NOBEL DA LITERATURA EM
ENTREVISTA
Democracia segundo
Saramago
José Saramago, Prémio Nobel da Literatura, acaba de lançar mais um livro. Ensaio sobre a Lucidez foi apresentado em todo o País. Com a simplicidade que o caracteriza e com o compromisso de dizer sempre aquilo que pensa, o autor português falou da sua obra e do seu novo livro.
Dias antes da sua visita à área de influência do Ensino Magazine, José Saramago acedeu conversar, telefonicamente, connosco. Nesta curta entrevista, elaborada a partir da redacção do Reconquista, o Nobel português fala da necessidade de existirem políticas educativas que promovam a literatura nacional, refere-se aos atentados de 11 de Março com uma certa revolta, e claro está apresenta-nos o seu novo livro que classifica de inquietante e provocador. De caminho lembrou que ao sistema em que vivemos é abusivo chamar-lhe democracia.
NOBEL. Para José Saramago o facto de lhe ter sido, em 1998, atribuído o Prémio Nobel da Literatura, acabou por não contribuir da maneira desejada para o reconhecimento da língua portuguesa. “Não é um prémio, que por mais importante que seja, como este, que vai mudar o modo como se aprecia a influência de uma determinada língua no mundo”.
É que essa influência não está relacionada apenas com a atribuição de prémios. Passa, sobretudo, pelo aumento do trabalho diário de todos e com políticas de ensino, que não existem. “Mas, pelo menos falou-se muito da nossa língua, da nossa literatura. Durante algum tempo, depois tudo voltou à normalidade”, acrescenta.
ENSAIO. O novo livro de José Saramago agitou a classe política portuguesa e tal como o autor prometeu criou polémica no seio da democracia portuguesa. Lançado pela Editorial Caminho, a nova obra do autor português já foi apresentada em Lisboa, Castelo Branco, Leiria, Viseu, Beja, Évora, Coimbra, Porto e Aveiro, entre outras cidades. Em todas essas cerimónias José Saramago foi igual a si próprio, afirmando o seu pensamento. “O novo livro é uma poderosa fábula sobre a degradação ou o apodrecimento da democracia nos regimes democráticos comandados por partidos ou pessoas sem princípios, nem valores”.
No entender do autor, Ensaio sobre a Lucidez é “inquietante e provocador, segundo os pontos de vista. Inquietante será, uma vez que coloca questões que são sérias, não só do ponto de vista do autor, como são sérias para todos nós. E têm que ver com a maneira como tudo isto funciona, a chamada democracia, até que ponto efectivamente o é, ou não é. E é provocador porque num tempo em que aquilo que se usa é aquilo que chamamos, ou se começou a chamar, o politicamente correcto... bem, deste livro aquilo que se pode dizer é que é politicamente incorrecto e portanto, de alguma maneira provocador”.
Com o novo livro, José Saramago não pretendeu por em causa a democracia em toda a sua plenitude. “Não há que pô-la em causa, o que haveria era que aperfeiçoá-la cada vez mais. Agora creio que isto em que nós vivemos pode chamar-se muita coisa, mas creio que é um tanto abusivo chamar-lhe de democracia. Ou se o é,
estamos perante uma democracia desinformal e não aquilo que se desejaria que fosse uma democracia a que poderíamos chamar de substancial. Enfim, essa é a diferença grande”, esclarece o Prémio Nobel.
Ligado ao Partido Comunista Português desde jovem, Saramago conta neste seu livro o resultado de umas eleições, onde o partido de esquerda é o menos votado. “Isso não quer dizer nada. Eu sou uma pessoa de esquerda, mas vejo as realidades. A esquerda hoje e, sobretudo aquela que está à esquerda da social democracia, ou dos partidos social democratas, é minoritária. Tem, isso sim, que tem que encontrar caminhos mais afirmativos, mas que neste momento está em baixa. Por outro lado, também se pode, tal como aliás se alega no próprio comunicado do PDE do meu romance, dizer que há uma coincidência dos seus próprios valores, os valores do PDE, e os valores que levaram um grande número de pessoas a votar em branco”, alega.
CANDIDATO. José Saramago é um dos candidatos, pelo Partido Comunista, às próximas Eleições Europeias, pelo que o seu novo livro pode ser visto como um contra-senso, já que nessa obra sugere o voto em branco. Algo que é visto pelo prémio Nobel português de uma forma muito simples. “Não há nenhuma contradição e muito menos um contra-senso. Estou nesta lista por uma manifestação de fidelidade ao meu partido. Não aspiro a ser Euro Deputado e as questões que levanto no romance, com o voto em branco, não significam abstenção. Por outro lado, também não estou a apelar ao voto em branco. O que digo é que, em vez de haver abstenção é muito mais lógico que as pessoas participem, mas votem em branco. Porque evidentemente o voto em branco é, de todo o modo, um voto de participação”.
O escritor português esclarece mesmo que “com a abstenção não se promove a democracia, pois as pessoa não vão votar. Mas, não há nenhuma contradição no facto de eu ser candidato e na história do livro, até porque os problemas que eu ponho nesta obra são de carácter geral, não apenas de carácter particular e nacional, como alguns querem entender, mas global. O problema que está ali exposto não é um problema de Lisboa ou de Castelo Branco, ou de Portugal, é um problema mundial”,
reitera.
ATENTADO. “Foi algo absolutamente horrível, que deixou toda a gente em estado de choque. No dia 14 cheguei a Madrid e ainda vive toda aquela tragédia. As manifestações de luto foram momentos que não podem ser esquecidos”. É assim que José Saramago recorda o atentado de 11 de Março, em Madrid. Na altura o autor português encontrava-se em Lanzarote, a ilha Espanhola onde vive.
Três dias depois dos atentados, a Espanha foi às urnas escolher o novo Governo. Muitos analistas consideram que foram os atentados que deram a vitória aos socialistas, mas José Saramago tem outra visão dos acontecimentos. “As sondagens, dois ou três dias, já apontavam um empate técnico e a grande influência do resultado partiu dos jovens que votavam pela primeira vez e que se decidiram pela mudança. E a propósito do que temos estado a falar, houve mais de 600 mil votos em branco...”.
NOVA OBRA
Ensaio sobre a Lucidez
São 329 páginas de uma história que começa num dia de eleições, em que chove torrencialmente. Depois da contagem verificam-se uns resultados um tanto ou quanto estranhos. O Partido da Direita (PD), no poder, consegue 13 por centos dos votos; o do Meio (PM) 9 por cento; e o da Esquerda (PE) 2,5 por cento. Já os votos brancos ultrapassam os 70 por cento.
O governo decide repetir as eleições e coloca a polícia em campo para descobrir o que se passou. Depois da nova votação, os resultados são piores. O PD consegue 8 por cento, assim como o PM, enquanto o PE se fica pelo 1 por cento. Abstenções e votos nulos não existem e os brancos atingem os 83 por cento.
É decretado pelo Governo o estado de excepção da capital e inicia-se uma investigação, com perseguições aos ‘brancosos’. O Governo abandona a capital, leva a polícia, multiplica os espiões e propõe que se construa um muro à volta da cidade. Tudo com o intuito de cercar e sitiar a capital, como forma de obrigar os “traidores” da democracia, aqueles que votaram em branco, a renderem-se.
Mas, o que é certo é que a cidade, sem polícia e sem o Governo, está calma. A partir daí, os planos do Governo, cada vez mais arbitrários e repressivos, saem furados.
CONHEÇA O NOBEL
Cara da notícia
Nobel da literatura em 1998, José Saramago nasceu na aldeia de Azinhaga (Golegã), em 1922. Fez estudos secundários (liceal e técnico) que, por dificuldades económicas, não pôde prosseguir. No seu primeiro emprego foi serralheiro mecânico, tendo exercido depois, diversas outras profissões: desenhador, funcionário de saúde e de previdência social, editor, tradutor, jornalista. Publicou o seu primeiro livro, um romance, em 1947. Colaborou como crítico literário na revista Seara Nova. Em 1972 e 1973 fez parte da redacção do jornal Diário de Lisboa. Pertenceu à primeira direcção da Associação Portuguesa de Escritores e foi, desde 1985 a 1994, presidente da Assembleia Geral da Sociedade Portuguesa de Autores. Entre Abril e Novembro de 1975 foi director-adjunto do jornal Diário de Notícias.
A partir de 1976 passou a viver exclusivamente do seu trabalho literário, primeiro como tradutor, depois como autor. É Doutor Honoris Causa pelas Universidades de Turim (Itália), de Sevilha (Espanha) e de Manchester (Reino Unido); membro Honoris Causa do Conselho do Instituto de Filosofia do Direito e de Estudos Histórico-Políticos da Universidade de Pisa (Itália); membro da Academia Universal das Culturas (Paris); membro correspondente da Academia Argentina das Letras; membro do Parlamento Internacional de Escritores (Estrasburgo).
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