Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XIII    Nº148   Junho 2010

Entrevista

JORGE PELICANO, EM ENTREVISTA

Documentar Mundos Esquecidos

Jorge Pelicano olha, escuta e sente o mundo que o rodeia, e é o realizador premiado de dois documentários bem conhecidos do grande público. Com Ainda há Pastores? venceu prémios nacionais e internacionais, mas prefere ver os Prémios como uma motivação para seguir em frente, o que faz em Pare.Escute.Olhe. Um documentário interventivo sobre o encerramento da linha ferroviária do Tua, em que retoma o tema do despovoamento do interior do país, e da perda de identidades culturais. O realizador que gosta de abordagens de mundos que estão a desaparecer, lamenta que hoje se viva a ditadura do número, e a solidariedade seja sempre feita no sentido do interior para o litoral. A acompanhar o estágio da selecção nacional como repórter de imagem da Sic, prepara-se para partir para a África do Sul. O respeito pelo outros, e pela maneira como vivem, fazem parte da bagagem que segue com ele para cada trabalho de realização que faz, e compara à pesca, pois é preciso saber esperar, para conseguir uma boa história.

Com o documentário, Ainda há Pastores?, o país ficou a conhecer o Hermínio, um pastor da Serra da Estrela cuja vida acompanhou durante cinco anos. O que acredita que mudou para o Hermínio, e para si, durante essa convivência?


De certa maneira foi um marco importante quer para a minha vida, quer para a vida do Hermínio. Os dois éramos perfeitos desconhecidos e de repente começou toda a gente a conhecer, quer o meu trabalho, quer a pessoa com quem eu trabalhei. Para nós foi uma surpresa, e uma conquista, também. Aproximamo-nos aos poucos - apesar dessa aproximação ser muito rápida, demorou duas ou três semanas - mas fomo-nos conhecendo e compreendendo, sem saber muito bem o que é que estava a acontecer. Isto no meio de muita inocência. Só depois do filme estar feito é que percebi que eu era o realizador, e ele percebeu que era o protagonista deste documentário. Vivemos essas emoções totalmente em conjunto, e perguntámos um ao outro «o que é que é isto?».

O abandono da linha ferroviária do Tua e o despovoamento do interior do país dão o mote para Pare.Escute.Olhe. O que é determinou a decisão de fazer este documentário?


Ainda na sequência de o Ainda há Pastores? queria aprofundar um pouco mais este tema do despovoamento, da perda das identidades, e de um determinado tipo de cultura. Nessa linha de continuidade fui para Trás-os-Montes, que é um dos distritos mais despovoados de Portugal, e peguei nas linhas de caminho de ferro para falar desse despovoamento. Quando se tenta desactivar este caminho de ferro, significa que já não há pessoas para o comboio transportar. Por outro lado, era importante fazer um filme militante e interventivo, do ponto de vista de quem vive naquela região, e de um ponto de vista mais humano. Hoje em dia vivemos a ditadura do número, em que por vezes, conta mais do que as pessoas. Dou exemplos: se não houver um determinado número de pessoas para viajar num comboio, acaba-se o comboio; se não há um determinado número de nascimentos, acaba-se com as maternidades; se não há um determinado número de pessoas para um Centro de Saúde, à noite, encerra-se o centro de Saúde, à noite. Queremos humanizar a nossa sociedade, e dar o ponto de vista das pessoas que precisam destas infra-estruturas para viver de uma forma digna.

Estava à espera de encontrar uma população revoltada em Trás-os-Montes, mas foi uma população resignada que encontrou. Porquê esta resignação?


Sim, inicialmente era meu objectivo fazer um filme de luta, um filme do povo, porque a sociedade está muito adormecida. Quando cheguei a Trás-os-Montes fui à procura dessa revolta, até porque em 1992 metade da linha ferroviária do Tua foi desactivado, os comboios foram levados da estação de Bragança com a promessa que voltariam. Essa foi uma das muitas promessas que não foram cumpridas para com os Transmontanos. Outro exemplo é a auto-estrada, que já há mais de vinte anos que está prometida para aquela região. Hoje em dia é o único Distrito do país que não tem um único quilómetro de auto-estrada. Portanto há muitas injustiças com este povo Transmontano, ou seja, a solidariedade é sempre no sentido do Interior para o Litoral, e não o contrário. Então pensava que essas pessoas estavam revoltadas, e elas estavam revoltadas sim, mas não demonstravam isso, estavam acima de tudo resignadas. Numa primeira fase fiquei muito desiludido com isso, com a resignação dos Transmontanos. Numa fase posterior é que percebi que o facto das pessoas estarem resignadas, e de já não haver luta, aí é que estava a história. E isso é a história do despovoamento, não há luta, porque não há pessoas para poder lutar.

Está a acompanhar a exibição de Pare. Escute. Olhe por algumas salas do país, enquanto público também podemos parar, escutar e olhar, ou esta é sobretudo uma mensagem para os nossos políticos?


É uma mensagem para toda a sociedade, público e políticos. Este filme não deve só chegar ao público, deve também chegar aos políticos. Se calhar ainda não chegou aos sítios certos, mas vamos fazer os possíveis para que chegue. Pelos pontos em que tenho passado e acompanhado o filme, o que acontece é que há sempre um longo debate. Constato que o filme toca nas pessoas, e elas perguntam-nos como é possível intervirem também, ajudarem. Notei que havia um grande desconhecimento, pela parte do grande público, desta questão. As pessoas perguntam “ Como é que podemos ajudar para esta causa ?”. Através do nosso site Pare.Escute.Olhe.com temos várias formas de poderem também participar com a sua opinião, opinião que posteriormente será enviada aos deputados da Assembleia da República, no Parlamento Europeu.

O crescente despovoamento do Interior do país é uma realidade que pode mudar, ou já entramos numa via sem retorno?


Se não se alterarem as políticas, não há nada a fazer. Isto é uma bola de neve, vai havendo menos gente, encerram-se as escolas, encerram-se as maternidades, as pessoas emigram, fecham-se os Centros de Saúde, as linhas de Caminho de Ferro. A única maneira de dar volta a isto é criar emprego naquelas regiões, para fixar as pessoas. Terá de haver uma mudança de mentalidade dos nossos dirigentes políticos. Não só dos políticos do poder central, mas dos autarcas locais, e tem de haver uma união de todos.

Quando se fala tanto de TGV ainda haverá lugar para uma pequena linha como a do Tua?


Acho que sim. Nós temos de pensar no país como um todo. Porquê é que se fala em TGV? Por que a maior parte das pessoas foram para o Litoral, e é aí que se vão fazer os principais investimentos. Infelizmente deixam estas áreas mais despovoadas para trás. O país não pode ser só TGVs e auto-estradas, tem de haver um equilíbrio a nível de infra-estruturas e obras públicas em todo o país. O país tem de ser visto como um todo.

Quando faz, faz bem e os seus documentários acabam sempre por ser premiados. Qual é o significado mais secreto de um prémio?

É uma motivação, essencialmente. Quando acabo um filme tenho sempre muitas dúvidas sobre o trabalho que fiz. É uma certeza, é sinal de facto que aquilo que pensava que podia funcionar, funcionou. No caso do Pare. Escute. Olhe, mais importante que os prémios é a mensagem, é a missão que o filme tem de suscitar o debate na opinião pública, um alerta e também uma reflexão. Parar, escutar e olhar significa reflectir, e este documentário passa para além das Montanhas de Trás-os-Montes, é um documentário sobre o nosso país. Mas os prémios são uma motivação para seguir em frente, e é óbvio, não vou ser hipócrita, é uma enorme felicidade para mim.

Encontra-se a acompanhar o estágio da selecção nacional na cidade da Covilhã, como tem sido o dia-a-dia com a selecção?


A primeira semana foi mais ou menos tranquila, ainda tínhamos cá poucos jogadores. Com a chegada dos restantes, e com a chegada da principal estrela da selecção, o Cristiano Ronaldo é mais animado, entre aspas, ou pelo menos há mais trabalho. Com o Cristiano Ronaldo chegam jornalistas de todo o mundo, que vão acompanhar não só o jogador, mas a selecção. É também uma enorme ansiedade, é o meu primeiro mundial de futebol. Estou motivado em ir arranjando histórias, e ir-me preparando para aquilo que vamos encontrar na África do Sul, que de certeza será por um lado bastante cansativo, mas por outro lado, acho que vai ser muito motivador.

Que características tem como pessoa, para ser o realizador que é?

Acho que sou uma pessoa que me consigo socializar bem nos sítios onde estou a filmar. Consigo de uma forma muito rápida entrosar-me com os meus personagens e ganhar a confiança deles. Isto acontece porque respeito muito os valores; das pessoas e a sua maneira de viver. Sei bem que viver naqueles locais é uma coisa, e passar lá três, ou quatro dias a filmar, e depois voltar novamente para Lisboa, é outra. Respeito as pessoas, sou um ser humano normal e acho que isso é muito importante para conseguir ganhar a intimidade para depois as documentar com à vontade, à vontade que é também a confiança que elas têm em mim. Talvez isto seja um dos segredos. Por outro lado, adoro conviver com as pessoas idosas, que vivem naquelas aldeias mais isoladas, que são para mim mundos cada vez mais distantes da nossa sociedade moderna. Mas esse distanciamento é o que me fascina a conhecê-los cada vez melhor.

Os seus documentários demoram anos a fazer, nada é supérfluo. É preciso paciência e entrega?

Tenho um crescimento um bocado atípico, começo pela prática, e agora é que estou a teorizar aquilo que faço, e normalmente é o contrário. Vamos para as escolas, aprendemos a teoria, e depois pomos a teoria em prática. Aprendo muito com os meus erros. Tento sempre ter abordagens totalmente diferentes, ou pelo menos de um ponto de vista diferente. Uma das coisas que aprendi, para responder à pergunta, foi saber esperar. Fazer um documentário é como pescar. Para conseguirmos o melhor peixe, por vezes demora cerca de duas, três horas, e temos de ter essa paciência. Não podemos chegar a um local e provocar as coisas, temos de ficar à espera, saber olhar, saber ouvir e é importante sentir o espaço onde estamos integrados, porque é um espaço que não é nosso. É importante a aproximação psicológica a esse lugar. Lembro-me que numa das estações, que é a estação da Ribeirinha, a principal estação do filme, ia muitas das vezes para aquela estação com um planeamento pré-definido, uma ideia na cabeça de que a minha personagem falasse de uma determinada coisa, e muitas vezes isso não se proporcionava, e ficava bastante desiludido. Mais tarde percebi “não, eu tenho é de saber esperar”. Porque muitas das vezes quando ia para essa estação não se passava nada. Mas a história é mesmo essa, é que não se passa nada. Tenho de saber entender que a realidade é assim mesmo. Se na realidade não se passa nada, é isso que tenho de passar para o filme. No meu documentário há alguns períodos de silêncio, porque aquilo que quero transmitir é de facto essa monotonia, esse silêncio, e isso só é possível através de uma espera. Não tenho guião para os meus filmes, simplesmente vou para os locais e tento documentar aquilo que se passa. Acho que consegui isso.

Eugénia Sousa


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