HERNÂNI CARVALHO,
JORNALISTA DA RTP
"Timor foi uma
catarse nacional"

Foi um dos últimos jornalistas resistentes em Timor, quando a Indonésia forçou os homens da informação a abandonarem o território. Hernâni Carvalho, juntamente com 3 colegas portugueses, teimaram em manter viva para o mundo a voz de um povo martirizado 25 anos.
Em entrevista ao «Ensino Magazine», o jornalista da RTP lembra as suas experiências, expressa revoltas e analisa o presente e futuro do país do “sol nascente”. Entre o receio e a esperança…
«Timor foi uma catarse do povo português de uma descolonização mal feita». É o que defende Hernâni Carvalho, jornalista da RTP, um dos “heróis”da informação nacional, nos trágicos acontecimentos daquele território. Mas, se Timor representou para o nosso país «emendar a mão», Hernâni Carvalho não tem dúvidas de que «tudo na História tem de se efectuar num dado momento».
Antes de ir para Timor-Leste já este jornalista tinha contactado de perto com a morte. A Bósnia e as Honduras foram apenas dois locais onde assistiu a atrocidades. Por cá, também esteve na tragédia ferroviária de Alcafache. No país “do sol nascente”, o que mais o incomodou foi o modo como a morte ceifava vidas inocentes. Lá, como noutros sítios, o jornalista continua a ser humano. «Tive medo não o nego, eu e os colegas de trabalho que lá ficámos, naquela altura, tínhamos plena consciência do perigo e do sério risco que corríamos», confessa.
Hernâni Carvalho explica porque continuou no território com mais 3 jornalistas portugueses, depois de todos os outros terem partido: «alguém tinha de ficar para poder contar ao mundo o que se estava a passar, do nosso ponto de vista, isso era absolutamente imprescindível». A avaliação da situação foi muito clara: «percebi que a Indonésia tinha cometido um grande erro estratégico ao deixar entrar os profissionais da informação internacional em Timor-Leste, quando forçou-os a abandonar o território tentou emendá-lo».
Hernâni Carvalho recorda com emoção a forma carinhosa como foi recebido pelos timorenses: «trataram os jornalistas portugueses muito bem… às escondidas dos indonésios; claro que quando se aproximou o referendo, alguns tiveram coragem para o fazer mais abertamente». Trabalhar em Timor era um desafio atractivo. Antes «conseguia-se elaborar algumas notícias mas sempre à distância para contactos de alguém que estivesse no interior do território, ir lá era um sonho que se concretizou».
O massacre de 12 de Novembro persistia em marcar as memórias dos portugueses em geral e dos jornalistas, em particular. Investigar “in loco” o que se passava era incentivador. Em particular para Hernâni Carvalho que tinha tratado, por diversas vezes, o “dossier” de Timor-Leste.
Trabalhar no território poderia ser um teste à objectividade e rigor exigidos ao homem da informação, dada a forte emotividade que a questão causa em Portugal. Mas, Hernâni Carvalho não tem dúvidas que os seus trabalhos e dos colegas nacionais «mostrou que se faz bom jornalismo em Portugal, embora nem todo o jornalismo que se faz seja bom». «Não era necessário mas foi importante provar isso», sublinha, esclarecendo que «em Timor, ouvimos as versões das várias partes: dos independentistas, das milícias, dos representantes das Nações Unidas». Todos os critérios jornalísticos foram cumpridos, sem que interviesse nunca a opinião do profissional da RTP sobre a necessidade do território ser independente. Frontal, combate as teses pró-integração, argumentando que «aspectos positivos apontados como a formação de 600 licenciados timorenses nos tempos da anexação pela Indonésia esquecem que tal teve um preço elevado, com a tentativa, conseguida em parte, de destruição da cultura e da identidade de um povo». Esta foi a estratégia concretizada pelo invasor, recorrendo a múltiplos instrumentos como a transmigração, explica o jornalista da
RTP.
RECONHECIMENTO. Hernâni Carvalho já ganhou dois prémios pelos seus trabalhos em Timor-Leste, um deles em parceria com os outros 3 jornalistas que consigo ficaram nos momentos do auge da violência. Sem vaidades, marcando a humildade que normalmente caracteriza os grandes jornalistas, diz que as distinções «representam o reconhecimento pelos nossos pares da classe da qualidade dos trabalhos produzidos, mostrando aos colegas que, apesar de todas as dificuldades, continua a valer a pena exercer a profissão». Isto, claro, sem desvalorizar o reconhecimento pelo público, destinatário das reportagens enviadas.
Desengane-se quem pense que Hernâni Carvalho foi a Timor na busca de possíveis prémios ou de uma ascensão profissional. Como sublinha, «não pensava em nenhuma distinção e, depois do primeiro prémio, nunca pensei que receberia outro, quanto a promoções já tinha recebido uma antes de ir para o território».
O país do “sol nascente” ficará para sempre no coração e na alma de Hernâni Carvalho. Tudo o que lá viveu deixou as suas marcas. Raiva e lágrimas nos momentos (e tantos foram!) dolorosos, satisfação pelo acolhimento dispensado pelos timorenses, “mil e uma” emoções expurgadas nos momentos de trabalho e expressas num livro que publicou.
Salientar uma imagem mais marcante da experiência recolhida em Timor-Leste é difícil. Há muitas. Crianças a serem salvas ao atravessarem o arame farpado do edifício da UNAMET é apenas uma. Mas, Hernâni Carvalho ainda hoje se sente revoltado porque «soube já no território que um português tinha recebido, em Nova Iorque, um Prémio de Jornalismo para a Liberdade, por um trabalho em que afirmava que nada de grave se passava em Timor-Leste». Nuno Rocha é a personalidade a que se refere o jornalista da RTP.
O futuro da “terra do sol nascente” permanece uma incógnita. Hernâni Carvalho perspectiva que «Xanana Gusmão é imprescindível no processo de independência, porque é um factor de unidade entre os timorenses, mais até do que o bispo D. Ximenes Belo».
O jornalista quer que o novo país tenha «uma sociedade plenamente democrática e que não se subjugue a interesses exteriores, em troca de favores ou apoios».
O caminho não é fácil. Há conflitos políticos que podem reverter para trás o processo, avisa Hernâni Carvalho. Já da última vez que foi a Timor-Leste observou situações de que não gostou: «vi uma neo-colonização realizada pelos australianos e os funcionários das Nações Unidas a ganharem bastante mais do que os timorenses».
HISTÓRIAS. De regresso a Portugal, Hernâni Carvalho está a fazer um trabalho diferente. O seu programa «Histórias da Noite» é um desafio diferente. Serve para «mostrar ao público que quando apagam as luzes das suas casas, pelas cidades torna-se mais visível a acção das mafias, a marginalidade a actuar de forma descarada e a forma como a violência e a criminalidade estão a crescer fortemente».
Hernâni Carvalho responde aos políticos que acusam as televisões de serem, em parte, responsáveis pelo sentimento de insegurança da população, afirmando que «eles estão protegidos por agentes policiais».
Mas, não se pense que este homem da informação só gosta de trabalhos arriscados, de convívio estreito cm o perigo e a morte. Os trabalhos de cariz socio-religioso, por exemplo, agradam-lhe bastante, como foram os casos das transmissões directas de Fátima.
Para o futuro, Hernâni Carvalho tem um novo projecto em perspectiva. Ao «Ensino Magazine» revela apenas que será «substancialmente diferente daquilo que tenho feito». Ficamos, então, a aguardar por outros trabalhos deste jornalista que espera não ter um dia que «fazer um lifting ao exercício da profissão».
Em Timor-Leste, prossegue o caminho para a construção do primeiro novo país do milénio. Um percurso caracterizado por problemas de vária ordem. Olhar para o passado pode servir, ao menos, para evitar que se cometam erros semelhantes.
Para bem dos sorrisos das crianças timorenses...
Jorge Azevedo
Foto: Rui Gageiro, cedida pela revista TV Guia
A EXPERIÊNCIA EM TIMOR
Marcas para a vida

Não poderia ser de outra maneira. Um jornalista é um profissional que lida diariamente com a informação, mas é sempre humano. Timor, já se sabe, é uma causa nacional, talvez das poucas que este país tem. Os portugueses viveram o problema desta ex-colónia com grande emoção nos momentos do auge da violência. Se assim foi à distância, imagine-se o que sentiu quem lá esteve.
É o caso de Hernâni Carvalho. Juntamente com 3 companheiros “lusitanos”, manteve no plano internacional a voz de um povo pequeno mas de uma infinita resistência. Afastados no tempo, os momentos mais dramáticos, não estão nem nunca estarão – arriscamos dizê-lo – esquecidos da sua memória. É porque a vida é assim: há experiências marcantes que ficam para sempre, podem tornar-se menos nítidas, mas não desaparecem. É quando se percebe melhor que, por vezes, o jornalista não consegue “descolar” da pessoa normal igual a todas as outras. Talvez seja esse o fascínio da profissão.
Hernâni Carvalho é um caso de simplicidade de personalidade aliada à lucidez da análise. Foi premiado pelos trabalhos executados no território. Distinção justa a quem prestou um grande serviço a Portugal, a Timor-Leste e ao Jornalismo, sem nunca prever que assim seria. Diz-se que o sofrimento aproxima as pessoas, talvez que também aproxime os países, no caso Portugal e
Timor-Leste.
J.A.
Foto: Rui Gageiro, cedida pela revista TV
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