Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano IV    Nº40    Junho 2001

Entrevista

PIRES DE LIMA ACUSA GOVERNO

"Estão a destruir o ensino do Direito"

O Bastonário da Ordem dos Advogados acusa o Governo de estar a destruir o ensino do Direito no nosso país. Em entrevista exclusiva ao «Ensino Magazine», Pires de Lima critica a falta de qualidade que diz existir nos cursos desta área. Denuncia que as licenciaturas abundam porque «é barato» fazê-las nascer e avisa que, depois dos médicos espanhóis, Portugal já está a ser invadido por advogados estrangeiros. Profissionais que vão dominar o mercado nacional, prevê o Bastonário.

O excesso de licenciados em Direito não pode contribuir para desprestigiar a profissão?

Não creio. O que sucede é que a Ordem dos Advogados tem a missão de receber os licenciados em Direito dando-lhes o indispensável aval para exercerem a profissão de advogado. No início do processo, os diplomados têm de frequentar um centro de formação, num período de três meses, no qual se procura adequar os seus conhecimentos obtidos na faculdade à realidade do mundo profissional em que vão entrar. Trata-se, ainda, de uma aproximação à vertente prática realizada em ambiente de sala de aula. Há um vasto conjunto de aspectos que são aí abordados, nomeadamente em termos deontológicos e de respeito pelas outras profissões, que a Ordem considera muito importantes. Caso obtenham aproveitamento no exame que depois lhes é apresentado, os licenciados iniciam, então, uma 2ª fase que dura 15 meses, durante a qual trabalharão com advogados e já em tribunais. Só passada esta fase, podem ser inscritos como advogados na Ordem. Reconheço que o processo é algo longo, mas é necessário ter a certeza absoluta de que o candidato a advogado reúne todas as condições indispensáveis para desempenhar as suas funções da forma mais adequada possível.

É complicado para a Ordem dirigir os processos de tantos candidatos a advogados?

Fazemos o melhor dentro das possibilidades. Não nos cabe seleccionar licenciados, mas apenas reconhecer que têm competência para exercerem a profissão. Não nos podemos responsabilizar, como é óbvio, pela formação que é ministrada nas instituições de ensino superior. Esse não é o nosso papel. Os números disponíveis indicam, no entanto, que há uma grande quantidade de candidatos. Há mais de 2500 alunos a estudarem actualmente no 5º ano de Direito em Portugal, portanto, em vésperas de se formarem. Por outro lado, mais de cinco mil pediram a concessão do título de advogado. Em cada mês que passa há mais uma centena de novos profissionais inscritos na Ordem o que dá bem a ideia do crescimento enorme do número de advogados.

Como avalia a explosão do ensino desta área em Portugal, verificada no aumento da quantidade de cursos e de alunos?

De modo negativo, porque não tem trazido nada de positivo para os alunos e o país no seu conjunto. A Ordem dos Advogados tem estado sempre atenta ao problema e continuamos a diligenciar no sentido de que sejam adoptadas as acções imprescindíveis para que seja solucionado. Temos pedido aos sucessivos governos para tomarem medidas no sentido de evitarem a multiplicação indiscriminada de cursos superiores. Não há trabalho para tantos novos advogados, é uma constatação factual de que todos os agentes com intervenção na questão devem estar conscientes. É certo que um jurista não está restringido a tal profissão, mas os estudantes também não são sensibilizados nem informados para outras alternativas a que podem recorrer. O Executivo actual, contudo, tem descurado o problema. Em relação às faculdades clássicas, que deviam servir de orientadoras do trabalho das outras, não lhes atribui as verbas necessárias para garantirem a qualidade que seria exigível. Quanto às privadas, retira-lhes instrumentos para a sua sobrevivência.

Não hesito em afirmar que o Governo está a destruir o ensino do Direito em Portugal. Não se preocupa com o facto de muitos jovens investirem muito dos seus sonhos, energias e trabalho na busca de uma formação que lhes permita serem profissionais competentes. As próprias famílias também dão o máximo de apoio possível, quantas vezes realizando sacrifícios para que o seu filho estude no curso que pretende. Há que ter respeito por tanto esforço. Portugal não pode menosprezar as potencialidades de muitas instituições que são credíveis e se dedicam ao ensino do Direito. Não pode, igualmente, desperdiçar as capacidades e formações dos seus jovens. Falou-se muito e continua-se a dizer que o país precisa de massa crítica e de apostar na Educação como via de ultrapassar os atrasos de desenvolvimento. Contudo, na prática, ou se tomam medidas erradas ou pura e simplesmente omitam-se as indispensáveis para cumprir esta tese geral com que todos parecem concordar. O problema não é de afirmar boas intenções ou objectivos teoricamente correctos, mas antes de se adoptarem as intervenções mais adequadas para as concretizar.

Porque é que as escolas criam tantos cursos e o Executivo os autoriza?

Em ambas as partes, pela mesma razão: é mais barato criá-los, porque não é preciso realizar avultados investimentos em laboratórios e equipamentos diversos. Há, pois, um motivo de cariz económico explicativo das actuações quer dos responsáveis de escolas privadas, quer do Executivo, descurando-se outros aspectos que deveriam ser considerados devidamente, nomeadamente os de tipo pedagógico e profissional.

É uma situação que tem como consequência o desprestígio do ensino universitário. O Governo não está nada interessado na qualidade desse ensino. Repare-se que, mesmo ao nível dos recursos humanos das instituições, uma grande parte das faculdades privadas em que se presta formação em Direito tem como professores recém-licenciados que ainda não têm a experiência necessária nem deram provas da sua competência, em termos profissionais. Há muitos casos em que o mesmo docente trabalha simultaneamente em três faculdades diferentes. Estes elementos revelam muito bem como a qualidade do ensino do Direito está ser fortemente prejudicada, com inevitáveis repercussões no futuro dos alunos e do próprio país.

Qual a intervenção que a Ordem dos Advogados pode ter nesta questão?

Verifica-se uma completa ausência de medidas no sentido de modificar a situação vigente. Se o ministro Marçal Grilo compreendeu a nossa preocupação, o seu sucessor, Guilherme de Oliveira Martins, não respeitou o compromisso assumido pelo anterior titular da pasta da Educação. Com o actual Governo não vale a pena, porque não está interessado em dialogar com os advogados. Abandonei a Comissão de Avaliação do Ensino Superior, uma vez que este organismo tem sido utilizado, em termos políticos, para transmitir a ideia para a opinião pública de que o Ministério da Educação está interessado e preocupado com a avaliação dos cursos superiores, o que não é verdade. Está hoje comprovada a enorme falência do ensino do Direito no nosso país. São também notórias as grandes dificuldades por que estão a passar as faculdades de Direito. Só um exemplo: em Fevereiro deste ano, a Clássica de Lisboa tinha carência de 91 docentes no seu quadro. O país não possui uma visão de razoabilidade sobre a formação de Direito. Note-se que os advogados portugueses continuam a estar excessivamente concentrados nos grandes centros urbanos, em detrimento das outras zonas do país. É apenas mais um problema que Portugal tem de enfrentar, mas para o qual os governantes não parecem estar muito preocupados.

Concorda com a ideia, defendida por muitos responsáveis, de que cabe ao mercado resolver o problema da empregabilidade dos licenciados?

Essa concepção é um perfeito disparate. Não faz qualquer sentido e só pode ser formulada por governantes que dirigem o país numa óptica meramente economicista são pessoas sem formação nos domínios do Direito e das Ciências Humanas e que não estão aptas para resolver um problema grave que Portugal tem: há um manifesto excesso de profissionais na área do Direito, como em muitas outras, para o mercado nacional. É conhecida a invasão de médicos espanhóis no nosso país. Mas, estão também a chegar advogados de outros países europeus, que se encontram melhor organizados e possuem uma melhor preparação para enfrentar os desafios profissionais do que os nossos licenciados. A continuar este estado de coisas, dentro em breve irão dominar o mercado, sem que os advogados nacionais tenham condições para os vencerem nesta concorrência por uma afirmação profissional.

Critica os nossos governantes, mas a maior parte deles são formados em Direito. É, então, um contra-senso o modo como tratam o problema do ensino desta área?

Teoricamente, podemos dizer isso. O problema central reside no facto dos dirigentes do país que obtiveram uma licenciatura em Direito, governarem-se da política e não do exercício das funções de advogado. Na minha perspectiva, essas pessoas não deveriam ser autorizadas a desempenharem simultaneamente a profissão de advogado. No entanto, nada se pode fazer porque são elas mesmas que elaboram as leis que se aplicam sobre os próprios. Tudo o que se tem passado demonstra que os nossos governantes não possuem a competência indispensável para tratarem do problema da formação de Direito e do da inserção dos licenciados no mercado de trabalho. São muito inábeis para o fazer, pelo menos, as acções que vêm vindo a tomar leva a conclui-lo. Nem o facto referido de muitos dos deputados e governantes portugueses serem diplomados em Direito conduziu a que olhassem para as dificuldades dos recém-licenciados com maior sensibilidade. É lamentável que assim seja. Em todo o caso, a Ordem dos Advogados continuará a pugnar para que os problemas dos jovens diplomados e juristas chegados à profissão sejam resolvidos da melhor maneira. Mantemos os nossos propósitos de que Portugal tenha bons advogados, bem formados e aptos a responderem aos desafios dos seus clientes, num mundo cada vez mais complexo, onde o Direito se assume como via essencial de resolução de conflitos. Nunca a Ordem deixará de cumprir as suas funções e prosseguirá o apoio que tem vindo a prestar aos jovens que se preparam para ser advogados. É um compromisso que garantimos.

Jorge Azevedo

 

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