Director: João Ruivo    Publicação Mensal    Ano III    Nº25    Março 2000

 

Entrevista

CARLOS PINTO COELHO À CONVERSA COM JOAQUIM CARDOSO DIAS

O Senhor Acontece

A primeira vez que eu o vi aconteceu pela mão de um amigo comum, na exposição de um conhecido pintor, num fim de tarde de Outono. A primeira vez que ele falou de mim no “Acontece” foi no dia 3 de Maio de 1995. Lembro publicamente estes dois momentos, sem mais nada. De coração leve. Assim, como quem revê um dos mais inesquecíveis filmes da sua vida. E se agora falo deles é para sublinhar que nem sequer tive tempo de os comentar com Carlos Pinto Coelho, nesta conversa quase “cronometrada ao segundo”, dividida em duas partes, e que durou exactamente uma hora e dezoito minutos. E quando entrei no gabinete de trabalho de Carlos Pinto Coelho, no 5º andar do edifício - sede da RTP, senti que Deus também poderia ser o lugar onde estamos sozinhos. E durante o tempo da entrevista não consegui conter ou disfarçar o meu súbito nervosismo. E sei porquê, mas não vou explicar porquê. Direi tão - somente que me senti uma criança brincando às entrevistas, cercado de imagens como numa frase distraída nas palavras.

Carlos Pinto Coelho é o rosto e a voz de um grande senhor do jornalismo. Sem papas na língua, simpático, altivo e com qualquer coisa de aristocrático desvelou entre os olhos e a boca, o segredo de uma alma aquecida pelo “Acontece”, essa excelente rubrica da RTP 2. E sem presas, afirmo que o profissionalismo de Carlos Pinto Coelho ajuda-o a fazer o único programa diário de televisão da Europa, dedicado às coisas da cultura. Através do “Acontece” revela-se o conhecimento do que se passa nos meios artísticos, desde a pintura à dança, passando pela música e destacando, tantas vezes, as novidades literárias. E como escreveu Herberto Helder: “Descobri as poeiras que batiam como peixes no sangue”. E depois do fim, a pausa. Fico atento. E assim, acontece.

Porque não tem hoje uma rosa em cima da sua mesa de trabalho?

A jarra está aqui, como podes ver. Não a tenho hoje, porque a minha secretária está doente. Mas está aqui o testemunho de que esta mesa existe com uma flor em cima.

Mas porque é que precisa de uma flor em cima desta mesa?

Preciso de uma flor ao pé de mim. É um vício.

E esse olhar longo e pleno... o que é?

Não percebo a pergunta. Não me vejo assim. Honestamente essa pergunta deixa-me desconcertado. É a tua opinião e não me compete dar a minha opinião à tua opinião.

Sente-se que é um homem de solidão, apesar dos êxitos. Sempre foi assim?

Eu não sou um homem de solidão. Sou um homem a quem a vida enriqueceu com a melhor das companhias. Tenho quatro filhas maravilhosas e duas netas magníficas, e uma grande companheira. Sou um homem muito acompanhado. Não me considero um homem só.

A solidão é a terra fértil das ideias?

Não é obrigatório. São frases feitas. Há gente que precisa de se distrair de si mesma para criar. E depois existem os que precisam justamente do húmus da companhia e do diálogo para andar para a frente. Eu sou assim. Preciso desse húmus.

Então é também por isso que afirma que não sabe o que é o futuro?

Eu não sei o que é o futuro, porque não tenho certezas. Sou um homem sem certezas mas busco-as incessantemente, minuto a minuto. E o “já”, o momento presente é tudo quanto sei da vida. Só do presente posso ter garantias. E de mais coisa nenhuma.

Mas sabe onde está o seu passado.

Todos tempos memórias de nós. E como em todos os computadores a que chamamos cabeças, as memórias são sempre selectivas.
 
Há muitos anos, era uma vez um estudante a terminar o curso de Direito e nas vésperas de ser pai. Precisava de trabalhar e subiu as escadas do “Diário de Notícias”. Foi neste jornal que o apaixonante turbilhão das palavras lhe encheu a alma?

Não. As palavras entram em mim ainda na barriga da minha mãe. Aquilo que eu devo ao mundo da escrita e ao código das palavras devo-o sobretudo à minha mãe. O “Diário de Notícias” foi uma decorrência daquilo que já era, se quiseres, a minha esteira de provir. Não foi sem referências que escolhi subir as escadas do “Diário de Notícias”, e não descer as escadas de uma oficina de bate-chapas. A “palavra” significa para mim o mais fundo da minha raiz de reminiscência e o mais fundo recorrente do meu tempo actual. Não. Não foi no “Diário de Notícias” que me descobri nas palavras.

E como é que acontece a televisão na sua vida?

A televisão acontece por um inesperado convite. Estava eu a chefiar a secção de política internacional do “Jornal Novo”, que foi um marco histórico da impressa portuguesa, em 1976. Nesse tempo toda a imprensa portuguesa estava dominada pelo Partido Comunista. E houve um grupo de gente de esquerda, não do Partido Comunista, que resolveu fazer a aventura de fundar um jornal diário, dirigido pelo Artur Portela Filho. E onde estiveram, entre outros, o António Mega Ferreira, o...

Não o posso ajudar porque não conheço esse jornal.

Pois, eras muito novinho na altura, e eu hoje também estou particularmente cansado e a memória falha-me... o que é professor em Coimbra... o grande jornalista açoriano, que foi director do “Diário de Notícias”...

Ah, o Mário Mesquita.

É esse mesmo. Bom o “Jornal Novo” foi um grande núcleo de jornalismo e de coragem. Chegámos a ter de trabalhar com gente armada nos corredores, porque nos queriam fazer mal. Mas um belo dia veio um telefonema da administração da RTP dizendo se eu não me importava de passar por lá. E eu fui. Convidaram-me então para dirigir a política internacional do telejornal. Eu respondi que não sabia nada de política internacional; que era um homem da escrita, da imprensa. Pedi um tempo para pensar. Fui para casa. Nessa noite tinha bilhetes para o cinema. E saí de casa com a minha mulher. A meio do caminho demos por falta dos bilhetes. Voltámos a casa e estava tocando à campainha da porta um dos administradores da RTP, com quem eu tinha estado duas horas antes. E que me disse “ Depois de ter saído estivemos à conversa e resolvemos transformar o nosso convite, num convite para director - adjunto de informação da RTP “. E eu aceitei e já não fui ao cinema. E foi esta a maneira como entrei nesta casa. Mas foi uma maneira má. Entrar por cima não é bom. Importa sempre entrar por baixo; muito humilde; muito a fazer as coisas todas uma a uma, de picareta na mão. Eu não. Eu entrei logo por cima de pára-quedas. Logo director-adjunto de informação, em 1977.

E foi “pivot” do telejornal.

Sim, mas muito mais tarde. O meio é escolhido e depois temos que nos subordinar às ganâncias do meio. Parte integrante da televisão é ser visto e ser ouvido; ser mostrado; ser gesto e ser figura pública, que é o pior dos preços. E, portanto, foi apenas e tão só decorrente de um dia encarregar-me de apresentar o telejornal.

Recorda-se especialmente do “Carlos Filinto Botelho”?

Sim... sim (Risos) Não há entrevista nenhuma onde não tenha de vir o Herman. E eu digo sempre a mesma coisa. O “Carlos Filinto Botelho” já tem quinze anos. Considero o trabalho que o Herman fez comigo como um trabalho de muito humor, de muito respeito por mim e pelo meu trabalho. Nunca o Herman me tratou mal no sentido ético ou no sentido estético. Jamais. E eu tenho uma excelente e sólida amizade com o Herman José.

Tenho de voltar um pouco atrás para lhe perguntar se ser director de programas da RTP não o ajudou a mobilizar alguns dos seus ideais de juventude?

O poder normalmente arrasa os ideais de juventude, em vez de os estimular ou de os desenvolver. O cargo de director de programas da RTP é um cargo de grande poder, mas que eu cumpri com zelo, e com submissão ao dever de escravidão. E jamais quero voltar a esse cargo na minha vida, porque me desgastou profundamente. Foram quatro anos. Quatro longos anos. Mas a verdade é que me enriqueceu muitíssimo. Desde logo conheci esta casa, que é uma casa que tradicionalmente está partida em duas: o lado da informação e o lado dos programas. E quem habita uma, normalmente não conhece a outra. E eu passei a conhecer muito bem esta casa. Passei a conhecer muito mundo. O mundo físico, geográfico, cultural e de conteúdos televisivos. Mas não teve nada a haver com os meus ideais de juventude. Nada, mesmo.

Mas é a voz e o rosto de um grande senhor do jornalismo.

(Risos) O adjectivo é teu...

Mas não é verdade o meu adjectivo?

Não tenho de fazer comentários, outra vez, às tuas opiniões (Risos).

Há quem o considere, e eu também, que o Carlos Pinto Coelho é uma vedeta.

Porque é que achas que sou uma vedeta? Qual o conceito de vedeta para ti?

Bem, desta vez, eu é que faço as perguntas. Mas vedeta será todo aquele que é reconhecido entre os artistas, pelos artistas e pelo público.

Ah, então estás a falar de notoriedade. A notoriedade que é conferida pelo medium... e essa obviamente eu tenho. Desde o jovem GNR de uma estrada secundária, no coração profundo do Alentejo, que me ajudou dizendo “O senhor Acontece”; até ao Senhor Presidente da República que ontem à noite fez o favor de me dar uma entrevista exclusiva. Notoriedade, neste pequeno país... pois claro que a tenho. Mas tenho-a eu, como a têm todos os agentes do medium televisivo. E se vedeta é isso... Sim. Tenho. Sou.

Uma vez disse que teve muito tempo de pouca sorte. E a sorte passa. É como escreveu o João Miguel Fernandes Jorge: “Alguém tem de perder de longe em longe”.

Mas a vida é feita de fluxos e de refluxos. Não sou mais nada do que um simples ser humano a quem acontece tudo o que acontece a todos os outros seres humanos. Há momentos de maré alta e maré baixa. Claro que isto é com todos. Fala de todos... como de ti, Quim.

É por isso que diz que o meu tempo é cada vez mais curto. Como é que ajuda a prolongar esta frase tão cheia de melancolia?

A frase não está cheia de melancolia. A frase está carregada de obsessões. A minha obsessão pelo tempo é um estado profundo e hiperactivo. No sentido de que sei que a dádiva da vida que tenho neste minuto, não sei se a tenho daqui por um outro minuto a seguir. É outra vez a noção da certeza do tempo presente.

Mas eu acho isso tudo muito triste.

É a tua opinião. Para mim, não. Para mim é muito motivador. Obriga-me a um respeito pela vida, no que ela contêm de disponibilidade de si pelo corpo, pela alma e pelo espírito - as três fatias de que todos somos feitos. É em mim o grande sentido do dever. Não. Não tem nada de melancolia.

Sente que está a envelhecer?

(Silêncio) Claro que estou e alegremente. Eu gosto muito do tempo. Do tempo passado em cima de mim. E repito tantas vezes isto que se torna obsessivo: eu não queria voltar atrás no tempo. De todo.

Mas porquê essas palavras assim? Não percebo...

O tempo enriquece muito. Nós ocidentais aprendemos a castigarmo-nos, a fazer mal de nós. Ao contrário dos orientais. No oriente a idade é um bem. Um bem estimável, respeitável e alegre. As pessoas na China quando morrem antes dos oitenta anos, toda a gente veste luto, veste branco. Porque aquele não teve a dádiva da vida. Quando as pessoas morrem para além dos oitenta anos, toda a gente veste vermelho, veste alegria. Para mim, cada ano que passa é um enriquecimento que a vida me vai dando. E eu não tenho se não que cuidadosamente recolher esses bens, essas benesses, essa riqueza e depois ter a obsessão de saber aplicá-los. Daí a aguda noção do momento presente que tenho. E o agudo respeito pela vida. Envelhecer é um enriquecimento muito grande. E só quem passou pelas sucessivas etapas do envelhecimento pode saber. Eu já vou em 55 anos de idade e posso apreciar como estou mais rico aos 55, do que aos 40 ou aos 30. Não. Gosto muito de ir envelhecendo. Muito.

O “Acontece” nasceu de uma dor. Do desencanto da RTP o ter mandado para casa durante 14 meses. O “Acontece” nasceu com o Carlos Pinto Coelho em pijama. Conte-me esse episódio da sua vida?

Foi isso, sim. A RTP de então era uma RTP ditatorial, apostada numa vertigem. E embora eu seja director vitalício nesta empresa, com um lugar confortável...Tenho este meu gabinete e aquele gabinete ao lado e uma secretária, e o meu automóvel e a minha posição perfeitamente garantidas. Mas não é de todo isso que me preenche a vida. Tive de inventar recheio para uma noz prateada que me estavam a dar. E foi isso que eu fui fazer de pijama, para casa, durante 14 meses. Fui tentar encontrar um fórmula que, por um lado, preenchesse aquilo que me parecia ser uma grave lacuna na televisão em Portugal. Isto é, o jornalismo que havia até então era um jornalismo dirigido apenas à política, à economia e ao desporto. E porque é que neste país, que tem a mais baixa estatística de consumo de cultura da Europa, não haveria de existir um naipe de jornalistas que tratassem as coisas da cultura lato sensu, com as mesmas regras do jogo, as mesmas regras da pirâmide invertida para a construção da notícia, as mesmas regras de pesquisa na preparação da entrevista! Daí a ideia de um telejornal de cultura, que é um produto estritamente jornalístico. Não é um programa feito por senhores cultos para senhores cultos. É um programa feito por jornalistas de tarimba, para toda a gente.

A sua experiência de vida ajuda-o todos os dias a fazer o “Acontece”...

Às vezes. Sabes, o “Acontece” vai já no sexto ano de vida, e arrisca-se a ser um dos programas mais antigos da televisão portuguesa. E apesar disso todos os dias tenho uma surpresa no “Acontece”. E para as surpresas não há experiência de vida que resista.

E a incutir-lhe a sua personalidade...

Todos nós somos como o rei Midas, não é?

O “Acontece” é objectivo, crítico, divulgador. Concorda comigo?

Não em tudo. É muito pouco crítico. É muito divulgador. Mas não é tão crítico e tão polémico como eu desejaria de o ter já nesta altura, se não fossem alguns ventos desfavoráveis que neste momento sopram à minha volta...

Ventos? Que ventos?

Sim, ventos... E mais não digo. Não posso elaborar mais.

O que é que os seus mil e muitos “ Acontece” trouxeram às pessoas que religiosamente vêem o seu programa?

Pergunta-lhes a elas.

Pois sim... mas gostaria, também, da sua opinião.

Esta é a minha opinião, Quim (Risos).

Mas o “Acontece” é para uma elite, para uma minoria?

Não é para uma elite, mas é para uma grande minoria. Tudo o que é obra da criatividade tem públicos específicos. A cultura é um terreno de minorias. Foi isso na história. É-o na história e penso que o será sempre na história. o “Acontece” é um produto que escolheu ter um terreno de minoria. E eu sei desde logo que não tenho por noite 4 ou 5 milhões de pessoas a ver o programa como tem a telenovela que é um produto para maiorias. Mas tenho uma confortável minoria de 250 mil pessoas, todas as noites. É uma grande minoria, mas não é um elite.

Mas qual é verdadeiramente o segredo da frescura do “Acontece”?

É ser um produto puramente jornalístico e que não ambiciona ser outra coisa, senão isso.

E não deve o êxito ao seu rosto?

Não. Porque quando eu não estou o “Acontece” continua a vingar nas mesmas proporções.

No entanto, já não é a mesma coisa.

Não. Claro que é muito diferente. Mas todos nós somos diferentes. Eu insisto que a Florbela Godinho é uma excelente jornalista e uma grande apresentadora. E as audiências não quebram quando ela está no écran. Somos diferentes! Desde logo, eu sou menino e ela é menina (Risos).

Em portugal há quatro canais de televisão e há o que se pode chamar o canal Zero: o da cultura…

Qual é o Canal Zero que eu não conheço? Onde está ele, que eu vou já a correr para lá? O Canal Zero – o canal da cultura é uma coisa que tanta falta faz em Portugal. Um canal de minorias. Portugal já o poderia ter como têm outros países. E eu pergunto porquê?

E eu respondo: A guerra das audiências fala mais alto.

A guerra das audiências é uma falsa e tenebrosa questão em Portugal. Falsa, porque nasce de uma burla. O sistema de audimetrias praticado em Portugal é uma selva sem rei nem dono. Portugal é o único país da Europa ocidental onde uma empresa privada, lucrativa está sozinha e monopolista no mercado, fazendo as audiências que quer, como quer e com quem quer. Estes números não são nem controlados, nem verificados e nem fiscalizados. Somos o único país da Europa onde não há um Instituto Público, com a tutela do Estado, dizendo “Meu caro senhor, quais são os 540 lares portugueses onde logo à noite vai instalar os audimetros?” Eles dizem: “Não respondo, porque isso é segredo profissional.” O que significa que não há controle, mas margem para todas as dúvidas. E quando eu digo que é uma burla, quero também com isto significar que os critérios de instalação dos audimetros por esta entidade monopolista, são critérios onde se movem interesses económicos e publicitários. São critérios que se destinam a detectar compradores para produtos de mercado. E não critérios de audiência dos interesses dos portugueses; dos gostos, dos hábitos e das mudanças de hábitos do povo português. Os audimetros são postos ali onde há dinheiro para comprar o detergente; onde há dinheiro para comprar aquele determinado produto que está na moda. Por isso, eu afirmo que é uma burla o que está a acontecer em Portugal. E é óbvio que perante burlas o mínimo das atitudes para quem trabalha com alguma honestidade, e que é o meu caso, é pura e simplesmente não lhes dar a menor importância.

Então deixe-me perguntar-lhe agora se também acredita como Umberto Eco que a televisão estupidifica as pessoas cultas e cultiva as pessoas que têm uma vida estupidificante?

Isso não é uma pergunta. É o tema para uma enorme e importante dissertação. Posso responder, mas depois já não posso responder-te a mais nada. Devias ter-me dito que querias uma entrevista “a sério”, e não “meia-dúzia” de perguntas, como eu pensei.

Aceito… Mas a televisão gera superficialidade e mata o “porquê” das coisas.

A televisão mostra a novidade. Mas o medium que nos revela os “porquês” das coisas é naturalmente o livro e a imprensa. Ninguém pode fazer escola de vida, escola de cultura e escola de conhecimento vendo televisão. A televisão completa, mas não faz escola.

O prémio que lhe foi atribuído por um júri escolhido pelo Clube de Jornalistas não é mais um saboroso reconhecimento do seu trabalho?

Dos prémios que o “Acontece” tem recebido, e já tem alguns, o prémio Gazeta, do Clube de Jornalistas foi dos mais saborosos, porque foi atribuído pelos próprios pares. É o reconhecimento visto de quem é iminentemente crítico do métier, como eu sou. Foi sim, muito saboroso.

É isso a sua auto-estima a falar?

Não. A minha auto-estima quando vem ao cimo de mim faz-se por referência à minha própria consciência. A minha auto-estima cresce ou diminui numa relação de mim para comigo próprio. E nunca em relação com o exterior. Tenho uma construção muito sólida daquilo que é a minha essência, o meu percurso, o meu trajecto e o meu estar. A minha auto-estima pessoal faz-se intramuros. Não tem nada a haver com o que vem de fora. De vez em quando, o que há é aquela humana delícia de nos vermos bem vistos, com uma palmada no ombro.

Então sabe dizer-me qual o segredo da arte de comunicar.

Não sei se se pode chamar segredo. A comunicação como a pintura ou como a composição musical faz-se de arte e de técnica. As duas misturadas. E a técnica aprende-se, estuda-se, trabalha-se, com suor. A arte ou está íncita, ou nunca estará. A comunicação faz-se de uma mistura destas duas coisas. Mas não me sinto capaz de dar receitas a ninguém. Quem seria eu para fazer isso? Sei como é que eu gosto de olhar os bons comunicadores, que vou encontrando pela vida fora. E digo “Ah, aqui está a vocação. Aqui estão qualidades íncitas de DNA. E aqui está muito trabalho, muito estudo, muita perseverança”.

Mas isso é também o seu charme televisivo…

Outra vez a tua opinião. Eu não posso responder, Quim, nesses termos. Isso não é uma pergunta. O que é que eu hei-de dizer a isso? Senhor entrevistador passe adiante, por favor (Risos).

Afirma que entrevistar é a arte mais difícil do jornalismo. Mas é também a mais bela?

Eu continuo a pensar que o jornalista é o mensageiro. Ele carrega a mensagem e tem que se apagar perante a mensagem. O mais importante é a mensagem e nunca o mensageiro. Quando eu falei no género “entrevista” como a mais exigente na preparação, na condução e depois, sobretudo, a mais exigente de todas na transposição das mensagens, estou a falar em termos técnicos. Para mim, o encanto do mensageiro é sempre a mensagem. E a mensagem chama-se notícia. Essa é de longe o pilar, a razão de ser desta profissão que se chama “jornalista”. Dizer ao outro “Olha, aconteceu!” esta é a fatia nobre do jornalismo… A mais difícil tecnicamente, e aquela que deveria ser mais estudada nas faculdades de Jornalismo, nos seminários de comunicação, nas teses de doutoramento da comunicação é, sem dúvida, a entrevista.

Porque é que não gosta de ser entrevistado?

Eu não gosto de ser entrevistado porque me aborrece. É um exercício que eu faço apenas por respeito para com o entrevistador e por respeito pelas pessoas que vão ler a entrevista. Mas é dos exercícios mais fastidiosos da minha vida é dar entrevistas. Aborrece-me.

Esta fase da entrevista é a mais propícia para lhe pedir um comentário a esta sua afirmação: “Existe um eu que tem de governar a dualidade corpo e espírito. Humanamente, sinto muitas flutuações nessa gestão”. O que é que o leva a dizer que tem pudor em ir por aqui?

(Silêncio) Quando eu digo que tenho pudor, em falar nisso, é verdade, porque eu não tenho de me exibir na “Praça Pública” e ninguém tem o direito de me exigir isso. Quando digo que tenho pudor é, também, no sentido de guardar reserva; fazer a gestão do meu íntimo, só para mim. Não me obriguem a pôr isso na “Praça Pública”. Há aqui uma ginástica existencial complexa, e que se entende nesta entrevista que estamos fazendo agora, a partir daquilo que comecei logo por dizer ao princípio: a autoridade absoluta do instante. Deixem-me fazer a gestão desse exercício na minha solidão e na minha soberana intimidade.

Tenho então de lhe recordar outra das suas frases: “Como todos os seres humanos, sou uma química de masculino e feminino. Não recuso a minha costela feminina e assumo-a no corpo, na formação e na cultura masculina que tenho”. O Carlos Pinto Coelho é um homem muito raro...

Não. Não sou. Felizmente, a modernidade permitiu já que as pessoas informadas - e a primeira informação é sempre sobre si próprios - assumam com tranquilidade aquilo que é apenas um dado da natureza: todos nós nascemos hermafroditas. Hoje, a modernidade permite que isso seja não só dito, mas ouvido, discutido e conversado com a mesma tranquilidade de que um diz “Eu nasci com olhos azuis” e o outro diz “Pois, mas os meus olhos são verdes”. Apenas isso. Hoje já ninguém contesta a dualidade de sexo com que nós vimos ao mundo. E eu não fiz mais do que dizer uma coisa óbvia, natural e universal.

A imagem que guarda da sua mãe ajudou-o a erguer todas estas referências?

A minha mãe é a matriz não só do meu eu físico, mas a matriz do meu eu civilizacional. E mãe é mãe. É uma fonte. Esta é a imagem que eu guardo dela e de que me aproximo muitas vezes. Mas não é uma imagem osmótica, mas uma imagem muito idolatrada e muito amada. Quero com isto dizer, que a vida de um ser humano não pode ser reduzida a um ou dois factores. Nós temos de nos referenciar por triliões de referências e de contactos… Contactos anímicos, de memória e de contacto de novidades.

O Carlos pinto Coelho afirmou uma vez que o segredo reside na autenticidade. Mas nos nossos dias não é perigoso ser-se autêntico?

É perigoso mostrar-se…Mas não é perigoso ser-se.

(Silêncio) Sei que é um escritor à espera de se assumir. Como é que está o romance que anda a escrever?

Eu não sei se é um romance. A fórmula final daquele texto vai ser determinada pelo próprio texto. Dizia-me ontem o Manuel Alegre que não sabia se o romance que tinha escrito, se teria sido ele mesmo que o escreveu, ou se tinha sido o romance que se instalou e se escreveu a ele próprio, dentro dele próprio. E eu não sei que fórmula final literária vai ter a massa de texto que estou a escrever… Será aquilo que terá de ser… Aquilo que crescer por si próprio. Sinto que não é ainda o tempo. E tudo tem um tempo. Sinto que na trepidação brutal dos meus dias, as ideias para o texto literário não têm tempo de cair e de se acomodar e de se sedimentarem.

Mas é um livro sobre que tema ou sobre quem?

Não sei ainda. Tenho um magma muito grande cá dentro; tenho uma linha condutora. Sei o que gostaria que ele fosse. Mas não faço ideia nenhuma do que é que o meu livro vai ser.

Onde é que guardou a sua velha paixão, a fotografia?

A fotografia, para mim, não é uma paixão. A paixão é algo efémero que nos cega… Efémero. Curto. Toca e foge. A fotografia não é nem uma coisa efémera, nem uma coisa que me cega. Não é uma paixão.

Então o que é?

É um curso de vida que se instalou em mim. Foi ela que veio ter comigo. Eu não a fui buscar. Eu que não acredito em Deus, acredito nos mistérios – nos mistérios da vida. Satisfaz-me o acto de fotografar; o acto de procurar o motivo que vou fotografar. Fascina-me a concentração toda a que obriga o “Click” do instante fotográfico. E isso está por aqui. Estas fotos, aqui, à nossa volta são todas minhas.

E partilhar o seu olhar com sorrisos como o de Eva não é ter todo o poder do mundo?

É, sem dúvida, o poder do criador. Qualquer que seja o poder. E o poder do criador é sempre soberano; é sempre máximo. Eu também tenho esse poder. Todo o fotógrafo tem esse poder. Conceber um enquadramento e arrancar ao instante a perenidade. Chupar do efémero a eternidade… Isso é um poder maior.

Esse poder obriga-o a dizer: sonho ainda fazer tanta coisa…

Como toda a gente, eu sonho fazer tantas coisas. Não sei é quais. Sonho no sentido de que tenho o ímpeto para a coisa nova. Estou aberto para novos ímpetos, para novas descobertas, para um novo impulso criador. E eu digo: Sonho não adormecer. Sonho poder continuar acordado e desperto para aprender o que à minha volta se move. Sonho estar acordado para o pensamento ou até para a mudança de mim próprio.

Joaquim Cardoso Dias

 

 

MÁRIO FERREIRA DE ALMEIDA

O pintor rebelde

 


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