Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XII    Nº140    Outubro 2009

Entrevista

JOSÉ ADELINO MALTEZ, POLITÓLOGO

«O "Sô Doutor" é uma instituição nacional»

É um dos comentadores políticos mais requisitados da actualidade. Catedrático em Ciência Política, José Adelino Maltez diz que o sistema e o país vivem em «esquizofrenia colectiva» e estão dominados pela «canalhocracia» e pela «cunhocracia». Apelida o caso das alegadas escutas entre S. Bento e Belém como «o Watergate dos pastéis» e considera que a estabilidade governamental depende do rumo das negociações necessárias num cenário de maioria relativa. O académico critica os partidos por serem um «deserto de ideias» devido ao facto de ignorarem o potencial das universidades. Entende a procura por Medicina como uma «obsessão doentia» e preconiza a deslocalização de cursos dos grandes centros para o interior de modo a repovoar as zonas de Portugal mais deprimidas.
 

Como caracterizaria o regime político em que vivemos?

A «canalhocracia», termo atribuído a D. Pedro V, quando o Partido Regenerador desapareceu, aplica-se bem ao regime político actual. Este é o melhor regime político português de sempre em termos comparados, o que não significa que não tenha envelhecido, manifestando sinais de grande cansaço. Ao fim de 30 e tal anos considero este regime infuncional, não cumprindo os objectivos iniciais. Estamos quase a atingir os anos de governo de Salazar e ainda continuamos com medo dele. Não será fácil substituir esta «canalhocracia» que se baseia na partidocracia. Creio que isto só lá vai por tentativas. A actual elite não aprende com os fundadores da democracia.
 

Como é que se pode inverter este estado de coisas?

Deixe-me contar-lhe uma coisa que poucos sabem e é uma das maiores vergonhas da democracia portuguesa: actualmente, apenas Portugal, Islândia e Malta não têm elementos reconhecidos pelo único organismo global de combate à corrupção que é a «Transparência Internacional». Está mais do que provado que neste sistema global não são as leis, nem as declarações de magistrados, como acontece por cá, que são eficazes neste combate desigual. É preciso ter a coragem de chamar os bois pelos nomes e afirmar que Portugal também é corrupto, e clamar pela legalização dos lóbis e dos grupos de pressão, como nos Estados Unidos e na Europa. Recentemente, uma grande empresa portuguesa de lobbying fez um requerimento à Assembleia da República e de lá responderam que em Portugal não existiam lóbis. Estão a gozar com quem? A maior parte da corrupção é importada, meta-sistémica. Teimamos em querer ficar orgulhosamente sós e estúpidos no combate à corrupção. Chegámos ao caricato de os cabeças de corrupção portugueses terem o desplante de fazer discursos contra a corrupção.
 

Em que situações concretas se manifesta a corrupção na política doméstica?

Em Portugal há uma mistura muito engraçada, em que o ministro honesto se rodeia de secretários de Estado corruptos ou o ministro corrupto arranja secretários de Estado honestos.
 

A corrupção é o maior cancro da democracia?

É um deles. Primeiro a corrupção enquanto processo de compra de poder e depois o indiferentismo. Ambos, juntos, são mais destrutivos do que a partidocracia e o caciquismo, afastando o cidadão de participar em mecanismos cívicos.
 

O Poder Local tem sido muito visado pelas suspeitas de corrupção. Não se corre o risco de generalizar e de pagar o justo pelo pecador?

A esmagadora maioria dos autarcas portugueses servem, não se servem. Infelizmente deixámos criar uma imagem que é: autarca é igual a «pato bravo», «pato bravo» é igual a corrupto. Ligar as autarquias à corrupção é criminoso e pode desmobilizar as melhores energias que temos no meio político. Não me engano muito se disser que tomara a muitos políticos verem-se livres da corrupção, eles não têm é coragem.
A começar pelo Presidente da República. Cavaco devia chamar os partidos a Belém e anunciar a criação de um código deontológico contra a corrupção.
 

O caso de Isaltino Morais é emblemático. O autarca de Oeiras foi condenado por vários crimes, mas a sentença está sujeita a recurso. O que pode significar a multiplicação destes casos para a democracia?

Com a limitação de mandatos em vigor, grande parte dos caciques não vai poder recandidatar-se. O que nos pode acontecer? Os «dinossauros» chateiam-se com os seus partidos e fundam um partido independente, ao jeito do sr. Madaleno, do PTP. As próximas eleições arriscam-se a ter dezenas de novos partidos. Isso seria a democracia transformada num forrobodó. Deixe-me salientar apenas que este regime tem muitas lacunas, mas apresenta dois aspectos muito positivos e que não estavam previstos no programa original do MFA, tendo o povo imposto a lei: as autarquias e as regiões autónomas.
 

Como se explica que o povo acabe por sufragar, como em Oeiras, políticos condenados?

Isso acontece num dos concelhos mais ricos da Grande Lisboa. Em São Paulo, existiam candidatos a «prefeitos» que diziam, «eu roubo, mas faço». O caso Isaltino é mais complexo do que se pensa. É um falso preconceito da democracia portuguesa dizer que o cacique não é democrata. É como o Alberto João Jardim. O grande problema de Portugal não é haver um Alberto João, mas sim não haver 30 tipos como ele em competição, deixando que esse governante concentre em si o poder. Por outro lado, é grande a cobardia dos grandes partidos que nos concelhos onde sabem que vão perder, mandam candidatos das segundas linhas. Este tipo de manutenção de lideranças, especialmente na zona de Lisboa, resulta da cobardia do concorrente.
 

Decência e a ética democrática são conceitos que entraram no léxico politico. Isto só lá vai com uma valente vassourada?

Nunca se combateu a corrupção com moralismos. Aos partidos digo para que se juntem e digam, como acto de contrição, que apresentaram ao povo português «gato por lebre». Vários casos de corrupção ocorridos no início da democracia foram punidos em Portugal de forma «eclesiástica», da mesma forma que os padres e os bispos pedófilos foram castigados pelo Vaticano. Acontece que então existiam «pais fundadores» da democracia, com autoridade, que tinham uma conduta de «bispo». Neste momento já não temos «bispos», só fidalgos. No combate político, PS e PSD são a mesma coisa. Venha o Diabo e escolha. Os socialistas chamam salazarista a Ferreira Leite, mas o governo PS de Guterres foi o que mais ministros reciclou do fascismo para a democracia, casos de Veiga Simão e Silva Pinto. O PSD também não se pode queixar muito porque chamou Hugo Chavéz a Sócrates. Isto é um péssimo exercício político. Já chega de «malhadores».
 

Na campanha das legislativas os políticos tornaram-se definitivamente actores profissionais, especialmente com os debates e no programa de entretenimento dos Gato Fedorento. Estamos na era dos políticos de plástico?

Faz parte do tempo possuir uma certa plastificação. Barack Obama é exemplo disso. Os líderes dos principais partidos portugueses são todos profissionais, mas isso não é um defeito. Quem critica tem dor de cotovelo, do género, «eu gostava de ser como eles e não consigo». O mal não está nos políticos profissionais, mas nos outros que são de segunda linha e que têm um défice de profissionalismo. Veja que um dos piores líderes partidários de sempre, Durão Barroso, foi agora reeleito presidente da Comissão Europeia – é, justamente, o português com mais prestígio internacional. Isto significa que Portugal tem uma excelente fábrica de quadros de políticos profissionais. Lamentavelmente os partidos são desertos de ideias porque não incentivam o recrutamento das universidades. As máquinas partidárias desconhecem o potencial das faculdades. Há um grande problema para reconhecer a meritocracia. Agarrem os verdadeiros quadros deste país e não os deixem sair para o estrangeiro. Por aqui insiste-se em não se reconhecer a nobreza do mérito, preferindo-se realçar a fidalguia da cunha. É a «cunhocracia». A “D. Maria da Cunha” é uma senhora muito conhecida em Portugal.
 

Sócrates vai governar sozinho ou será obrigado a acordos de incidência parlamentar?

Depende da negociação. Acho que não se deve dizer desta água não beberei em termos de acordos, entendimentos e coligações. Como é que Durão Barroso foi eleito e reeleito? O que é a Europa senão negociação? A negociação é uma exigência da democracia. Este país só se sustenta com um contrato ; de regime. O OE 2010 será a primeira prova de fogo do rumo da negociação.
 

Marcelo Rebelo de Sousa prevê que dentro de dois anos teremos eleições antecipadas. Subscreve?

Marcelo Rebelo de Sousa é um dos mais hábeis criadores de cenários fantasiosos e autor das principais homílias do regime ao domingo para seu sustento. É uma figura prestigiada, mas que está a arrastar o próprio PSD para um beco sem saída. Se ele se quiser assumir, que o faça.
 

Marcelo quer regressar à liderança do PSD ou espreita a Presidência da República?

Não sou psiquiatra… O que ele quer é cultivar este ar de D. Sebastião.
 

Como caracterizaria a legislatura em que o PS e Sócrates foram governo?

Existiu uma certa esquizofrenia colectiva. Comparo Sócrates a João Franco, um dos políticos dominantes da fase final da monarquia constitucional portuguesa, que quis governar à britânica e acabou por fazê-lo à turca. Espero que nesta legislatura se passe o contrário, que se acabe a governar à britânica em termos negociais.
 

Em cenário de maioria relativa o «animal feroz» e determinado vai eclipsar-se?

A atitude paradoxal de Sócrates é a chave do seu êxito, oscilando entre o «animal feroz» e o «porreiro, pá». Vivemos entre pulsões autoritárias e pulsões libertárias. Quando a primeira pulsão domina, é o caso claro das eleições de Cavaco e Sócrates. Quando é a pulsão libertária a ter ascendente, devemos lembrar-nos de Sá Carneiro. É este jogo de forças que faz flutuar o milhão de votos entre o PS e o PSD.
 

O caso das escutas deteriorou as relações entre Belém e S. Bento. Terminou a cooperação estratégica?

Esse caso foi o nosso «Watergate dos pasteis». É um episódio para não esquecer, que revela a cultura lusitana assente no maior número de espiões per capita da Europa. A queda para alimentar teorias da conspiração, por parte dos políticos e dos «media», é muita causadora da nossa esquizofrenia. Cavaco era para muitos um Deus, mas afinal é um homem como os outros, que comete erros, se engana e também tem dúvidas. Mas isso não é o fim de Cavaco enquanto político. Este caso teve uma vantagem, deitar por terra os defensores das teorias presidencialistas que não percebem que o problema não é de regime, é de pessoas.
 

Como veria um poeta em Belém?

Com bons olhos. Se tivéssemos tido um poeta ou uma figura da literatura como Presidente da República depois do 25 de Abril o país seria diferente. Aliás, gostava imenso que Vitorino Nemésio tivesse chegado lá. Nós precisávamos de conversa. Soares, à sua maneira, foi um poeta, pelo discurso, driblando emoções. Para já precisamos de 2 anos de um Presidente em plenitude de funções e não de discutir os cenários sobre as presidenciais 2011, que é um falso problema criado pelos que arquitectam cenários.
 

Disse que boa parte dos portugueses não saíram prejudicados com a crise e muitos melhoraram, inclusive, o seu nível de vida. Neste ponto reside a vitória do PS, pese embora a contestação?

Dois terços dos remediados portugueses não ficaram pior. Sócrates foi um grande artista na gestão de políticas, bem ciente de que era este factor que iria decidir o sufrágio. O português é muito pragmático: se o governo lhe for ao bolso vota na oposição. Os portugueses são na sua maioria cobardes, têm a espinha docilizada pela servidão voluntária, gostam do capitalismo à segunda-feira e do socialismo à terça, porque preferem nacionalizar prejuízos e privatizar os lucros.
 

Porquê esta atitude?

A subsídio-dependência deseduca a média do povo português, a escola não educa para a liberdade, mas sim para o conformismo e para a “carneirada”. Não se cultiva o inconveniente e o excesso, prefere-se o politicamente correcto. Isto é um produto que resulta de uma opção por grandes modelos educativos.
 

As raízes são de natureza educativa…

O conformismo social reflecte-se na máquina do aparelho educativo. A questão educativa está centrada na troca de galhardetes entre o Conselho de Reitores e o Ministério do Ensino Superior, o que é inaceitável sabendo-se que este Conselho é um organismo corporativo e parecido com um grupo de pressão. Esta guerra de nervos tem sido desgastante, transformando a universidade num jogo de lutas pelo poder. O país não está para aturar tanta fidalguia, sem nobreza. Precisamos de grandes escolas, mas não é com guerras que lá vamos.
 

A discussão está centrada no acessório em detrimento do que é essencial?

Aqui o essencial é que Portugal não consegue colocar uma universidade no ranking das 100 melhores. Para uma nação com 8 séculos para conseguir isso é preciso ter coragem e ímpeto reformistas. Porque não lutar por esse desiderato se temos know-how? Há meia-dúzia de coisas que se podem implantar em 1 hora. Primeiro exemplo: as universidades estão dispersas. Em Lisboa, juntava a Técnica e a Clássica e poupava em reitores, auditorias jurídicas, automóveis, etc.
 

O sistema universitário está carecido de uma revolução?

Repare nisto: temos dos melhores cursos públicos de Filosofia, nomeadamente na Nova e na Clássica, os melhores professores e repare na média de entrada: abaixo de 10. Está tudo esquizofrénico. A obsessão doentia pela profissão médica é outro mistério. Em jeito de brincadeira, eu se mandasse abria 80 por cento dos lugares para Medicina e a seguir inventavam-se mais umas quantas doenças. Há qualquer coisa que está mal. E não é no Estado. O problema reside na cabeça de quem procura estes cursos. O mercado também pensa que os cursos de Comunicação Social são feitos para formar jornalistas. Os melhores profissionais que conheço são-no por vocação. Precisávamos de excelentes cursos de banda larga que permitiriam que um indivíduo pudesse escolher a sua profissão. Um filósofo pode ser engenheiro, um engenheiro pode ser politólogo, um médico pode ser escritor. O melhor historiador do século XIX, Alexandre Herculano, não era licenciado em coisa alguma. O nosso prémio Nobel português, Saramago, tem a universidade do Bairro Alto. Faz alguma diferença? Este é um país de um falso doutorismo. O «Sô Doutor» é uma instituição nacional que a República criou para substituir a aristocracia.
 

Defende uma reorientação da procura dos cursos?

É inevitável. Mas não é criando cursos em Lisboa e ao mesmo tempo em Évora que se reorienta a procura. Considerando a lógica de repovoar de forma urgente o interior, visto que a desertificação é uma emergência nacional, eu retiraria cursos nos grandes centros instalando-os em Castelo Branco, Guarda, Covilhã, etc. Não se pode é descentralizar a brincar. Confrontamo-nos com o facto dramático de quando entramos por Portugal pela fronteiras de Elvas, é tudo deserto até Setúbal. A faixa interior do país está em coma. As escolas e as universidades públicas são um belo instrumento de reequilíbrio e repovoamento do país. Portugal está à espera do D. Sancho, o rei povoador, sob pena de deixarmos de existir. Mas há mais problemas: gastamos demais para aquilo que produzimos. A utilização dos impostos no sistema universitário está mal empregue. Já para não falar do desperdício de não estarmos a utilizar os melhores da inteligência portuguesa.
 

Tem dito que há pessoas no Ministério da Educação que não dão aulas há décadas. Há muita burocracia e vícios instalados?

É a cultura dos avaliólogos, educacionólogos e outros ornitólogos. É anedótico. O ministro Mariano Gago provocou profundos males ao país e faz uma lei que demora 4 anos a produzir efeitos. Discutem a avaliação da Maria de Lurdes na Educação e não reparam que o mesmo governo, no ensino superior, através de Mariano acabou com a avaliação para que pague o justo pelo pecador. O ministro acabou por estragar o que estava bem. E vamos pagar muito caro a estupidez de uma certa manutenção de princípios mentais dos revolucionários do Maio 68 transformados em ministros hoje. Mariano Gago nunca saiu da extrema-esquerda mental. Mais um argumento para explicar que o grande problema de Portugal é filosófico. O segredo de Portugal sempre foi o de cultivar a criatividade e o humanismo. Isso agora não existe. Caminhamos rapidamente para uma terceiro-mundização no plano da estratégia mental. Explico: com este método podemos ter toda a população doutorada, mas somos mesmo do Terceiro Mundo.
 

Estamos a poucos meses do início das comemorações do Centenário da República. Os monárquicos agitam-se e prometem novas acções de contestação ao regime, exigindo um referendo. Surgem no tempo certo as ambições monárquicas?

O grande problema de Portugal não é o de saber se há um Presidente ou um Rei, mas reside antes no restaurar da confiança pública e a República. Lamentavelmente alguns «aristocratinos da monarquice» querem fingir que isto é um derby entre Benfica e Sporting.

Nuno Dias da Silva

 

Cara da Notícia

José Adelino Maltez nasceu em 18 Dezembro de 1951, em Coimbra. É um assíduo comentador de assuntos de política nacional nas televisões, especialmente na SIC-Notícias, nos jornais e nas rádios. Professor catedrático da Universidade Técnica de Lisboa e da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa, é doutorado em Ciência Política pelo Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP) e especialista em História das Ideias Políticas. O autor, que tem exercido ensaísmo jornalístico, publicou várias obras científicas, pedagógicas e de intervenção política, bem como três volumes de poesia: «No Princípio Era o Mar» (1980), «Pátria Prometida» (1983) e «Na Raiz do Mais Além» (1992). Adelino Maltez deu igualmente à estampa a tese «Ensaio sobre o Problema do Estado» (1989) e dois volumes dos «Princípios da Ciência Política» (1996 e 1998) e de «Tradição e revolução – uma biografia do Portugal politico do século XIX ao XXI», bem como mais de uma dezena de outras obras de cariz científico e pedagógico. Em termos de participação na política activa, foi dirigente do CDS aquando da liderança de Lucas Pires e colaborou igualmente com o Partido Nova Democracia (PND) de Manuel Monteiro. Presença assídua nas redes sociais, como no Facebook, o seu blog «Tempo que passa», é uma referência na blogosfera.

 

 

 

MARCO HORÁCIO EM ENTREVISTA

Fados de um Actor

Marco Horácio é actor para muitos papéis e o país não se esquece dele como apresentador no Levanta-te e Ri. Mas o seu fado também era o fado e por ele os portugueses preferem Cães de Loiça ou a Tasca do Zé Tinhoso.
O seu último projecto Salve-se Quem Puder conseguiu a proeza de reunir as famílias portugueses em torno do mesmo televisor.
 

Rouxinol Faduncho é mesmo o Mickael Carreira do fado?

Isso é o que eu digo a brincar. Ele é um bocado o sex symbol do fado. A forma de ele vestir e de estar não tem nada a ver com isso, mas digamos que ele tem essa pretensão. Acha-se além de um homem muito garboso, – que é uma palavra sempre gira – um sedutor. Também já faz parte da construção da personagem. É o Mickael Carreira mas em mau.
 

Como é que surgiu a ideia de construir este personagem?

Isto já vem do “Levanta-te…”. Na altura do “Levanta-te...” levei o personagem que já tinha este nome. Levava uma boina, cantava umas quadras, para ver se pegava. É das muitas personagens que fiz, umas ficaram para trás, outras pegaram. Depois no 100 levei músicos, levei a coisa mais a sério, as pessoas aderiram e resultou. Os músicos desafiaram-me para fazer uma coisa mais à séria, estivemos 6 meses em pesquisa, eu principalmente para arranjar e limar a personagem, os tiques. Depois gravamos o primeiro CD que foi um êxito, gravamos o segundo – consegui continuar a enganar as pessoas – e foi outro êxito. E já vai em 3 CDs e um DV ao vivo, com muitos espectáculos na estrada, o que me deixa muito contente. É um projecto que nas rádios não toca muito e na televisão só passa quando há lançamento de um CD novo, e o volume de espectáculos que nós temos por ano é inacreditável, e a aceitação das pessoas.
 

Os espectáculos têm três fiéis companheiros?

Além de três grandes amigos, são três grandes profissionais, três fantasistas quer da guitarra portuguesa, quer da viola, quer da viola baixo. Temos uma relação de grande amizade e profissionalismo, eles também trazem sempre ideias novas, conceitos novos. Somos mais ou menos da mesma geração, eles são do Alentejo, logo são boas pessoas. É o Henrique Leitão, o Carlos Leitão e o Carlos Menezes. São o esteio, sem eles, o Pina na luz, e no som o Vitinha, este espectáculo não se faz, e a Ana que é a produtora na estrada. É uma grande família na estrada e este projecto também resulta e transparece isso. Os meus músicos são geniais e tenho muita sorte em tê-los comigo.
 

O Marco Horácio gosta de ouvir fado?

Gosto, sempre gostei muito de ouvir fado. Mas lá está, o fado é muito associado à saudade, à tristeza. Não tenho ouvido tanto como gostava, agora estou numa fase nova da minha vida e quero é “Upa, upa lá para cima”. Mas gosto muito da Mariza, da Ana Moura, gosto muitos dos fadistas antigos, gosto muito do Camané. Há uma data de fadistas agora- não são nova geração, já cá estão há muito tempo que eu gosto muito, oiço e compro os Cds. E depois há o Alfredo Marceneiro, Amália, há tantos outros que gosto de ouvir e que tenho Cds.
 

Como é que surgem as ideias das versões alteradas dos temas?

Eu digo sempre que é uma grande estupidez natural. É uma grande capacidade de ser parvo e de brincar com as coisas, e às vezes são momentos de inspiração. Não me obrigo a escrever, ou sinto-me inspirado para tal, ou tenho o tema que quero falar sobre, ou então não escrevo. Podem surgir em diversas altura. Às vezes quando acabo um espectáculo, o que me dá uma grande carga de adrenalina, vou escrever as letras no telemóvel; ou às vezes estou em casa, vejo uma situação qualquer e escrevo uma letra. Mas a inspiração vem um bocado do país que temos, que cada vez mais dá vontade de rir.
 

O seu último projecto da Sic, Salve-se quem Puder, como é que correu?

Correu bem, o ambiente foi fantástico, a Diana é fantástica como pessoa, como apresentadora, colega. Já a conhecia e portanto para mim não foi uma surpresa. Acho que fazemos uma boa dupla. Diverti-me imenso a apresentar o programa e os concorrentes que lá passaram notava-se que não estavam com aquele espírito de ganhar ou de perder, iam para se divertir. Depois aconteceu uma coisa que sempre quis. Sempre disse que a Sic era a minha casa, e sempre disse que um dia que voltasse à Sic, - felizmente nunca me faltaram oportunidades – gostava de voltar pela porta grande. As coisas correram bem, o programa teve uma audiência brutal. As pessoas viram, os miúdos adoraram, as audiências não baixaram. Também me sinto feliz porque ajudei a Sic que estava a passar um momento mais difícil. Foi bom poder regressar, arregaçar as mangas e trabalhar. O meu conceito de vestir a camisola é esse. Estou ali para fazer o meu trabalho, faço o melhor que sei, mas também vou para ajudar, arregaçar a manga e suar a camisola. O projecto correu muito bem, estou muito contente.
 

O Salve-se quem Puder era o programa que ambicionava ou gostava de fazer uma coisa diferente?

Por mais projectos que façamos na televisão nunca conseguimos demonstrar o nosso verdadeiro valor. Estou constantemente a ser posto à prova. Este projecto uma coisa aliciante que teve sempre desde o início era eu não ter texto. Improvisava conforme o que ia acontecendo. Como actor que sou - eu não sou apresentador sou actor, - não é o projecto dos meus sonhos, mas lá chegará o dia para fazer isso. Mas eu acreditei neste projecto e fiz da melhor maneira possível. Não faço televisão por opção, faço porque acredito e quando vi o projecto achei que ele poderia trazer alguma coisa de novo às pessoas. Gosto de ter uma intervenção social e este projecto não teve isso, mas teve uma coisa muito boa, juntou as famílias portugueses em frente ao televisor. De repente país e filhos, gerações diferentes, juntam-se novamente em frente à televisão para ver o mesmo programa. Não está a mãe na cozinha a ver a novela, e os filhos a ver o programa na sala ou no quarto, e o pai a ver outra coisa. Não, estão todos juntos a ver e a divertirem-se com o mesmo programa. Faz lembrar os anos 80 quando havia os Jogos sem Fronteiras, e outras coisas, que nós acompanhávamos todos juntos. E isto para mim é a maior vitória deste programa. A SIC voltou a ter um papel importante na família portuguesa, e as audiências, as pessoas que falaram comigo, e as reacções demonstraram isso. Estou muito contente principalmente por isso.
 

Não existiu a pressão das audiências?

Eu digo sempre: não trabalho para audiências, nem trabalho para críticos. Trabalho para as pessoas, para o público. Se eu dependesse dos críticos para comer já tinha morrido à fome. As audiências são números e claro quando as coisas correm bem, e há números a demonstrar isso, a estação fica mais satisfeita, nós ficamos mais satisfeitos. Naquele momento a SIC precisava de um balão de oxigénio, de alguma coisa que pusesse as pessoas em frente da televisão a ver a SIC e o Salve-se quem Puder trouxe um bocado isso. Mas eu não vivo obcecado pelas audiências, e a Diana também é um bocado assim. Nós fazemos o melhor possível, não depende de nós se as pessoas gostam ou não do produto, nós fazemos o melhor. Felizmente resultou bem, as audiências foram óptimas, a estação está muito contente. Mas uma coisa não muda na forma de estar nesta minha profissão, nem a forma de fazer as coisas. Não me iludo, não me convenço, sei que o caminho ainda é longo, tenho muita coisa para fazer, muita coisa para mostrar, apenas faço aquilo que gosto o melhor que sei e só isso para mim já é uma vitória.
 

O Programa Levanta-te e Ri foi uma revolução na televisão portuguesa, uma rampa de lançamento para o Marco Horácio, e uma experiência óptima?

Sim. Muitos de nós de repente puderam mostrar o seu valor num espaço que mudou um bocado a mentalidade dos portugueses. Hoje em dia faz-se crítica social abertamente, mas quando nós começamos o “Levanta-te...” isso era impensável. Saiu uma geração de humoristas muito boa que já existia, mas ali teve espaço. As pessoas conhecem-me mais pelo Levanta-te, foram três anos e meio na estrada e devem ter passado três anos ou quatro e as pessoas continuam a falar disso, e a ter saudades do programa. É porque o programa resultou e chegou às pessoas, isso é fundamental. De facto foi um bom projecto, como gosto de fazer, pois tem um lado de intervenção social muito grande.
 

Era uma verdadeira equipa de grandes malucos?

Era, e é engraçado que em três anos e meio nunca houve uma discussão entre ninguém, nunca assisti a maus ambientes. É por isso que as coisas também duram três anos e meio. Ainda hoje são grandes amigos meus, o Rocha é quase um irmão para mim. O Francisco Menezes, o Nilton, o Bruno Nogueira, o João Seabra, há ali uma data de humoristas que saíram de ali e hoje em dia continuamos amigos, a gostar uns dos outros, a ver o trabalho uns dos outros, e a criticar. Foi uma grande família que surgiu e acho que trouxemos um bocado a dose de loucura que faltava a este país e que agora felizmente há, e às vezes há em exagero.
 

Gostava que esse programa voltasse de novo à grelha da Sic?

Já houve ideia disso. Mas tinha de ser outro formato. Aquele formato correu bem mas tinha de ser outra coisa, senão podia acontecer como A Roda da Sorte. Não gosto muito de mexer nos grandes clássicos, e para mim, o Levanta-te e Ri será um clássico sempre. Mas sim, acho que stand-up é importante, deve voltar e vai voltar concerteza com mais força, com novas pessoas, com grandes talentos, e se possível comigo também. Acho que faz falta. É um produto onde nós éramos um bocado a voz da consciência dos portugueses. Aquilo que toda a gente pensava nós dizíamos sem papas na língua.
 

Esse programa deu um empurrão e forte nos talento da stand-up comedy e sobretudo na stand-up comedy?

Sim sem dúvida. Já existiam algumas pessoas a fazer, mas de repente houve logo mais pessoas interessadas. Hoje em dia há um número de novos “stand-upistas” - como eu chamo - muito bom, com muita qualidade, que faz bares, que faz auditórios. Estão a preparar-se. Não tenho dúvida que se calhar daqui a um ano, ou ano e meio vão explodir cinco ou seis pessoas com enorme talento e com grande capacidade de escrita, para novamente abanar um bocado o país e as consciências É isso também o nosso dever como actores, abanar a mentalidade das pessoas e acordá-las às vezes um bocadinho.
 

O stand-up comedy também lhe agrada?

Sim, é uma coisa que está sempre ligada a mim, uma coisa que gosto sempre de fazer. Em princípio em Novembro vou fazer um espectáculo a solo e vou ver se consigo fazê-lo de norte a sul. Apetece-me dizer coisas às pessoas, apetece-me pôr o dedo na ferida, e este espectáculo vai basicamente ser isso. Como já disse vou ser eu sozinho a cascar em tudo o que está mal. E nós portugueses somos muito de criticar mas não fazemos nada para melhorar as coisas.
 

No dia-a-dia o Marco Horácio é uma pessoa divertida e com muitas brincadeiras?

Sou um homem vulgar, igual a toda a gente, tenho o meus problemas, tenho as minhas alegrias, tenho os bons e os maus momentos. Não gosto de ser o centro das atenções nem de chamar a atenção. A televisão para mim é uma consequência daquilo que eu faço. Não faço televisão para aparecer, faço porque é o meu trabalho, o que eu gosto de fazer por acaso aparece na televisão. Não sou diferente por fazer televisão, vou ao mesmo café, tenho os mesmos amigos, como a mesma coisa, divirto-me da mesma maneira. Trato os meus amigos da mesma forma, as pessoas igual. Gosto daquilo que faço e felizmente tenho oportunidade de o fazer.
 

O Marco Horácio lida bem com a fama?

A palavra fama não é uma palavra saudável para mim. É claro que é sempre bom ouvir as pessoas dizer que gostam do nosso trabalho, que nos viram. Mas não é a fama que me move, nunca foi isso. Não é a fama, não é o dinheiro. É poder trazer alguma coisa nova às pessoas, marcar a diferença no panorama televisivo, teatral, ou seja naquilo que for, e acima de tudo apostar na qualidade, e nunca me deixar seduzir pela fama, pelos holofotes, ou pelo mediatismo. Gosto de ter a minha vida, estar sossegado, estar com o meu filho e ninguém me chatear, ou com os amigos. É claro que com a televisão é um bocado impossível, mas eu tento sempre viver igual. O facto de estar na televisão, na Sic outra vez, não me torna diferente. Acordo da mesma maneira e faço as mesmas coisas . Se calhar tenho mais pessoas a reparar em mim, a comentar, mas é algo que me passa ao lado. Quando estou a trabalhar sou mais profissional, tenho de pensar para mim próprio que sou o melhor do mundo, quando corta e acabou, sou uma pessoa normal, tenho a minha vida.

Entrevista: Hugo Rafael
Texto: Eugénia Sousa

 


© 2002-2009    RVJ Editores, Lda.