Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XII    Nº141    Novembro 2009

Entrevista

JOÃO LOBO ANTUNES, NEUROCIRURGIÃO

A educação escolar é um exercício
de amnésia programada

A desvalorização da memória promovida pela pedagogia moderna, o gradual desaparecimento da Filosofia dos programas escolares e a tentativa de aniquilar o livro são ameaças ao futuro educativo do País, alerta João Lobo Antunes. O neurocirurgião lamenta que os valores da autoridade e da reverência tenham sido afastados da escola, ferindo a própria ciência do acto de ensinar. Em entrevista ao «Ensino Magazine», antecipando a conferência onde vai estar presente em Castelo Branco no próximo dia 28, subordinada ao tema o «O Futuro da Medicina e o Futuro da Ética da Vida», o Professor Catedrático debruça-se sobre as inquietações, as perplexidades e os desafios éticos que se colocam à prática médica quotidiana.
 

Vai proferir, no dia 28, em Castelo Branco, uma palestra sobre «O Futuro da Medicina e o Futuro da Ética da Vida – As Minhas Inquietações…», no âmbito da conferência «Ética – A vida (n) a Morte». Pode levantar um pouco do véu sobre o que vai dizer?

Basicamente a minha intenção é questionar o discurso ético tradicional, sustentado por uma série de princípios, muito respeitáveis e que dão um esqueleto filosófico e moral muito robusto. Ao mesmo tempo tento demonstrar que a nova Medicina vem desafiando certos paradigmas que suscitam uma enorme inquietação, particularmente para os que os vivem no terreno. Ou seja, há o discurso teórico, muitas vezes formalista, que esquece a realidade de mundos morais locais, como eu gosto de dizer, como é o caso de um serviço de urgências, uma sala de operações ou uma sala de cuidados intensivos.
 

É essa a fonte das suas inquietações?

Inquietações e perplexidades, até na minha prática médica quotidiana. O meu objectivo com esta conferência é suscitar precisamente isso, discussão e perplexidades.
 

Os progressos na Medicina são lentos. Mantém o que disse que as curas para o cancro, um dos maiores flagelos dos nossos tempos, são uma ilusão?

A Medicina criou uma aura de sucesso técnico, de conquistas imparáveis, praticamente em todas as áreas. Gerou-se uma espécie de ilusão, estimulada pelos próprios médicos e pelos cientistas que trabalham na área da Biomedicina e igualmente pelos mass media. À Comunicação Social interessam os dois pólos extremos: a notícia do desastre, da falha, do erro, da incúria, por um lado, e do triunfo, muitos vezes apresentado de forma pouca crítica, por outro.
 

Significa que as boas novas sobre os progressos relativamente ao combate ao cancro são tratadas com exagerado optimismo?

Eu diria que todas as semanas surge uma notícia a dizer que a cura para determinado tipo de cancro está à porta. E quando estamos na presença de cientistas portugueses envolvidos nas investigações então o sucesso ainda é noticiado com mais ênfase. O empolamento noticioso sobre estas matérias é indiscutível. No entanto, a realidade é muito mais sóbria. Existem, inquestionavelmente avanços, mas paralelamente têm-se criado expectativas que nós não podemos cumprir. Portanto, exige-se da Medicina resultados que nem sempre são possíveis de garantir. E esta desilusão entre o prometido e o realizado é frequentemente uma fonte de conflito. As pessoas pretendem que a morte seja uma mera opção, se quisermos.
 

Tem explicação para o empolamento de notícias relacionadas com os actos médicos, sejam elas positivas ou negativas?

Há factos incontroversos que estão plasmados em estudos. Quando surgem novos tratamentos são os próprios cientistas e investigadores a transmitirem essas notícias pelo facto de terem interesse económico nesse sucesso. São porta-vozes da indústria. Paralelamente, raramente são explicitados os efeitos tóxicos ou secundários desses tratamentos ou as análises da relação custo-benefício entre as terapêuticas propostas. Em suma, nem sempre a verdade e a realidade são reflectidas de forma integral. Os avanços que ocorrem são pequenos acréscimos que devemos saudar, pena que o relato fidedigno de todas as etapas do processo deixe algo a desejar.
 

Refere que temos uma «população de preocupados saudáveis» e que a Comunicação Social está constantemente a criar perigos, uns reais outros imaginários: linhas alta tensão, telemóveis, frangos com dioxinas, etc. Pensa que tem havido alarmismo relativamente à gripe A?

É difícil pronunciar-me sobre isso. A informação que tenho, e que parece credível, diz-me que esta gripe em termos de gravidade se compara favoravelmente a outras gripes do passado. Eu recordo-me de ter tido a gripe asiática, quando era miúdo, e que me deixou completamente de rastos.
 

Como justifica o antagonismo, nomeadamente entre os profissionais de saúde, relativamente à necessidade de tomar a vacina?

É um caso muito ilustrativo da nova realidade social, e que a ética também tem de abordar, entre a liberdade de escolha e a vontade. Por mais que se diga o contrário, há sempre um risco, certamente não desprezível, em qualquer aplicação de vacina ou intervenção. É um equilíbrio muito instável.
 

Mas é um caso de saúde pública…

Com certeza. Os médicos de saúde pública estão a cumprir o seu dever, insistindo nos alertas, na prevenção, mas creio que, por vezes, de uma forma demasiado estridente. Ou seja, a afirmação repetida à exaustão de que as coisas estão sob controlo pode ter o efeito paradoxal de aumentar o pânico.
 

Com os dados que dispõe defende a vacinação massiva da população?

A informação que tenho e que me foi transmitida pela minha mulher, que é Alta Comissária para a Saúde (NDR: Maria do Céu Machado, que também estará presente na conferência em Castelo Branco) é que se deve começar pelos grupos de risco. Levanta-se aqui uma análise muito interessante, até do ponto de vista ético: dever-se-á tratar primeiro dos chamados «imprescindíveis» e só depois da população de risco? Claro que um dos princípios da ética é a justiça, que garanta a equidade, a acessibilidade, etc., mas quando não existe tratamento disponível para todos a quem se deve dar prioridade e quais as razões?
 

Está a questionar, por exemplo, a prioridade da vacinação dos políticos?

Não estou a retirar importância aos deputados, aos médicos ou aos enfermeiros, mas é preciso pensar que existem outras pessoas igualmente importantes, como é o caso dos padeiros, por exemplo, que dão de comer a uma população inteira e custa-me a aceitar que sejam considerados menos «imprescindíveis» do que um ministro. É uma discussão muito interessante que está por fazer.
 

A morte e o envelhecimento são temas dos seus livros. Os idosos são desprezados pela sociedade?

Antes de mais, creio que a sociedade tomou consciência de que está envelhecida. Por duas razões: devido ao aumento da esperança média de vida e pelo facto de a natalidade ter diminuído substantivamente. Consequência disso é a inversão da pirâmide etária. Há localidades, nomeadamente na Beira, em que há mais pessoas com 65 anos, do que com menos de 15. Isto é um problema muito grave ao nível da saúde - Há que procurar preservar uma boa qualidade de vida até mais tarde. Ou seja, dar vida aos anos e não dar anos à vida; ao nível económico – com o aumento das prestações sociais para segurança social e as reformas; e no domínio da solidariedade social, segurança, solidão e risco de violência contra idosos fruto da sua vulnerabilidade, já para não falar do facto de as cidades não estarem preparadas para acolher idosos. O envelhecimento da população será certamente um dos grandes problemas sociais das próximas décadas.
 

Abandono, pobreza e violência são uma combinação de factores perigosa. Estamos a criar uma sociedade baseada na indiferença e de distância relativamente ao próximo?

Isso é uma mensagem pessimista e quem tem estudado o tema de forma aprofundada não pode estar de acordo. A ideia de que a tecnologia, os valores do dinheiro, da beleza, da vitória e da competição são os que prevalecem na sociedade contemporânea, precisa de ser vista com outro sentido crítico. Temos hoje uma sociedade vertical e multi-geracional, em que cada vez mais os avós olham pelos netos e vice-versa. Prevalecem valores muito sólidos pelos quais vale a pena afirmar e lutar, para que perdurem no tempo e se transformem em actos.
 

Faz aproximadamente 400 operações por ano, no sector público e privado. A questão das listas de espera é um dos principais problemas do SNS. O problema é de falta de meios ou meramente de défice organizativo?

O caso da minha área, a neurocirurgia, é muito particular. Repare que não temos listas de espera para tumores cerebrais, por exemplo, visto que estes doentes são altamente prioritários. Na minha opinião não há neste momento no serviço público meios para abolir eficazmente listas de espera em patologia de coluna. O meu serviço tem uma produtividade muito considerável, inclusive é o número um do País, segundo a avaliação da Escola Nacional de Saúde Pública, mas nós não chegamos para as encomendas. Mesmo que as duas salas de operações estivessem a trabalhar todo o dia não seria suficiente. O que não significa que eu concorde que o recurso a instituições privadas seja feito da forma actual. Nada garante que a qualidade prestada em instituições desta natureza seja avaliada do modo que eu entendo, quanto aos procedimentos e quanto às indicações. A regulamentação do privado é um passo fundamental para harmonizar ambos os sectores, segundo a conceptualização que considero mais indicada.
 

Defende uma melhor articulação entre ambas as realidades?

Existe um papel legítimo do privado, que eu tenho defendido, mas é preciso definir padrões de qualidade: quem faz, quem não faz, para não acontecer que após uma operação no privado, e pós alguma complicação que surja, o paciente regresse ao público. Ou seja, a responsabilidade do privado limita-se, praticamente ao acto cirúrgico em si, o que na minha visão não é a filosofia mais correcta.
 

O curso de Medicina, ao contrário da Gestão, Economia e Psicologia, garante alguma estabilidade profissional. É essa segurança que explica a grande procura em termos de carreira universitária?

Acho que não. Continua a haver uma grande apetência, especialmente da população feminina - cerca de dois terços dos alunos de Medicina são mulheres - e um genuíno interesse e atracção pelas Ciências da Saúde, até pela possibilidade utópica de praticar o bem. Evidentemente se houver uma pletora de médicos e não existir prudência na regulação do seu número, pode chegar-se a situações de desemprego, o que seria uma catástrofe.

Mas veja que ao contrário de um psicólogo, um economista ou um jurista, que têm uma multiplicidade de saídas profissionais, nós praticamente só temos a Medicina. Claro que é possível ir para a indústria ou para a investigação, mas são carreiras sem significado. Por isso as nossas aptidões são limitadas.
 

Continua a achar que o universo de médicos está mal distribuído pelo País?

Isso é uma evidência constatada pela realidade. Portugal hoje está próximo de si próprio. Já não existem distâncias intransponíveis. Estou convicto que se pode ter uma vida muito agradável e de satisfação profissional seguindo esta carreira, o que é preciso é garantir os meios e criar atractivos para que as pessoas se desloquem para fora dos centros urbanos. Reconhecer e retribuir o esforço e o mérito é fundamental, especialmente nesta profissão.
 

«Conheço muitos professores, e nos últimos meses, ainda não vi nenhum feliz», afirmou numa entrevista no auge do «braço de ferro» entre os docentes e a tutela. Que estados de alma partilharam consigo os professores que passaram aqui pelo seu consultório no Hospital de Santa Maria?

Digamos que a mensagem fundamental se pode resumir a isto: não fazem aquilo para que foram treinados. Existe uma desadequação entre aquilo que sabem fazer e as funções que lhes foram distribuídas.
 

Sentiu muita amargura nesses testemunhos?

Há uma enorme incerteza relativamente a tudo: ao futuro, às posições, aos lugares, às vagas, etc. E separam-se casais de uma forma desumana. Da mesma forma que na Medicina os médicos se casam com médicas, no ensino os professores contraem matrimónio com professoras. Há situações de casais muito jovens, a começar a vida em conjunto, separados por centenas de quilómetros. É algo que faz sangrar o coração. Não sei qual a solução para isto, mas que o fenómeno humano e social existe, lá isso existe.
 

Este conflito aberto entre a tutela e os docentes feriu de morte a autoridade dos professores?

Talvez não seja politicamente correcto o que vou dizer, mas toda a forma de ensino é um exercício de autoridade. Esta tolerância máxima nas escolas e aquilo que se reclama com os direitos dos alunos, mais do que com os seus deveres, parece ofuscar o facto fundamental de que há uma assimetria de autoridades. O professor sabe, o aluno aprende. O professor ensina, o aluno é o receptor. Portanto, tudo o que de alguma forma ameace a assimetria de autoridades acaba por ferir a própria ciência do acto de ensinar.
 

O Liceu Camões completou recentemente 100 anos. Na condição de antigo aluno, pronunciou um discurso em que destacou o rigor com que o Reitor Sérvulo Correia geriu a prestigiada escola de Lisboa. Que recordações tem desses tempos?

O Reitor era muito severo e autoritário, mas tinha o mérito de governar um grande liceu. E quando olhamos para trás vemos que a disciplina que reinava era o ingrediente fundamental do processo de aprendizagem na altura.
 

É o ingrediente que agora falta?

Há algumas posições absurdas, porque o exercício de autoridade é sempre este deslizar para um despotismo não esclarecido. A autoridade não se impõe pela força, mas pelo respeito. E também por outro sentimento que está muito fora de moda e a que o George Steiner chamou «reverência». A reverência tem que existir relativamente à pessoa, mas também tem que existir pela carga simbólica do cargo. Quando oiço pessoas com responsabilidade usarem relativamente ao Presidente da República certas expressões, espanto-me como é que esses indivíduos poderão exigir aos alunos respeito pelos professores.
 

A reverência pelo velho mestre que tudo ensinava perdeu-se em definitivo?

O professor merece reverência, a começar pelo cargo que representa, pelo simples facto de ser professor. A partir do momento em que se mina esse sentimento, tudo pode acontecer.
 

Os actos de violência nas escolas foram a expressão que se perdeu o respeito à classe docente?

Sem dúvida. Hoje em dia dou algumas aulas, a pequenos e a grandes grupos, e quando vejo alguém a enviar um SMS dentro da sala, interrompo-a de imediato e convido a pessoa a sair. Sei que não é prática corrente, mas parece que hoje em dia os professores têm medo dos alunos. Eu não aceito.
 

Admite que falta vocação a alguns professores?

Sou frequentemente convidado para palestras em escolas secundárias. Das minhas viagens constato que existem docentes com uma enorme boa vontade. Tal como a Medicina, o ensino e a docência são vocações. É o vocatio, a resposta a um chamamento. Eu sou por natureza um educador, porque percebi a importância que teve para mim a educação. Ou seja, o processo de transformação da forma como eu me fiz, naquilo que sou. Isso cria um dever moral quase de retribuição. A cirurgia tem de ser ensinada e é muito compensador observar que o processo de evolução das pessoas é transformativo.
 

Definiu o computador “Magalhães” como uma espécie de vacina anti-iliteracia. Porque é que afirma que é uma solução fácil que não contribui para a memorização e para exercitar o cérebro?

Um dos enormes disparates da pedagogia moderna foi desvalorizar a memória. A educação escolar é hoje, em grande medida, um exercício de amnésia programada. Recordo que a minha aprendizagem de Medicina foi, desde sempre, um exercício de musculação da memória. A memória é essencial para a vida, em geral, e para o exercício de uma profissão, em particular.

O melhor professor de Matemática que tive, e que marcou muitos dos que passaram no Liceu Camões, o prof. Carneiro da Silva, obrigava-nos a decorar as fórmulas matemáticas e, no dia seguinte, dizia simplesmente isto: «cantem meninos, cantem».
 

Hoje em dia abusa-se das receitas educativas mais fáceis e de resultados rápidos?

Abusa-se. Outro disparate é a tentativa de aniquilar o livro.
 

Tem combatido o que diz ser o «apagamento» da filosofia nos programas do ensino secundário, sublinhando a importância desta disciplina na sua vida profissional e pessoal. O que perde um ser humano em construção cívica e moral sem as referências filosóficas?

Como dizia o Fernando Gil, provavelmente o melhor filósofo português do século XX, sem a Filosofia perde-se «a capacidade de ver para lá da aparência das coisas». Digo que também que se perde sentido crítico, a percepção das contingências da verdade e da evidência e o sentido da administração do transcendente. A outra dimensão da nossa existência. No fundo, a escola e o mundo sem a Filosofia tornam-se num enorme empobrecimento.
 

Corre-se o risco de a Filosofia desaparecer por completo da escola?

É o mesmo risco que se corre ao desvalorizarmos os portugueses, se insistirmos na relativização de tudo, em que tudo vale a mesma coisa, o que não é verdade…
 

O seu pai trabalhou de perto com Egas Moniz. Já confidenciou que o Prémio Nobel da Medicina, em 1949, foi uma das pessoas que o influenciou a seguir esta carreira e está, neste momento, a trabalhar na biografia de Egas Moniz, a lançar no próximo ano durante as comemorações do Centenário da República. Quer falar-nos um pouco desse projecto?

É uma empresa demorada, custosa e difícil, mas muito gratificante. Não sei se será possível ter a obra pronta a tempo das comemorações do Centenário da República, mas pela investigação que tenho feito já percebi a dificuldade de compilar a vida de uma pessoa que viveu tanto tempo e que deixa um legado tão rico. Eu gostaria muito, de acordo com as minhas possibilidades, que esta fosse a obra mais perfeita que consegui fazer com aquilo que tenho. No fundo, pretendo, em colaboração com outros «egófilos» que existem neste País, chamar a atenção para o significado que este português teve na história das neurociências a nível mundial.
 

Sem ser político, tem estado perto deles e merecido a sua confiança para funções de destaque. Foi mandatário nacional das candidaturas presidenciais de Sampaio e Cavaco e actualmente é Conselheiro de Estado. Os políticos e as políticas não têm dado resposta para os problemas do País. Acha que os políticos são incompetentes ou incompreendidos?

Se calhar é um pequenino componente de ambas as coisas. A minha primeira palavra é de respeito para os que conseguem ser políticos. Qualquer cargo desta natureza é de uma enorme delicadeza e complexidade. Tenho encontrado muitos com sentido de Estado e do dever. Nutro uma enorme admiração pelo poder autárquico, tendo-me cruzado, ao longo destes anos, com gente admirável e empenhada. Independentemente dos pecadilhos que possam ter, seja de ambição pessoal, vaidade, etc. Isso a mim não me interessa. Um político vale basicamente pela obra, o que não quer dizer que aprove todas as maneiras de a colocar em prática.
 

De que políticos não gosta verdadeiramente?

Não gosto dos políticos que mancham o serviço público com a intolerância, que recorrem ao insulto por não terem liberdade intelectual para reconhecer a bondade de opiniões opostas. Confesso que também não gosto dos políticos que nasceram na política e nunca fizeram outra coisa na vida e que desconhecem o mundo real e as verdadeiras dificuldades das pessoas. Tenho uma enorme suspeita por quem nasce, cresce e acaba por morrer dentro da política, sem ter tido outra experiência qualquer. É preciso reconhecer que da mesma forma que há maus médicos e jornalistas desonestos, é possível que também haja políticos incompetentes. Acontece que eu tenho uma enorme tolerância para com as fraquezas da natureza humana.
 

E também há os que são trucidados pelo sistema...

O dever cívico comum a todos nós é desempenhar da melhor forma possível, no dia-a-dia, aquilo que nos compete fazer. Deixe-me falar de dois políticos, que já não estão em funções e que foram severamente criticados. Tome-se, por exemplo, a ex-ministra da Educação Maria de Lurdes Rodrigues, pessoa que critiquei várias vezes. Tenho um enorme respeito por ela. Tenho a certeza absoluta que as suas medidas foram tomadas em consciência, tendo em vista o melhor para o País, alunos, professores e sociedade em geral. Veja-se, também, o ex-ministro, Correia de Campos, na Saúde, que por ser tão criticado, acabou afastado. Ele tinha uma ideia convicta, em certos aspectos com muito mérito, mas acabou traído por alguma inabilidade política.

Tenho muito respeito por ambos. Eu não era capaz de fazer o que eles fizeram. Prova disso, é que já fui convidado para ser ministro e não aceitei.
 

Define-se como um «médico que escreve». Os seus irmãos, Nuno e António, também são escritores de sucesso. Lê o que eles escrevem? Trocam críticas literárias?

Temos uma enorme independência, mas alguns dos assuntos que se encontram nos livros são temas das nossas conversas. O António refere-se, uma vez por outra, àquilo que eu escrevo. Reconheço uma autoridade em relação à minha escrita que eu não tenho em relação à escrita dele. Mas aprecio quando há uma palavra de elogio. Não posso deixar de o confessar. Quanto ao Nuno, escreve também muito bem. Noutro registo. Ambos merecem o meu respeito e aplauso.
 

Os irmãos Lobo Antunes escritores não disputam os mesmos públicos?

Temos públicos diferentes. Não sei qual o meu nicho, mas no outro dia encontrei um senhor muito velhinho aqui no Hospital de Santa Maria que se dirigiu a mim para me «agradecer o prazer que me dá com a sua escrita». Se houver um leitor que seja a pensar desta maneira, então acho que vale a pena escrever.

Nuno Dias da Silva
Tiago Miranda/Expresso H

 

Cara da Notícia

João Lobo Antunes nasceu a 4 de Junho de 1944, em Lisboa. Neurocirurgião, licenciou-se no ano de 1967 em Medicina na Universidade de Lisboa. Três anos após terminar o curso, obteve uma bolsa e rumou aos Estados Unidos, onde permaneceu durante 13 anos, tendo trabalhado no Departamento de Neurocirurgia da Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde foi nomeado professor associado. Doutorou-se em Medicina, pela Universidade de Lisboa, em 1983. Um ano mais tarde regressa a Portugal como Professor Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia e actualmente é director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria, preside à Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa e ao Instituto de Medicina Molecular, sendo também membro da Academia Portuguesa de Medicina e de numerosas sociedades científicas europeias e norte-americanas. Em 1996, foi a décima personalidade a receber o prestigiado «Prémio Pessoa», instituído pelo jornal «Expresso» e pela empresa de consultoria «Unisys».

Em termos de produção literária, lançou os seguintes livros com a chancela da Gradiva: «Um modo de ser» (1996), «Numa cidade feliz» (1999), «Nova Iorque e Outros Ensaios» (2002), «Sobre a mão e outros ensaios» (2005) e «Eco silencioso» (2009).

Na política, foi mandatário da candidatura presidencial de Jorge Sampaio, em 1996, e Cavaco Silva, em 2006. Depois de eleito para Belém, Cavaco Silva nomeou-o Conselheiro de Estado.

Os objectos de estudo de Lobo Antunes foram principalmente o hipotálamo e a hipófise. Em 1982 foi o primeiro médico da história a implantar o olho electrónico num invisual. Desde então esse implante já foi realizado noutros invisuais, permitindo-lhes visualizar algumas formas e distinguir certas cores.

Em 1984, opera de urgência no hospital da CUF, em Lisboa, o ciclista Joaquim Agostinho, vítima de uma fractura de crânio provocada por uma queda na Volta ao Algarve. O «herói da estrada» passa 10 dias em coma depois da intervenção em o neurocirurgião tentou remover com sucesso o coágulo que se formara. O facto de há 25 anos em Portugal não existir um serviço de neurocirurgia no sul do País e de a viagem por estrada entre Faro e Lisboa demorar 6 longas horas terá pesado no dramático desfecho que enlutou o país.

 

 

 

PAULA MOURA PINHEIRO, JORNALISTA

Jornalismo deveria ser mais exigente

Paula Moura Pinheiro, sub-directora da RTP2, considera que o objectivo daquele canal passa pela missão expressa de promover o conhecimento, o pensamento e a criação. Em discurso directo, com respostas enviadas por mail, aquela responsável fala do seu programa Câmara Clara, e sublinha que o jornalismo deveria ser uma profissão mais exigente.
 

Qual a avaliação que faz destes três anos ao leme do Câmara Clara?

Têm sido tempos muito gratificantes. Conseguimos fixar uma média de cem mil telespectadores por semana.
 

A que se deve a longevidade e a frescura do Programa?

Não creio que a longevidade do Câmara Clara seja, para já, notícia. Há muitos programas no ar com muito maior longevidade. Quanto à frescura, a expressão é sua. Mas agradecemos.
 

Quais as razões que pesaram na decisão de aceitar o cargo de sub-directora da RTP2?

Para lá de ser uma jornalista que começou a fazer televisão há 17 anos, a RTP2 é, desde sempre, o canal com que mais me identifico.
 

A RTP2 está destinada a ser o último reduto da cultura televisiva em Portugal?

A RTP2 tem por missão expressa promover o conhecimento, o pensamento e a criação. Isto não é sinónimo de que a RTP1 não o faça também, à sua maneira. A promoção do conhecimento e do pensamento não se faz exclusivamente através do documentário de autor, da transmissão de uma ópera de Wagner ou de um programa como o Câmara Clara. Quando se passa uma série de ficção inteligente, bem escrita, bem realizada, está-se também a promover o pensamento. Sendo que quem garante ao público, em sinal aberto, as melhores séries de ficção é a RTP2.
 

O jornalismo ainda é um sonho para muitos jovens, mas a realidade do jornalismo como é?

Devia ser uma profissão muito exigente porque envolve uma enorme responsabilidade. Lamentavelmente, muitas vezes essa responsabilidade não é honrada (as razões são diversas) e, portanto, a dureza desta profissão tem mais a ver com questões financeiras, logísticas, administrativas e não com o coração do que significa ser jornalista.
 

A Literatura perdeu terreno entre os jovens? Lêem-se mais piores livros?

Lê-se mais que há 35 anos. Os dados são objectivos: antigamente uma grande parte da população nem sequer sabia ler. Não creio que o Thomas Mann seja, nalguma latitude, a leitura habitual dos “jovens”.
 

A promoção da leitura que faz é um trabalho missionário?

Não. É um gosto. Se for útil a alguém, óptimo.
 

Uma única peça de arte tem inspiração para mudar uma vida?

Às vezes, há encontros que mudam a forma de sentirmos a vida. Nesses encontros transformadores cabem os livros, a pintura ou escultura, o teatro, a música.
 

Ser uma figura pública retira-lhe alguma liberdade?

Pouca. Sou uma figura discreta e faço uma vida discreta.
 

Pensa em escrever mais livros?

Não. E, em rigor, nunca “escrevi um livro”. Tenho algumas edições assinadas por mim de textos já publicados na imprensa ou de textos de carácter jornalístico.

 

 

 

MANUELA JUSTINO EM EXPOSIÇÃO

Um Sopro de Água

A artista albicastrense Manuela Justino tem patente, até ao próximo dia 27 de Dezembro, no Museu Tavares Proença Jr, em Castelo Branco, a exposição de pintura Sopro de Água. Uma mostra, que integra também um trabalho fotográfico da autora sobre os chafarizes e fontes da cidade de Castelo Branco, e que pretende homenagear aqueles locais emblemáticos da cidade.

No entender de Manuela Justino, “Sopro de Água procura sensibilizar as pessoas e entidades competentes de Castelo Branco para a fruição, preservação e recuperação destes espaços e da sua essência”. A ideia de Manuela Justino passa por dar vida às fontes e aos chafarizes da cidade, dignificando-os através da materialização de propostas culturais e educativas. “Pautada pelo acorde dos fios de água, podemos ouvir uma música ou deter o olhar num pequeno espectáculo de dança, teatro ou circo, numa pequena exposição de pintura, escultura, tapeçaria ou fotografia”, explica.

Para Manuela Justino, também as crianças podem usufruir desses espaços, através da realização de jogos ou histórias. A exposição, que demorou cerca de um ano a ser preparada, constitui um desafio para todos os locais em que vai ser apresentada, no sentido de se recuperarem as fontes e os chafarizes existentes, dando-lhes uma nova vida.

Em Castelo Branco, algumas das propostas de Manuela Justino poderão vir a ser desenvolvidas pela autarquia, através da dinamização, durante a primavera, de vários chafarizes ou fontes da cidade. Uma dinamização que poderá envolver também a Escola Superior de Artes Aplicadas, com os seus diferentes grupos de música.

A residir em Lisboa, e docente de Escola Mário Sá Carneiro, Manuela Justino é uma das artistas portuguesas da actualidade mais conceituadas, tendo já exposto os seus trabalhos nas principais salas portuguesas, como o Centro Cultural de Belém, Museu da Água, Fórum Picoas, Museu das Comunicações ou Tavares Proença Jr, em Castelo Branco. Esteve também no Brasil, numa exposição colectiva e está representada em colecções particulares de Portugal, Brasil, Estados Unidos, Tunísia e Grécia. A exposição Sopro de Água passará ainda por outros locais do país e será encerrada no Museu da Água, tendo como lema a homenagem às fontes, chafarizes e correntes de água de cada um dos locais em que marcar presença.


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