JORGE PELICANO, EM
ENTREVISTA
Documentar Mundos
Esquecidos

Jorge Pelicano olha, escuta e sente o
mundo que o rodeia, e é o realizador premiado de dois documentários bem
conhecidos do grande público. Com Ainda há Pastores? venceu prémios
nacionais e internacionais, mas prefere ver os Prémios como uma
motivação para seguir em frente, o que faz em Pare.Escute.Olhe. Um
documentário interventivo sobre o encerramento da linha ferroviária do
Tua, em que retoma o tema do despovoamento do interior do país, e da
perda de identidades culturais. O realizador que gosta de abordagens de
mundos que estão a desaparecer, lamenta que hoje se viva a ditadura do
número, e a solidariedade seja sempre feita no sentido do interior para
o litoral. A acompanhar o estágio da selecção nacional como repórter de
imagem da Sic, prepara-se para partir para a África do Sul. O respeito
pelo outros, e pela maneira como vivem, fazem parte da bagagem que segue
com ele para cada trabalho de realização que faz, e compara à pesca,
pois é preciso saber esperar, para conseguir uma boa história.
Com o documentário, Ainda há Pastores?, o país ficou a conhecer o
Hermínio, um pastor da Serra da Estrela cuja vida acompanhou durante
cinco anos. O que acredita que mudou para o Hermínio, e para si, durante
essa convivência?
De certa maneira foi um marco importante quer para a minha vida, quer
para a vida do Hermínio. Os dois éramos perfeitos desconhecidos e de
repente começou toda a gente a conhecer, quer o meu trabalho, quer a
pessoa com quem eu trabalhei. Para nós foi uma surpresa, e uma
conquista, também. Aproximamo-nos aos poucos - apesar dessa aproximação
ser muito rápida, demorou duas ou três semanas - mas fomo-nos conhecendo
e compreendendo, sem saber muito bem o que é que estava a acontecer.
Isto no meio de muita inocência. Só depois do filme estar feito é que
percebi que eu era o realizador, e ele percebeu que era o protagonista
deste documentário. Vivemos essas emoções totalmente em conjunto, e
perguntámos um ao outro «o que é que é isto?».
O abandono da linha ferroviária do Tua e o despovoamento do interior
do país dão o mote para Pare.Escute.Olhe. O que é determinou a decisão
de fazer este documentário?
Ainda na sequência de o Ainda há Pastores? queria aprofundar um pouco
mais este tema do despovoamento, da perda das identidades, e de um
determinado tipo de cultura. Nessa linha de continuidade fui para
Trás-os-Montes, que é um dos distritos mais despovoados de Portugal, e
peguei nas linhas de caminho de ferro para falar desse despovoamento.
Quando se tenta desactivar este caminho de ferro, significa que já não
há pessoas para o comboio transportar. Por outro lado, era importante
fazer um filme militante e interventivo, do ponto de vista de quem vive
naquela região, e de um ponto de vista mais humano. Hoje em dia vivemos
a ditadura do número, em que por vezes, conta mais do que as pessoas.
Dou exemplos: se não houver um determinado número de pessoas para viajar
num comboio, acaba-se o comboio; se não há um determinado número de
nascimentos, acaba-se com as maternidades; se não há um determinado
número de pessoas para um Centro de Saúde, à noite, encerra-se o centro
de Saúde, à noite. Queremos humanizar a nossa sociedade, e dar o ponto
de vista das pessoas que precisam destas infra-estruturas para viver de
uma forma digna.
Estava à espera de encontrar uma população revoltada em
Trás-os-Montes, mas foi uma população resignada que encontrou. Porquê
esta resignação?
Sim, inicialmente era meu objectivo fazer um filme de luta, um filme do
povo, porque a sociedade está muito adormecida. Quando cheguei a
Trás-os-Montes fui à procura dessa revolta, até porque em 1992 metade da
linha ferroviária do Tua foi desactivado, os comboios foram levados da
estação de Bragança com a promessa que voltariam. Essa foi uma das
muitas promessas que não foram cumpridas para com os Transmontanos.
Outro exemplo é a auto-estrada, que já há mais de vinte anos que está
prometida para aquela região. Hoje em dia é o único Distrito do país que
não tem um único quilómetro de auto-estrada. Portanto há muitas
injustiças com este povo Transmontano, ou seja, a solidariedade é sempre
no sentido do Interior para o Litoral, e não o contrário. Então pensava
que essas pessoas estavam revoltadas, e elas estavam revoltadas sim, mas
não demonstravam isso, estavam acima de tudo resignadas. Numa primeira
fase fiquei muito desiludido com isso, com a resignação dos
Transmontanos. Numa fase posterior é que percebi que o facto das pessoas
estarem resignadas, e de já não haver luta, aí é que estava a história.
E isso é a história do despovoamento, não há luta, porque não há pessoas
para poder lutar.
Está a acompanhar a exibição de Pare. Escute. Olhe por algumas salas
do país, enquanto público também podemos parar, escutar e olhar, ou esta
é sobretudo uma mensagem para os nossos políticos?
É uma mensagem para toda a sociedade, público e políticos. Este filme
não deve só chegar ao público, deve também chegar aos políticos. Se
calhar ainda não chegou aos sítios certos, mas vamos fazer os possíveis
para que chegue. Pelos pontos em que tenho passado e acompanhado o
filme, o que acontece é que há sempre um longo debate. Constato que o
filme toca nas pessoas, e elas perguntam-nos como é possível intervirem
também, ajudarem. Notei que havia um grande desconhecimento, pela parte
do grande público, desta questão. As pessoas perguntam “ Como é que
podemos ajudar para esta causa ?”. Através do nosso site
Pare.Escute.Olhe.com temos várias formas de poderem também participar
com a sua opinião, opinião que posteriormente será enviada aos deputados
da Assembleia da República, no Parlamento Europeu.
O crescente despovoamento do Interior do país é uma realidade que
pode mudar, ou já entramos numa via sem retorno?
Se não se alterarem as políticas, não há nada a fazer. Isto é uma bola
de neve, vai havendo menos gente, encerram-se as escolas, encerram-se as
maternidades, as pessoas emigram, fecham-se os Centros de Saúde, as
linhas de Caminho de Ferro. A única maneira de dar volta a isto é criar
emprego naquelas regiões, para fixar as pessoas. Terá de haver uma
mudança de mentalidade dos nossos dirigentes políticos. Não só dos
políticos do poder central, mas dos autarcas locais, e tem de haver uma
união de todos.
Quando se fala tanto de TGV ainda haverá lugar para uma pequena linha
como a do Tua?
Acho que sim. Nós temos de pensar no país como um todo. Porquê é que se
fala em TGV? Por que a maior parte das pessoas foram para o Litoral, e é
aí que se vão fazer os principais investimentos. Infelizmente deixam
estas áreas mais despovoadas para trás. O país não pode ser só TGVs e
auto-estradas, tem de haver um equilíbrio a nível de infra-estruturas e
obras públicas em todo o país. O país tem de ser visto como um todo.
Quando faz, faz bem e os seus documentários acabam sempre por ser
premiados. Qual é o significado mais secreto de um prémio?
É uma motivação, essencialmente. Quando acabo um filme tenho sempre
muitas dúvidas sobre o trabalho que fiz. É uma certeza, é sinal de facto
que aquilo que pensava que podia funcionar, funcionou. No caso do Pare.
Escute. Olhe, mais importante que os prémios é a mensagem, é a missão
que o filme tem de suscitar o debate na opinião pública, um alerta e
também uma reflexão. Parar, escutar e olhar significa reflectir, e este
documentário passa para além das Montanhas de Trás-os-Montes, é um
documentário sobre o nosso país. Mas os prémios são uma motivação para
seguir em frente, e é óbvio, não vou ser hipócrita, é uma enorme
felicidade para mim.
Encontra-se a acompanhar o estágio da selecção nacional na cidade da
Covilhã, como tem sido o dia-a-dia com a selecção?
A primeira semana foi mais ou menos tranquila, ainda tínhamos cá poucos
jogadores. Com a chegada dos restantes, e com a chegada da principal
estrela da selecção, o Cristiano Ronaldo é mais animado, entre aspas, ou
pelo menos há mais trabalho. Com o Cristiano Ronaldo chegam jornalistas
de todo o mundo, que vão acompanhar não só o jogador, mas a selecção. É
também uma enorme ansiedade, é o meu primeiro mundial de futebol. Estou
motivado em ir arranjando histórias, e ir-me preparando para aquilo que
vamos encontrar na África do Sul, que de certeza será por um lado
bastante cansativo, mas por outro lado, acho que vai ser muito
motivador.
Que características tem como pessoa, para ser o realizador que é?
Acho que sou uma pessoa que me consigo socializar bem nos sítios onde
estou a filmar. Consigo de uma forma muito rápida entrosar-me com os
meus personagens e ganhar a confiança deles. Isto acontece porque
respeito muito os valores; das pessoas e a sua maneira de viver. Sei bem
que viver naqueles locais é uma coisa, e passar lá três, ou quatro dias
a filmar, e depois voltar novamente para Lisboa, é outra. Respeito as
pessoas, sou um ser humano normal e acho que isso é muito importante
para conseguir ganhar a intimidade para depois as documentar com à
vontade, à vontade que é também a confiança que elas têm em mim. Talvez
isto seja um dos segredos. Por outro lado, adoro conviver com as pessoas
idosas, que vivem naquelas aldeias mais isoladas, que são para mim
mundos cada vez mais distantes da nossa sociedade moderna. Mas esse
distanciamento é o que me fascina a conhecê-los cada vez melhor.
Os seus documentários demoram anos a fazer, nada é supérfluo. É
preciso paciência e entrega?
Tenho um crescimento um bocado atípico, começo pela prática, e agora é
que estou a teorizar aquilo que faço, e normalmente é o contrário. Vamos
para as escolas, aprendemos a teoria, e depois pomos a teoria em
prática. Aprendo muito com os meus erros. Tento sempre ter abordagens
totalmente diferentes, ou pelo menos de um ponto de vista diferente. Uma
das coisas que aprendi, para responder à pergunta, foi saber esperar.
Fazer um documentário é como pescar. Para conseguirmos o melhor peixe,
por vezes demora cerca de duas, três horas, e temos de ter essa
paciência. Não podemos chegar a um local e provocar as coisas, temos de
ficar à espera, saber olhar, saber ouvir e é importante sentir o espaço
onde estamos integrados, porque é um espaço que não é nosso. É
importante a aproximação psicológica a esse lugar. Lembro-me que numa
das estações, que é a estação da Ribeirinha, a principal estação do
filme, ia muitas das vezes para aquela estação com um planeamento
pré-definido, uma ideia na cabeça de que a minha personagem falasse de
uma determinada coisa, e muitas vezes isso não se proporcionava, e
ficava bastante desiludido. Mais tarde percebi “não, eu tenho é de saber
esperar”. Porque muitas das vezes quando ia para essa estação não se
passava nada. Mas a história é mesmo essa, é que não se passa nada.
Tenho de saber entender que a realidade é assim mesmo. Se na realidade
não se passa nada, é isso que tenho de passar para o filme. No meu
documentário há alguns períodos de silêncio, porque aquilo que quero
transmitir é de facto essa monotonia, esse silêncio, e isso só é
possível através de uma espera. Não tenho guião para os meus filmes,
simplesmente vou para os locais e tento documentar aquilo que se passa.
Acho que consegui isso.

Eugénia Sousa
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