RUI ZINK, ESCRITOR
"O intelectual
não deve ser clubista"
Rui Zink não tem dúvidas: o primeiro dever do intelectual é «não ser clubista» e manter a independência face aos grupos sociais.
Em entrevista ao «Ensino Magazine», o escritor de forte cariz mediático, faz um balanço da sua obra na ficção, ensaio, contos e traduções. Autor do primeiro “e-book” português, Zink lamenta que o efémero tenha chegado ao reino dos livros.
Tem trabalhado nos domínios da ficção, ensaio e teatro. É muito diferente escrever para estas três áreas?
Em todas é um trabalho com a palavra – está aí a unidade dos vários campos. Quando vamos a uma casa, mudamos de comportamento. O que dizemos na de um amigo de há 20 anos não é o mesmo que se diz à mãe dele, por exemplo. Devemos respeitar o terreno em que nos encontramos e eu tento primeiro ouvir o meio em que vou trabalhar e só depois avançar.
É difícil escrever para teatro?
Penso que é difícil escrever bem para teatro. Como este é muito parecido com a vida real e com os diálogos que travamos no quotidiano, não nos apercebemos que essa semelhança é apenas aparente. Na verdade, a vida é prolixa: falamos de tudo e de nada, enquanto que o teatro é sintético. Cada palavra e cada frase deve pesar e possuir, em potência, um conflito.
E em relação à ficção, é mais fácil espraiar-se neste género?
Quanto mais tensa ela é, quanto mais avançamos do conto para o romance, mais pudemos introduzir a chamada “palha”. Esta não é permitida no Teatro, nem num conto curto, mas um romance sem a tal “palha” não se assumiria como romance e seria insuportável de ler. É um dos casos interessantes em que o supérfluo tem uma função.
O ensaio é mais real ou mais próximo da realidade?
É diferente…Tenho publicado menos ensaio do que aquele que tenho feito. Procuro não “embarcar” na moda de publicar tudo o que se escreve.
Só se deve transmitir o que se pensa quando consideramos que vamos acrescentar algo sobre um assunto. Com a ficção não é assim: posso contar uma história que não seja nova, mas fazê-lo à minha maneira, o que é uma vantagem. No ensaio, só torno público aquilo que tenha a presunção de pensar que ainda não foi dito. É evidente que posso estar errado.
Dedicou-se também a elaborar traduções. Porquê?
Antes de mais, porque é um serviço público traduzir para os meus compatriotas textos que considero serem fundamentais. Por outro lado, a tradução é a melhor forma de ler. É uma reescrita do livro. Como o plágio é ilegal ou, ao menos, imoral, a tradução permite-me viajar pelas palavras de escritores que amo, sem ser levado por eles a tribunal.
É o autor do primeiro e-book português. Como se lembrou da ideia? Foi para aproveitar as novas tecnologias?
Elas já estavam lá. Mantenho relações próximas com os escritores experimentais, como Alberto Pimenta. Com eles aprendi que a Literatura não está presa ao papel, pode-se escrever um poema nas paredes. Novos suportes ou códigos, como a
Internet, colocam problemas novos à feitura do texto. Uma amiga minha tinha feito um CD-rom sobre Pessoa, um hiper-texto. Por isso, interessou-me o trabalho que realizei do e-book.
Muita gente não compreendeu mas pareceu-me mais interessante escrever um romance convencional usando estratégias pouco convencionais do que tentar fazer o contrário. É um paradoxo: eu relaciono-me muito com poetas experimentais mas não sou um poeta. É a única área da Literatura em que evito entrar.
Porquê? Não tem curiosidade em experimentar esse campo?
Escrever poemas é a primeira coisa que se faz na primeira experiência de escrita. Mas, considero que um poema ou é fabuloso ou não é. Aqui situa-se uma cobardia minha. Como que não tenho a noção de que os meus poemas sejam geniais, o mundo passa bem sem eles.
Qual a razão porque decidiu entrar na área dos contos infantis?
É um domínio quase tão exigente como a poesia, mas tive coragem… Os contos infantis surgem de um interesse e de uma vontade minha de há muito de escrever para crianças. A ideia foi trabalhando na minha cabeça. Mas, utilizo um método semi-disciplinado e semi-anárquico. Esperei que me aparecesse uma ideia interessante para concretizar a tal vontade. Creio que consegui responder bem ao desafio.
Os dois livros lançados são para continuar?
Talvez, depende do que for fazendo e do modo como as obras forem trabalhadas. Da minha parte, há um grande respeito pela Literatura Infantil. Quando fiz a «Arte Suprema», muitas pessoas afirmaram: ”cá está um livro de banda desenhada”; para mim, não era, tratava-se de um romance gráfico. Considero que é um dos meus melhores livros. Não compreenderam o tipo de trabalho, como um livro de desenhos pode ser trabalhado por um escritor. Depois com «Os Surfistas», houve quem dissesse que era uma brincadeira e eu que fiquei esgotado quando o fiz. Tenho orgulho nele! Foi traduzido este ano para alemão. Existe um conservadorismo para desvalorizar o que sai fora dos esquemas previamente estabelecidos. Não sei se fui demasiado inovador, os padrões é que são excessivamente conservadores. O resultado é o mesmo…esses padrões são muito conformistas. Entristece-me que as pessoas não tenham compreendido que demorei muito tempo a escrever os dois livros infantis lançados. É evidente que têm apenas 20 páginas e com o mínimo de palavras possíveis.
A projecção mediática de que dispõe ajuda a torná-lo mais conhecido enquanto escritor?
Não sei se com isso o público terá um apetite maior pelos meus livros, mas informa-o de que as obras existem, o que é importante. Um trabalho precisa que as pessoas saibam que existe. Livros meus que estavam mortos desde 1984 renasceram graças a esse holofote. No entanto, é evidente que também se perde seriedade quando se faz televisão. Há um lado perverso não tanto na TV mas nas cabecinhas. Repare que as pessoas que criticavam “A noite da má língua” são as mesmas que aplaudem o “Big Brother”. É interessante ver como as pessoas mudaram e isso acontece porque não guardam memória do que os outros e elas próprias fazem e pensam.
Estamos sempre no reino do efémero e a televisão é o seu espaço ideal…?
A televisão e os jornais são tão informativos que boicotam a informação. É um paradoxo. Pergunto quais os casos não sonantes que se calam para só alguns serem tratados pela comunicação social e que, ainda por cima, não têm sequência. É tudo feito de “bits” e do momento.
O livro que, em princípio, deveria ser uma forma de resistência à passagem do tempo acaba por não o ser. Isto porque o que se publica hoje são revistas em livro, veja-se a quantidade de crónicas de jornais assim difundidas.
A situação é sintomática de como o universo do efémero ocupou o livro. Muitos poucos duram mais do que os dois meses do yogurte.
Qual é, actualmente, o papel do intelectual português na sociedade?
A sua função é de não ser parte integrante de nenhuma instituição. É essencial para que possa ser independente. Enquanto escritor, nunca pedi nenhum subsídio ao Estado e sou apenas membro da Associação dos Auto-Mobilizados. Não pertenço a nenhum partido, nem estou dependente de qualquer grupo. O intelectual deve apoiar causas e intervir mas apenas pontualmente. Das organizações que apoio dessa forma não espero que haja retorno. Para que este se verificasse teria que as apoiar sempre. Estou disponível para participar em diversas acções públicas, mas também estou disponível para dizer não e as pessoas entendem-no muito mal.
Irrita-me profundamente que se pense que o intelectual tem um dever para com a sociedade portuguesa.
O primeiro dever do intelectual é não concordar com a minha visão do intelectual. De outra forma: o primeiro dever é não ter dever e pensar pela própria cabeça.
Mas, não cabe ao intelectual ser uma espécie de “bóia” e “puxar para cima” o país?
Não. Historicamente, deu sempre asneira quando os intelectuais consideravam que estavam na vanguarda.
Se Portugal fosse um país de intelectuais e cada um dissesse “eu sou responsável por aquilo que faço, cumpro regras cívicas, não fujo aos impostos, protesto quando considero ter razão para isso”, o país era uma maravilha. Posso expor o meu pensamento num artigo sobre qualquer tema, mas não sou responsável pelo que as pessoas lêem. Se quiser fazer das minhas ideias doutrina, formo um partido ou crio uma religião, ou seja, intervenho de outra forma. É muito perigoso quando alguém que tem o cartão de intelectual pensa que tem o direito ou o dever de impor a sua perspectiva aos outros.
O primeiro dever do intelectual é não ser clubista. É mais fácil compreender isto pela definição do arqui-inimigo ou do oposto do intelectual: são os meninos das claques chamadas bancadas partidárias do Parlamento. Quando está a falar um deputado de outro partido diferente do nosso há um ruído horrível. Quando é dos nossos aplaude-se mesmo que só tenha dito asneiras. Não haverá uma ocasião em que um parlamentar de um partido discorde da posição de um colega da bancada?
Em Portugal, toda a gente se riu quando se soube que Sadam Hussein foi reeleito com cem por cento dos votos. Mas, se reparar, o número de vezes que a bancada de um partido apoiou deputados deste foi cem por cento das vezes. Nesta lógica, em vez de 230 deputados da nação, temos 230 ovelhas ou eleitores de Sadam Hussein. O intelectual é o oposto disto.
Geralmente, a prova de que uma pessoa é intelectual é que é fuzilado. Numa democracia não acontece isso mas levamos alguns tiros. É que quando há um grupo que acha graça a algo que dissemos tenta-nos levar para lá e fica amuado quando não vamos e classificam-nos de traidores.
O intelectual é encarado, muitas vezes, pela sociedade em que vive como Judas. Por um dia ter tomado uma posição a favor de um grupo, este espera o mesmo apoio sempre.
Há no mundo dois tipos de pessoas que reagem muito mal: a mulher traída e o grupo humilhado.
Às vezes, penso nas chatices que tenho por assumir certas posições. Não me questiono se valeu a pena, porque desde pequeno fui educado para ser um intelectual. É uma questão de consciência. As poucas vezes em que tentei ser “carneiro”, senti-me mesmo muito mal. Os riscos de eu ser assim são grandes mas dá-me gozo.
É mais você próprio?
Sim, é isso. Sem dúvida. Mas, há uma evolução que tem de ser considerada. Por exemplo, apoiei Mário Soares para Presidente da República na altura contra Freitas do Amaral, mas estou a ponderar a hipótese de apoiar esta personalidade nas próximas eleições. As mudanças na vida devem ser realizadas com memória do que aconteceu, só assim é que é dinâmica. Se há mudança sem memória, é uma alteração má. Porém, se existe memória sem mudança, apodrecemos. Tem de se evoluir e guardar a memória, as duas coisas… Diga-me uma coisa: pensa que o Bloco de Esquerda, que eu apoiei por duas vezes, vai ficar contente quando souber disto? Eu votarei Freitas do Amaral e, ao afirmá-lo, estou a cumprir o meu dever de intelectual livre.
Não poderá pagar um preço por essa posição?
Não, até poderei ganhar uma benesse, se ele ganhar!
Se somos pessoas livres, não nos preocupamos com o parecer.
Mas, reconheço que a pequena mesquinhez pequeno-burguesa invade todas as áreas da nossa sociedade.
ESCRITOR MEDIÁTICO INTERVENTIVO
Da televisão à
escrita
Famoso pela sua participação no programa «A Noite da Má Língua» da SIC, Rui Zink é um escritor com múltiplas participações em géneros e iniciativas muito diferenciadas.
Professor de Estudos Portugueses na Universidade Nova de Lisboa, a sua obra estende-se pelos campos da ficção, ensaio e teatro. É autor de várias traduções e alguns dos seus livros foram traduzidos para alemão. Da sua obra destaque para «Os Surfistas», o primeiro e-book português e os romances «Hotel Lusitano», «Apocalipse Nau» e «O Suplente». Saliência, igualmente, para os livros de contos «A Realidade Agora a Cores» e «Homens-Aranhas», assim como a novela «A Espera».
Nascido em 1961, Zink assume-se como intelectual, com um papel a desempenhar no mundo que o rodeia.
No seu gabinete de docente universitário, recebeu o «Ensino Magazine» com a simplicidade de quem em curtas e poucas palavras diz muito. Versátil, inteligente, revelou-se tão interventor como o conhecemos. Interventor no sentido de dizer o que pensa, de acordo com o fio do seu raciocínio, sem ligar a padrões pré-estabelecidos, ao “politicamente correcto” de falar com um jornalista, mas.. fiel a si próprio. Afinal, ser intelectual passa por aí.
JA
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