Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº116    Outubro 2007

Entrevista

ALICE VIEIRA EM ENTREVISTA

"O facilitismo na escola preocupa-me"

Alice Vieira é uma das mais prestigiadas escritoras para a infância e juventude. Traduzida e editada no estrangeiro, em Portugal as suas obras são lidas e estudadas nas escolas e integram o Plano Nacional de Leitura. Com uma carreira de mais de vinte anos, Alice Vieira fala desse tempo de escrita que começou com o jornalismo. Tem com os livros uma ligação de toda a vida, com a internet afirma que não se deve competir, pois é desafio perdido à partida. Prefere o virar da folha ao clicar do rato, e a carta ao mail. De palavra franca e amável, estabelece com os leitores relações de afecto e alegra-se por ter de alguma forma contribuído para o seu desenvolvimento. A entrevista, respondida por e-mail, aqui fica.
 

Abraçou o desafio dos filhos e escreveu Rosa, Minha Irmã Rosa (Prémio de Literatura Infantil "Ano Internacional da Criança" (1980). Passaram mais de vinte anos e os livros e os prémios sucedem-se. Que balanço faz destes anos de escrita?

Um balanço extremamente positivo, em termos de realização profissional e pessoal : de repente vi-me com duas profissões, ambas muito exigentes e desgastantes ; de repente a minha vida mudou completamente, nunca mais tive férias, nunca mais tive tempo livre, mas já não saberia viver de outra maneira. E o contacto permanente com os mais novos permite um conhecimento muito verdadeiro do mundo que nos rodeia. Aprendi muito e continuo a aprender nestes anos todos. E como estabeleço laços afectivos muito fortes com os meus leitores (sobretudo através da correspondência que mantenho com uma enorme maioria que, mesmo com o aparecimento dos e-mails, continua a preferir a boa, velha, sólida carta de muitas páginas…) dá-me uma grande alegria ver que tenho contribuído um bocadinho para que muitos sejam hoje adultos interessados e felizes e os mais novos para lá caminhem…
 

Colaborou no suplemento juvenil do Diário de Lisboa e acabou a coordenar esse projecto. Trabalhou como jornalista profissional no Diário de Notícias e só deixou o jornalismo activo em 1991. Quis ser jornalista mas o reconhecimento chegou com a literatura infantil e juvenil. Como é que os livros apareceram na sua vida profissional?

Ligeiras correcções: trabalhei no "Diário de Lisboa", e depois no " Diário Popular" durante oito anos, até entrar para o "Diário de Notícias" em 1974.

Hoje continuo no activo, mas em regime livre : trabalho para o "Jornal de Notícias", e para as revistas "Activa", "Audácia" (uma revista juvenil que pertence aos missionários combonianos), e "Tempo Livre". Quando os livros chegaram, eu já era uma jornalista "reconhecida", e se calhar isso ajudou-me um bocadinho…

Os livros fizeram sempre parte da minha vida. Não me lembro de mim sem saber ler e sem saber escrever. Tenho a sensação de já ter nascido a ler e a escrever…Eu tive uma infância muito complicada, não fui criada com os meus pais e estive sempre rodeada de gente muito velha e com pouca paciência…

Então há que fazer pela vida…Se ninguém me contava histórias, que remédio senão inventá-las para mim. Se a vida não era cor de rosa, que remédio senão vivê-la através dos livros, e fazer das personagens de ficção os amigos que eu não tinha. Era natural que isto me levasse a uma vida profissional onde os livros e a escrita estivessem sempre presentes. E eu, que nunca na minha vida quis ser escritora, que sempre, desde muito criança, dizia que queria ser jornalista (eu nem sabia muito bem o que era um jornalista mas tinha ouvido dizer que era alguém que nunca estava em casa, e isso bastava para me aparecer como a melhor das profissões ) vejo-me, de repente, com uma profissão que nunca tinha sonhado ter… De qualquer maneira ainda hoje, quando me pedem uma definição de profissão, eu digo que "sou uma jornalista que também escreve livros". Porque o jornalismo é, há-de ser sempre, a base de tudo.
 

Se por um lado o número de editoras em Portugal não pára de crescer, por outro, os jovens parecem cada vez mais rendidos à Internet. Livros e Internet coexistem pacificamente ou a Internet veio roubar espaço ao livro e o virar da página pode vir a ser o clicar do rato?

As páginas hão-de ser sempre páginas, folhas, papel, com um cheiro próprio, um toque especial. O rato será sempre outra coisa.

Eu penso que nunca devemos tentar entrar em competição com a net porque então perdemos sempre. O que devemos é tentar fazer as crianças (e sobretudo os pais das crianças) entender que uma coisa não substitui a outra, e que o desejável é que se tenha tempo para ambas, porque ambas nos dão um prazer diferente, e se recusamos a leitura isso é um disparate porque estamos a prescindir de um prazer a que temos direito.

É sempre pelo afecto que temos de ir para combatermos um meio frio como é o da tecnologia.

Um livro tem a ver com as folhas que se passam e voltam a passar, que se riscam, que se sublinham, onde se toma notas (detesto livros muito bem cuidados, sem vincos, sem riscos, "virgens"!)

Pelo menos por enquanto ainda não se pode levar o computador para a cama nem para o meio da areia da praia no verão…

O que é grave é quando a net é dona e senhora absoluta do tempo todo das crianças. Mas aí grande parte da culpa é dos pais que, sem hábitos nem gosto de leitura, fazem da net o seu único passatempo…No fundo, era o que dantes acontecia com os comboios eléctricos que os pais compravam para os filhos : eram sempre os pais que mais brincavam com eles…
 

E na escola, como é que os jovens acolhem os seus livros e a leitura de um modo geral?

De um modo geral acolhem bem. Mas, quando vou a uma escola, os alunos já leram e estudaram uma obra minha. Não sei como é a primeira abordagem, mas até nem duvido que haja protestos, "ó setôra, que seca!", coisas assim. Mas se o professor consegue motivá-los, o resultado pode ser diferente. O que me aflige muitas vezes é o facilitismo que domina as nossas escolas…O livro é grande, a escrita é difícil, o menino vai-se cansar, então não se dá. E isso é muito mau. Porque nada se consegue sem esforço e eles nem entendem o prazer que dá ultrapassar as dificuldades e chegar onde se quer através do grande esforço que fazemos. (De resto, esse é sempre um tema em que eu bato muito nos encontros com eles: aquilo que dá trabalho também pode dar prazer).

Mas depois, sobretudo através das cartas que eles me escrevem, eu vejo que até gostam de ler, e entendem, e querem ler mais.
 

As sociedades estão a passar de consumidoras de comunicação escrita a produtoras?

Muito francamente, não sei.

Se calhar ampliam e globalizam, mas a que preço? Escreve-se melhor?

Gosta-se mais de ler? O português e a literatura ganham com isso? Como perguntava, há muito tempo, um escritor inglês de que esqueci o nome, "se um canibal comer de garfo e faca - isso é progresso?"
 

O Plano Nacional de Leitura está a ser implementado com sucesso?

Penso que sim. Mas o Plano Nacional de Leitura é, no fundo, aquilo que todos nós, escritores, andamos a fazer há mais de vinte anos… Os jovens lêem os nossos livros e nós vamos falar com eles…Se calhar agora, como meteu governo e trombetas da publicidade, isso tem mais visibilidade.
 

Em Portugal a literatura para os mais novos está em muito boas mãos, como são o exemplo José Jorge Letria, Álvaro de Magalhães, Alice Viera. Há sucessores para esta dinastia?

Mal de nós se não houver…

Mas eu não estou muito optimista neste momento. Não acho que se esteja a atravessar um bom momento no que diz respeito a novos nomes na literatura juvenil. Surgem muito poucos. E surgem sem criatividade, imitando o que existe. É muito raro surgir uma obra que não se enquadre no género "detectivesco-policial" ou não siga na esteira do Harry Potter.E se o Harry Potter é bom, as imitações raramente o são.

É estranho mas a vida real parece cada vez mais afastada da produção literária destinada aos mais novos.

E não é aí que estão todas as aventuras, todas as magias?
 

O escritor Gabriel García Márquez afirmou que o ponto de partida para os seus livros é sempre uma imagem. E os seus livros como começam?

Sempre com frases, mas associadas a imagens. Mas a frase surge sempre primeiro. Uma frase desgarrada de tudo, de que muitas vezes não gosto e aparece outra, e mais outra, até que de repente tudo começa a encadear-se e a fazer sentido. Mas as frases estão ligadas a imagens de pessoas, que se movimentam, e então eu sigo-as, como se estivesse no cinema e olhasse para o écran onde tudo se passa.
 

Tem cerca de trinta títulos divididos em romance, teatro, poesia. Que livros lhe faltam ainda escrever e em que projecto se encontra de momento envolvida?

Tenho cerca de sessenta títulos… embora alguns ainda não estejam editados. Acho que ainda me falta escrever tudo… Este ano foi de grande trabalho e estão para sair diversos livros meus já entregues na Caminho, na Texto Editora, na Oficina do Livro e na D. Quixote, para lá de duas encomendas, da Câmara de Angra do Heroísmo e do Teatro de São Carlos.

Continuo com o projecto da re-escrita de textos da literatura tradicional portuguesa (estão dois livros novos para sair e preparo outro), tenho dois romances começados, e estou neste momento a trabalhar com o realizador Jorge Paixão da Costa no programa de Natal da RTP.

Gostava de poder fazer uma colecção de biografias, que é um género que falta muito na literatura juvenil.

Para lá disto tudo, tenho idas a escolas e bibliotecas já marcadas para todo este ano lectivo (e já estou a marcar para o próximo…).

Eugénia Sousa

 


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