentos básicos, o que se torna difícil visto que muitos
não têm essa “bagagem” por não verem consolidados esses conhecimentos no
tempo próprio. Há falhas logo no início da escolaridade. Para começar, o
programa de Matemática que existe para o ensino básico é mau e a
proposta de reformulação desse programa está longe de ser a melhor.
Como comenta o conflito entre
professores e Ministério da Educação?
Por um lado, acho que o Ministério tomou algumas medidas importantes, e
que alguns sindicatos reagiram de forma despropositada. Contudo, entendo
que houve uma grande inabilidade por parte do Ministério da Educação na
apresentação e aplicação dessas medidas. Gerou-se a ideia que os
culpados pelo estado actual do ensino eram os professores e que o
Ministério estava a ser atacado apenas por pretender metê-los na ordem.
Nada de mais errado. Se quisermos falar de culpados pela destruição do
ensino, temos de falar do Ministério da Educação, que desorganizou o
ensino com uma série de directivas desconexas que de há 20 anos para cá
tem tomado.
Os docentes estão completamente
isentos de responsabilidades?
Os professores são heróis na batalha da educação e têm sido sujeitos a
um enxovalhamento injusto. Boas iniciativas que partiram deste
Ministério, têm sido manchadas por uma certa arrogância relativamente
aos professores. Provavelmente, existe por parte de alguns o seguinte
raciocínio cínico: como há mais pais do que professores, uma batalha
contra professores ganha mais votos do que os que perde.
Já aqui falámos que falta uma
cultura de rigor e avaliação permanente. Pensa que deve ser aplicada a
alunos e extensível aos professores?
Faltam mais momentos de verdade para os alunos e professores. Para os
alunos, praticamente não há exames. Ao longo dos 9 anos têm lugar,
apenas, dois exames nacionais, num universo de dezenas de disciplinas. E
esses dois exames apenas valem para a nota final cerca de 30 por cento.
Esta é uma das causas do abandono escolar. Os jovens arrastam-se durante
9 anos pelos bancos da escola, sem nunca enfrentarem provas de fogo, e
quando finalmente aparecem os verdadeiros testes, muitos desistem.
Quantos exames defende que deveriam
existir?
Neste momento, pelo menos mais um momento de avaliação, um exame
nacional, ou no 4.º ou no 6.º ano de escolaridade, ou então nos dois.
É partidário de exames de admissão
para a profissão de professor. Porquê?
A SPM defende isso há muitos anos. Muito antes de esta equipa
ministerial ter chegado à 5 de Outubro. É muito importante que na
profissão entrem os mais bem preparados. E onde isso se pode medir com
objectividade é no conhecimento que o candidato a professor tem das
matérias que se propõe leccionar. Ora num universo em que se apresentam
candidatos vindos de muitas escolas e com formações muito desiguais não
é justo avaliá-los unicamente pela nota final de curso.
A actual ministra decidiu levar para a frente esse exame de entrada na
profissão, mas vamos esperar para ver no que se baseia essa avaliação.
Em nosso entender, deve centrar-se nos conteúdos disciplinares.
Concorda com o actual modelo de
gestão vigente nos estabelecimentos de ensino?
É um assunto em que prefiro não me alongar porque não o conheço bem. Mas
sei que há gestores de escolas actuais muito bons e outros que são maus.
O presente sistema de gestão enferma de vários vícios. Um deles é
permitir que em certos estabelecimentos sejam eleitas pelos professores
as pessoas que os que os que os elegem sabem, à partida, que menos
problemas vão colocar.
O investimento do Estado na Educação
é suficiente para dar frutos?
O Estado investe mal na Educação. E o problema não passa por investir
mais, mas melhor, com mais eficiência. A SPM publicou um livro
intitulado “Desastre no ensino da Matemática”, em que um estudo feito
por dois economistas portugueses que trabalhavam na OCDE, conclui que o
nosso dinheiro que é aplicado no sector está, sobretudo, mal
aproveitado.
A democratização do ensino gerou uma
massiva entrada de alunos no ensino superior e criou um negócio
florescente com a multiplicação de cursos. É legítimo afirmar que as
universidades se transformaram numa linha de montagem para “fabricar
canudos” de forma rápida?
Há universidades que se transformaram numa “fábrica de canudos”, outras
não. Umas funcionam bem, outras não. Por exemplo, a Universidade
Técnica, tem muitos pólos de excelência espalhados por Lisboa.
O muito falado escândalo da
Universidade Independente feriu o ensino superior de uma forma geral?
Foi nocivo para a imagem do ensino, mas é corrigindo os erros que se
progride. A longo prazo, a atenção que se dá às universidades e o grau
de exigência que delas se requer será sempre maior. Estou em crer que as
universidades privadas têm sido muito penalizadas com críticas desta
natureza, tendo-se passado um bocado a imagem de que são os maus da
fita. Quando não é assim. O ensino pode ser bom ou mau nas públicas, o
mesmo acontecendo nas privadas. As privadas têm até, muitas vezes,
demonstrado mais capacidade de iniciativa do que as públicas, que, não
raro, denotam um certo imobilismo. Penso que precisamos de boas
universidades privadas, mais que não seja para fazer concorrência ao
sistema público.
Esteve 12 anos nos Estados Unidos,
em Delaware e New Jersey, tendo conhecido de perto as universidades
norte-americanas. Se pudesse, o que é que “importava” do sistema
americano?
A flexibilidade, a concorrência e a avaliação constante de professores e
alunos no sistema de ensino, por exemplo. O trabalho sério. Também seria
bom transportar as condições das universidades privadas e escolas
básicas americanas para o nosso País.
Assiste com apreensão à “fuga de
cérebros” e investigadores nacionais para o estrangeiro?
A internacionalização é positiva. A ciência é global. Creio que os
jovens portugueses que emigram e se fixam no estrangeiro constituem uma
oportunidade para o País. Mas mais do que estarmos preocupados com a
fuga de cérebros, devíamos criar condições para que os nossos
compatriotas e os estrangeiros desenvolvessem ciência em Portugal.
O Presidente da República trouxe o
tema educação para agenda no seu discurso do 5 de Outubro. Um pacto de
regime entre os dois partidos pode ser um caminho a seguir?
Depende da natureza do acordo. Se os dois maiores partidos decidirem
conferir maior estabilidade e avaliação ao sistema e maior atenção aos
conteúdos disciplinares, então seria um entendimento bem vindo. Mas os
dois maiores partidos têm sido, também, os que mais erros têm feito na
educação.
Se fosse ministro da Educação por um
dia qual a primeira medida que tomava?
Abrir as janelas da 5 de Outubro para entrar ar fresco...
Está a deixar nas entrelinhas que é
preciso uma “limpeza”?
São precisas caras novas no ensino e na orientação do ensino. A todos os
níveis. Vejo com apreensão que não se verifique renovação de
professores. É fundamental que quando o sistema reabra, os professores
admitidos sejam os melhores, os mais aptos e não os que tiveram a nota
mais alta no curso. A próxima geração de professores tem de ser
organizada em função do seu mérito. Depois, há outro ponto essencial: é
preciso retirar o peso do Ministério da Educação. É preciso menos
Ministério, menos legislação, menos controle e mais liberdade para as
escolas, mais descentralização, mas acompanhada de responsabilidade e
concorrência.
Nuno Dias da Silva
PERFIL
Cara da notícia

Aos 55 anos, este matemático e
estatístico, nascido em Lisboa, é professor associado com agregação no
Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), desde 2000, e presidente
da Sociedade Portuguesa de Matemática (SPM), desde 2004. Recebeu da
Sociedade Europeia de Matemática, em 2003, o primeiro prémio do concurso
“Public Awareness of Mathematics” pelo seu trabalho de divulgação
científica, actividade a que tem dedicado boa parte da sua carreira.
Doutorou-se em Matemática Aplicada nos Estados Unidos, onde esteve
durante 12 anos como investigador e professor.
É autor de vários livros, nomeadamente “O “Eduquês” – uma critica à
pedagogia romântica e construtivista”, de 2006, com a chancela da
Gradiva, uma contundente intervenção académica e pessoal no debate sobre
o ensino em Portugal. No mesmo ano, coordenou o lançamento do estudo
“Desastre no ensino da Matemática: como recuperar o tempo perdido”, da
mesma editora.
É colunista do semanário “Expresso” e colabora assiduamente em programas
de televisão (“4xCiência” e “2010”) e rádio (Rádio Europa). 
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