Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano VI    Nº63    Maio 2003

Entrevista

JOÃO AFONSO, SOBRINHO DE ZECA AFONSO

À descoberta de novas sonoridades

Sobrinho de Zeca, João Afonso já lançou 3 discos. Em todos a continuidade da ligação da música africana à de raiz portuguesa.

Em entrevista exclusiva ao «Ensino Magazine», o cantor diz que o peso do nome de família já não é o que era e que o público percebe que o seu trabalho é específico e próprio.
Mesmo se, conforme salientou, a cultura musical de base é zecaafonsina.

O último disco, «Zanzinbar» acaba de sair em Espanha, França, Alemanha e outros países, numa carreira em construção firme. O curso de agronomia, esse, ficou para trás.

O «Missangas» parece um trabalho com mais influências africanas do que os outros dois editados. Foi propositado ou surgiu naturalmente em função das suas experiências pessoais?

Concordo que é o mais africano e de forma intencional, talvez porque a temática e as ideias aí contidas se relacionam com as minhas experiências de Moçambique, onde nasci.

O «Zanzibar» é mais rico e variado. O «Missangas» é um disco muito especial, que aparece algo tardio. Gostaria de o ter feito um pouco antes, porque reúne histórias da minha infância em Moçambique (daí as fotos alusivas a esse período na apresentação da capa). Algumas das canções do CD já as tinha desde há anos. Uma delas (“Fugir com o Cientista”) contém referências a um velho cientista anarquista português, o Prof. Quintanilha, que foi pioneiro da Genética.

O tema «Segredos da Cozinha» surge por influência da gastronomia africana?

Relaciona-se muito com as memórias da infância e a forma como passei a fazer canções, explorando o jogo de vozes sobretudo com o meu irmão António. Um trabalho que realizo ao longo dos três discos mas, de modo particularmente rico, no «Missangas».

Na época, a minha forma de tocar guitarra e de cantar estava muito ligada às experiências obtidas em Moçambique. Possuía influências dos hinos revolucionários da fase de pós-independência e que são muito religiosos, contendo elementos de perguntas e respostas e contratempos. Elementos que eu e os meus irmãos trouxemos para Portugal e aqui continuámos a desenvolver.

Ao mesmo tempo, os seus discos têm influências bastante portuguesas…

O «Barco Voador» é, sem, dúvida, o trabalho menos africano. Há, de facto, uma influência muito forte da música com raízes caracteristicamente portuguesas na minha música. Não posso fugir ao facto de grande parte da cultura musical que possuo ter sido assimilada no disco rígido da minha cabeça pelos trabalhos que me chegavam a casa do meu tio José Afonso.

Quer o hibridismo africano, quer a música popular portuguesa estão muito relacionadas com ele.

Depois de ter chegado a Portugal, durante 3 ou 4 anos atravessei uma fase de dificuldades de adaptação. A minha “bóia de salvação” foi o desporto. Jogava Futebol (era fanático da modalidade) e Voleibol e, em paralelo, ouvia músicas do Zeca. Era também fã dos «Trovante» e de Rui Veloso.

Quando decidiu assumir-se como cantor?

Houve quem me dissesse que tinha jeito para a música. Lembro-me de uma pequena experiência que tive em 1986 num bar chamado «Camarim». Não gostei muito porque o ambiente não me agradava… era muito fumo!

Continuei, no entanto, a realizar estes trabalhos. Cantar profissionalmente foi algo que surgiu aos poucos.

Eu estudava Agronomia Tropical. Em festas de homenagem e após a morte do Zeca Afonso comecei a ser convocado para participar em festas de homenagem. Cantava canções dele e, gradualmente, introduzia também algumas minhas. É um bocado como alguém que vai habitar outra casa, mas aos poucos vai deixando a sua roupa.

O culminar deste trajecto foi atingido com uma participação na Europália, com o meu irmão António e o Sérgio Mestre. Foi, na verdade, o meu arranque e comecei a sentir que a música para mim se estava a tornar algo de mais sério.

Para além dos espectáculos de evocação de Zeca Afonso, participava noutros onde colocava a questão de Timor-Leste, nada unânime e pouco cómoda na altura. O meu tio foi, aliás, das primeiras pessoas que se referiu ao assunto. Eu andava pelas escolas a falar também da matéria. Fiz, inclusivamente, uma canção intitulada «A Xanana Gusmão» que não foi bem recebida por algumas facções de timorenses. Houve pessoas para quem esse meu tipo de intervenção causava incómodo.

A sua vertente interventiva nos problemas da sociedade já vem, então, daí?

Não sei…Senti que devia assumir uma posição na questão, até porque tinha um grande amigo em Agronomia que me puxou para a causa, com a qual naturalmente me identificava. O ponto de viragem a partir do qual fui forçado a decidir o que iria fazer na vida ocorreu aquando da realização de uma série de espectáculos em que fui convidado a participar com José Mário Branco, Amélia Muge , José Martins e Rui Júnior. Tratavam-se de concertos que viviam muito da emoção e da admiração da obra do meu tio.

Estes espectáculos originaram um disco ao vivo, o «Maio, Maduro Maio».

Foi um ponto fundamental para mim, porque parei para pensar e a conclusão a que cheguei foi perguntar ao Júlio Pereira se estava interessado em produzir o disco que se viria a chamar «Missangas». A resposta foi afirmativa.

Qual é o elemento de continuidade entre os três discos?

Há, antes de mais, um dado relativo ao modo como os discos foram feitos. Enquanto o «Missangas» foi produzido estritamente por 3 pessoas, num núcleo bem fechado, o «Barco Voador» representou uma fase transitória, mas em que se abriu o leque de participantes no projecto. Tal aconteceu numa situação especial, uma vez que era um disco gravado quase ao vivo, em directo. Cantámos, tocámos e gravámos ao mesmo tempo, com um ou outro convidado a participar. Já o «Zanzibar» foi um CD diferente, mais aberto, gravado em casas transformadas em estúdios e não em estúdios convencionais. Quero destacar, a propósito, a importância da opção e da dedicação do Jorge Avillez, naquela que foi uma aposta ganha, porque permitiu trabalhar em ambientes sem “stress” nem pressões.

Intervieram músicos de proveniências muito diversas, desde Moçambique, Angola, Cabo Verde e Brasil.

Não foi difícil conjugá-los num todo equilibrado?

Não. A harmonia surgiu naturalmente; o produtor teve uma dedicação excepcional neste disco. A aposta não foi arriscada porque as canções que faço são um pouco híbridas, eu próprio tenho dificuldade em caracterizá-las. Todos os músicos afirmam que é difícil definir mesmo os compassos.

O cruzamento de músicos de muitas origens contribuiu para a variedade do disco, que integra temas mais melodiosos, outros mais latinos e outros, ainda, mais africanos.

O futuro da música portuguesa poderá passar pela exploração dessas inter-influências?

Acredito que o intercâmbio e as fusões de estilos são enriquecedores. Nota-se, actualmente, é um afunilamento da música portuguesa para determinados estilos, sem dar o espaço para outras vertentes. Custa-me a assistir a isso. Portugal é conotado com o fado e as outras alternativas não têm projecção.

Não é um peso excessivo ser sobrinho de Zeca Afonso? É inevitável a comparação permanente com ele?

Já o foi, nomeadamente no período em que decidi não cantar apenas coisas do meu tio, mas também as minhas. Era, de facto, efectuada uma comparação constante, na minha perspectiva, indevida e baseada apenas em possuir um timbre de voz semelhante ao de José Afonso. Houve situações em que as pessoas se emocionavam ao me ouvir cantar por lhes fazer lembrar José Afonso, o que me fez pensar…Tenho ainda muito orgulho quando me comparam com ele. O meu tio tinha um grande sentido de humor. Hoje, não sinto qualquer peso, mas antes uma responsabilidade acrescida.

Há canções, como «Entre Sodoma e Gomorra» (letra de José Afonso), em que as semelhanças de interpretação são muito fortes…

Isso relaciona-se com a minha forma de fazer e cantar os temas. Boa parte da minha cultura musical é zecaafonsina e assumo-o com gosto.

O público já pensa algo do género: «ele tem muito de Zeca, mas também já tem muito de João»?

Penso que sim. É, pelo menos, o que me têm dito. Os discos que fiz responderam às perguntas de indefinição sobre o meu trabalho. Estou em busca constante do meu estilo, mas creio que tenho uma forma própria de cantar e de fazer músicas, que – julgo – o público já percebeu.

Como a família encara a prestação artística de João Afonso?

A minha mãe (irmã de Zeca Afonso) fica sempre muito nervosa quando me ouve cantar, embora goste bastante. Foi sempre minha apoiante e crítica no sentido positivo, como o meu pai era.

«Carteiro em Bicicleta», hoje a minha música mais conhecida, estava moribunda e foi a minha mãe que me disse «devias agarrar nesta música». Em boa hora o disse!

Como explica que as crianças adiram tanto aos seus temas?

É pelo ritmo das músicas, penso, mas não tenho a certeza. Reparo, de facto, que os miúdos gostam muito das minhas canções, o que me dá um grande prazer. Não sei se é devido, como diz o meu irmão António, a serem algo “redondas”, ou seja, estruturas simples, por ciclos repetitivos (embora não repetíveis), o que corresponde ao modo como aprendi a cantar em Moçambique. Aí as músicas são, muitas vezes, cantadas em caminhadas ou em trabalhos agrícolas. Repare que em África, o tempo e o espaço têm uma dimensão diferente.

No disco «Missangas», há uma canção chamada «Mano Pedro», que refere: «o silêncio diz às vezes tudo aquilo que guardamos; os receios e os medos e outras coisas que não damos». É um espelho de todos e de cada um?

Fiz a letra por uma situação de desgosto de separação. O meu irmão mais novo, o Pedro, foi sempre o meu companheiro de quarto e de brincadeiras. Foi estudar para o Algarve e depois para Inglaterra e foi na altura que escrevi a letra, porque há coisas que eu e muitas pessoas não conseguem expressar em tais momentos de separação.

Depois de 3 discos editados, quando será lançado o quarto?

Deverá ser nos inícios do próximo ano. Já estou a trabalhar nele. Mas, não representa nenhum corte em relação aos anteriores. Estou com vontade de experimentar novas sonoridades e caminhos, sem fugir à importância do jogo de vozes e ao lado acústico, mas quem sabe, com outras variantes. Não acredito em rupturas completas. Para não serem naturais, prefiro não as efectuar.

Quanto aos concertos, estão alguns agendados para o Verão e agora vou à Galiza.

«Paz de Santiago» vai ser tema obrigatório?

É uma canção com letra de Luís Pastor, muito conhecida na Galiza. A maior parte do público de lá gosta, embora alguns não porque é cantada em Castelhano (risos).

No entanto, em termos de projectos de curto prazo, pretendo divulgar mais o último disco, «Zanzibar». O trabalho acabou de ser publicado na Espanha, França, Alemanha, Áustria e nalguns outros países.

O Curso de Agronomia fica para trás?

Neste momento, sim. Talvez um dia me apeteça acabar, uma vez que só me falta um ano. A música é prioridade e não me passa pela cabeça que não me dedique apenas a esta. Isto, apesar de ser uma carreira nem sempre fácil, porque há fases boas e outras más. Por agora, aposto na minha formação e em aprofundar os conhecimentos musicais.

Jorge Azevedo

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