ALICE VIEIRA EM
ENTREVISTA
"O facilitismo na
escola preocupa-me"

Alice Vieira é uma das mais prestigiadas
escritoras para a infância e juventude. Traduzida e editada no
estrangeiro, em Portugal as suas obras são lidas e estudadas nas escolas
e integram o Plano Nacional de Leitura. Com uma carreira de mais de
vinte anos, Alice Vieira fala desse tempo de escrita que começou com o
jornalismo. Tem com os livros uma ligação de toda a vida, com a internet
afirma que não se deve competir, pois é desafio perdido à partida.
Prefere o virar da folha ao clicar do rato, e a carta ao mail. De
palavra franca e amável, estabelece com os leitores relações de afecto e
alegra-se por ter de alguma forma contribuído para o seu
desenvolvimento. A entrevista, respondida por e-mail, aqui fica.
Abraçou o desafio dos filhos e
escreveu Rosa, Minha Irmã Rosa (Prémio de Literatura Infantil "Ano
Internacional da Criança" (1980). Passaram mais de vinte anos e os
livros e os prémios sucedem-se. Que balanço faz destes anos de escrita?
Um balanço extremamente positivo, em termos de realização profissional e
pessoal : de repente vi-me com duas profissões, ambas muito exigentes e
desgastantes ; de repente a minha vida mudou completamente, nunca mais
tive férias, nunca mais tive tempo livre, mas já não saberia viver de
outra maneira. E o contacto permanente com os mais novos permite um
conhecimento muito verdadeiro do mundo que nos rodeia. Aprendi muito e
continuo a aprender nestes anos todos. E como estabeleço laços afectivos
muito fortes com os meus leitores (sobretudo através da correspondência
que mantenho com uma enorme maioria que, mesmo com o aparecimento dos
e-mails, continua a preferir a boa, velha, sólida carta de muitas
páginas…) dá-me uma grande alegria ver que tenho contribuído um
bocadinho para que muitos sejam hoje adultos interessados e felizes e os
mais novos para lá caminhem…
Colaborou no suplemento juvenil do
Diário de Lisboa e acabou a coordenar esse projecto. Trabalhou como
jornalista profissional no Diário de Notícias e só deixou o jornalismo
activo em 1991. Quis ser jornalista mas o reconhecimento chegou com a
literatura infantil e juvenil. Como é que os livros apareceram na sua
vida profissional?
Ligeiras correcções: trabalhei no "Diário de Lisboa", e depois no "
Diário Popular" durante oito anos, até entrar para o "Diário de
Notícias" em 1974.
Hoje continuo no activo, mas em regime livre : trabalho para o "Jornal
de Notícias", e para as revistas "Activa", "Audácia" (uma revista
juvenil que pertence aos missionários combonianos), e "Tempo Livre".
Quando os livros chegaram, eu já era uma jornalista "reconhecida", e se
calhar isso ajudou-me um bocadinho…
Os livros fizeram sempre parte da minha vida. Não me lembro de mim sem
saber ler e sem saber escrever. Tenho a sensação de já ter nascido a ler
e a escrever…Eu tive uma infância muito complicada, não fui criada com
os meus pais e estive sempre rodeada de gente muito velha e com pouca
paciência…
Então há que fazer pela vida…Se ninguém me contava histórias, que
remédio senão inventá-las para mim. Se a vida não era cor de rosa, que
remédio senão vivê-la através dos livros, e fazer das personagens de
ficção os amigos que eu não tinha. Era natural que isto me levasse a uma
vida profissional onde os livros e a escrita estivessem sempre
presentes. E eu, que nunca na minha vida quis ser escritora, que sempre,
desde muito criança, dizia que queria ser jornalista (eu nem sabia muito
bem o que era um jornalista mas tinha ouvido dizer que era alguém que
nunca estava em casa, e isso bastava para me aparecer como a melhor das
profissões ) vejo-me, de repente, com uma profissão que nunca tinha
sonhado ter… De qualquer maneira ainda hoje, quando me pedem uma
definição de profissão, eu digo que "sou uma jornalista que também
escreve livros". Porque o jornalismo é, há-de ser sempre, a base de
tudo.
Se por um lado o número de editoras
em Portugal não pára de crescer, por outro, os jovens parecem cada vez
mais rendidos à Internet. Livros e Internet coexistem pacificamente ou a
Internet veio roubar espaço ao livro e o virar da página pode vir a ser
o clicar do rato?
As páginas hão-de ser sempre páginas, folhas, papel, com um cheiro
próprio, um toque especial. O rato será sempre outra coisa.
Eu penso que nunca devemos tentar entrar em competição com a net porque
então perdemos sempre. O que devemos é tentar fazer as crianças (e
sobretudo os pais das crianças) entender que uma coisa não substitui a
outra, e que o desejável é que se tenha tempo para ambas, porque ambas
nos dão um prazer diferente, e se recusamos a leitura isso é um
disparate porque estamos a prescindir de um prazer a que temos direito.
É sempre pelo afecto que temos de ir para combatermos um meio frio como
é o da tecnologia.
Um livro tem a ver com as folhas que se passam e voltam a passar, que se
riscam, que se sublinham, onde se toma notas (detesto livros muito bem
cuidados, sem vincos, sem riscos, "virgens"!)
Pelo menos por enquanto ainda não se pode levar o computador para a cama
nem para o meio da areia da praia no verão…
O que é grave é quando a net é dona e senhora absoluta do tempo todo das
crianças. Mas aí grande parte da culpa é dos pais que, sem hábitos nem
gosto de leitura, fazem da net o seu único passatempo…No fundo, era o
que dantes acontecia com os comboios eléctricos que os pais compravam
para os filhos : eram sempre os pais que mais brincavam com eles…
E na escola, como é que os jovens
acolhem os seus livros e a leitura de um modo geral?
De um modo geral acolhem bem. Mas, quando vou a uma escola, os alunos já
leram e estudaram uma obra minha. Não sei como é a primeira abordagem,
mas até nem duvido que haja protestos, "ó setôra, que seca!", coisas
assim. Mas se o professor consegue motivá-los, o resultado pode ser
diferente. O que me aflige muitas vezes é o facilitismo que domina as
nossas escolas…O livro é grande, a escrita é difícil, o menino vai-se
cansar, então não se dá. E isso é muito mau. Porque nada se consegue sem
esforço e eles nem entendem o prazer que dá ultrapassar as dificuldades
e chegar onde se quer através do grande esforço que fazemos. (De resto,
esse é sempre um tema em que eu bato muito nos encontros com eles:
aquilo que dá trabalho também pode dar prazer).
Mas depois, sobretudo através das cartas que eles me escrevem, eu vejo
que até gostam de ler, e entendem, e querem ler mais.
As sociedades estão a passar de
consumidoras de comunicação escrita a produtoras?
Muito francamente, não sei.
Se calhar ampliam e globalizam, mas a que preço? Escreve-se melhor?
Gosta-se mais de ler? O português e a literatura ganham com isso? Como
perguntava, há muito tempo, um escritor inglês de que esqueci o nome,
"se um canibal comer de garfo e faca - isso é progresso?"
O Plano Nacional de Leitura está a
ser implementado com sucesso?
Penso que sim. Mas o Plano Nacional de Leitura é, no fundo, aquilo que
todos nós, escritores, andamos a fazer há mais de vinte anos… Os jovens
lêem os nossos livros e nós vamos falar com eles…Se calhar agora, como
meteu governo e trombetas da publicidade, isso tem mais visibilidade.
Em Portugal a literatura para os
mais novos está em muito boas mãos, como são o exemplo José Jorge
Letria, Álvaro de Magalhães, Alice Viera. Há sucessores para esta
dinastia?
Mal de nós se não houver…
Mas eu não estou muito optimista neste momento. Não acho que se esteja a
atravessar um bom momento no que diz respeito a novos nomes na
literatura juvenil. Surgem muito poucos. E surgem sem criatividade,
imitando o que existe. É muito raro surgir uma obra que não se enquadre
no género "detectivesco-policial" ou não siga na esteira do Harry
Potter.E se o Harry Potter é bom, as imitações raramente o são.
É estranho mas a vida real parece cada vez mais afastada da produção
literária destinada aos mais novos.
E não é aí que estão todas as aventuras, todas as magias?
O escritor Gabriel García Márquez
afirmou que o ponto de partida para os seus livros é sempre uma imagem.
E os seus livros como começam?
Sempre com frases, mas associadas a imagens. Mas a frase surge sempre
primeiro. Uma frase desgarrada de tudo, de que muitas vezes não gosto e
aparece outra, e mais outra, até que de repente tudo começa a
encadear-se e a fazer sentido. Mas as frases estão ligadas a imagens de
pessoas, que se movimentam, e então eu sigo-as, como se estivesse no
cinema e olhasse para o écran onde tudo se passa.
Tem cerca de trinta títulos
divididos em romance, teatro, poesia. Que livros lhe faltam ainda
escrever e em que projecto se encontra de momento envolvida?
Tenho cerca de sessenta títulos… embora alguns ainda não estejam
editados. Acho que ainda me falta escrever tudo… Este ano foi de grande
trabalho e estão para sair diversos livros meus já entregues na Caminho,
na Texto Editora, na Oficina do Livro e na D. Quixote, para lá de duas
encomendas, da Câmara de Angra do Heroísmo e do Teatro de São Carlos.
Continuo com o projecto da re-escrita de textos da literatura
tradicional portuguesa (estão dois livros novos para sair e preparo
outro), tenho dois romances começados, e estou neste momento a trabalhar
com o realizador Jorge Paixão da Costa no programa de Natal da RTP.
Gostava de poder fazer uma colecção de biografias, que é um género que
falta muito na literatura juvenil.
Para lá disto tudo, tenho idas a escolas e bibliotecas já marcadas para
todo este ano lectivo (e já estou a marcar para o próximo…).
Eugénia Sousa
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