JOÃO LOBO ANTUNES,
NEUROCIRURGIÃO
A educação escolar é
um exercício
de amnésia programada
A desvalorização da memória promovida
pela pedagogia moderna, o gradual desaparecimento da Filosofia dos
programas escolares e a tentativa de aniquilar o livro são ameaças ao
futuro educativo do País, alerta João Lobo Antunes. O neurocirurgião
lamenta que os valores da autoridade e da reverência tenham sido
afastados da escola, ferindo a própria ciência do acto de ensinar. Em
entrevista ao «Ensino Magazine», antecipando a conferência onde vai
estar presente em Castelo Branco no próximo dia 28, subordinada ao tema
o «O Futuro da Medicina e o Futuro da Ética da Vida», o Professor
Catedrático debruça-se sobre as inquietações, as perplexidades e os
desafios éticos que se colocam à prática médica quotidiana.
Vai proferir, no dia 28, em Castelo
Branco, uma palestra sobre «O Futuro da Medicina e o Futuro da Ética da
Vida – As Minhas Inquietações…», no âmbito da conferência «Ética – A
vida (n) a Morte». Pode levantar um pouco do véu sobre o que vai dizer?
Basicamente a minha intenção é questionar o discurso ético tradicional,
sustentado por uma série de princípios, muito respeitáveis e que dão um
esqueleto filosófico e moral muito robusto. Ao mesmo tempo tento
demonstrar que a nova Medicina vem desafiando certos paradigmas que
suscitam uma enorme inquietação, particularmente para os que os vivem no
terreno. Ou seja, há o discurso teórico, muitas vezes formalista, que
esquece a realidade de mundos morais locais, como eu gosto de dizer,
como é o caso de um serviço de urgências, uma sala de operações ou uma
sala de cuidados intensivos.
É essa a fonte das suas
inquietações?
Inquietações e perplexidades, até na minha prática médica quotidiana. O
meu objectivo com esta conferência é suscitar precisamente isso,
discussão e perplexidades.
Os progressos na Medicina são
lentos. Mantém o que disse que as curas para o cancro, um dos maiores
flagelos dos nossos tempos, são uma ilusão?
A Medicina criou uma aura de sucesso técnico, de conquistas imparáveis,
praticamente em todas as áreas. Gerou-se uma espécie de ilusão,
estimulada pelos próprios médicos e pelos cientistas que trabalham na
área da Biomedicina e igualmente pelos mass media. À Comunicação Social
interessam os dois pólos extremos: a notícia do desastre, da falha, do
erro, da incúria, por um lado, e do triunfo, muitos vezes apresentado de
forma pouca crítica, por outro.
Significa que as boas novas sobre os
progressos relativamente ao combate ao cancro são tratadas com exagerado
optimismo?
Eu diria que todas as semanas surge uma notícia a dizer que a cura para
determinado tipo de cancro está à porta. E quando estamos na presença de
cientistas portugueses envolvidos nas investigações então o sucesso
ainda é noticiado com mais ênfase. O empolamento noticioso sobre estas
matérias é indiscutível. No entanto, a realidade é muito mais sóbria.
Existem, inquestionavelmente avanços, mas paralelamente têm-se criado
expectativas que nós não podemos cumprir. Portanto, exige-se da Medicina
resultados que nem sempre são possíveis de garantir. E esta desilusão
entre o prometido e o realizado é frequentemente uma fonte de conflito.
As pessoas pretendem que a morte seja uma mera opção, se quisermos.
Tem explicação para o empolamento de
notícias relacionadas com os actos médicos, sejam elas positivas ou
negativas?
Há factos incontroversos que estão plasmados em estudos. Quando surgem
novos tratamentos são os próprios cientistas e investigadores a
transmitirem essas notícias pelo facto de terem interesse económico
nesse sucesso. São porta-vozes da indústria. Paralelamente, raramente
são explicitados os efeitos tóxicos ou secundários desses tratamentos ou
as análises da relação custo-benefício entre as terapêuticas propostas.
Em suma, nem sempre a verdade e a realidade são reflectidas de forma
integral. Os avanços que ocorrem são pequenos acréscimos que devemos
saudar, pena que o relato fidedigno de todas as etapas do processo deixe
algo a desejar.
Refere que temos uma «população de
preocupados saudáveis» e que a Comunicação Social está constantemente a
criar perigos, uns reais outros imaginários: linhas alta tensão,
telemóveis, frangos com dioxinas, etc. Pensa que tem havido alarmismo
relativamente à gripe A?
É difícil pronunciar-me sobre isso. A informação que tenho, e que parece
credível, diz-me que esta gripe em termos de gravidade se compara
favoravelmente a outras gripes do passado. Eu recordo-me de ter tido a
gripe asiática, quando era miúdo, e que me deixou completamente de
rastos.
Como justifica o antagonismo,
nomeadamente entre os profissionais de saúde, relativamente à
necessidade de tomar a vacina?
É um caso muito ilustrativo da nova realidade social, e que a ética
também tem de abordar, entre a liberdade de escolha e a vontade. Por
mais que se diga o contrário, há sempre um risco, certamente não
desprezível, em qualquer aplicação de vacina ou intervenção. É um
equilíbrio muito instável.
Mas é um caso de saúde pública…
Com certeza. Os médicos de saúde pública estão a cumprir o seu dever,
insistindo nos alertas, na prevenção, mas creio que, por vezes, de uma
forma demasiado estridente. Ou seja, a afirmação repetida à exaustão de
que as coisas estão sob controlo pode ter o efeito paradoxal de aumentar
o pânico.
Com os dados que dispõe defende a
vacinação massiva da população?
A informação que tenho e que me foi transmitida pela minha mulher, que é
Alta Comissária para a Saúde (NDR: Maria do Céu Machado, que também
estará presente na conferência em Castelo Branco) é que se deve começar
pelos grupos de risco. Levanta-se aqui uma análise muito interessante,
até do ponto de vista ético: dever-se-á tratar primeiro dos chamados
«imprescindíveis» e só depois da população de risco? Claro que um dos
princípios da ética é a justiça, que garanta a equidade, a
acessibilidade, etc., mas quando não existe tratamento disponível para
todos a quem se deve dar prioridade e quais as razões?
Está a questionar, por exemplo, a
prioridade da vacinação dos políticos?
Não estou a retirar importância aos deputados, aos médicos ou aos
enfermeiros, mas é preciso pensar que existem outras pessoas igualmente
importantes, como é o caso dos padeiros, por exemplo, que dão de comer a
uma população inteira e custa-me a aceitar que sejam considerados menos
«imprescindíveis» do que um ministro. É uma discussão muito interessante
que está por fazer.
A morte e o envelhecimento são temas
dos seus livros. Os idosos são desprezados pela sociedade?
Antes de mais, creio que a sociedade tomou consciência de que está
envelhecida. Por duas razões: devido ao aumento da esperança média de
vida e pelo facto de a natalidade ter diminuído substantivamente.
Consequência disso é a inversão da pirâmide etária. Há localidades,
nomeadamente na Beira, em que há mais pessoas com 65 anos, do que com
menos de 15. Isto é um problema muito grave ao nível da saúde - Há que
procurar preservar uma boa qualidade de vida até mais tarde. Ou seja,
dar vida aos anos e não dar anos à vida; ao nível económico – com o
aumento das prestações sociais para segurança social e as reformas; e no
domínio da solidariedade social, segurança, solidão e risco de violência
contra idosos fruto da sua vulnerabilidade, já para não falar do facto
de as cidades não estarem preparadas para acolher idosos. O
envelhecimento da população será certamente um dos grandes problemas
sociais das próximas décadas.
Abandono, pobreza e violência são
uma combinação de factores perigosa. Estamos a criar uma sociedade
baseada na indiferença e de distância relativamente ao próximo?
Isso é uma mensagem pessimista e quem tem estudado o tema de forma
aprofundada não pode estar de acordo. A ideia de que a tecnologia, os
valores do dinheiro, da beleza, da vitória e da competição são os que
prevalecem na sociedade contemporânea, precisa de ser vista com outro
sentido crítico. Temos hoje uma sociedade vertical e multi-geracional,
em que cada vez mais os avós olham pelos netos e vice-versa. Prevalecem
valores muito sólidos pelos quais vale a pena afirmar e lutar, para que
perdurem no tempo e se transformem em actos.
Faz aproximadamente 400 operações
por ano, no sector público e privado. A questão das listas de espera é
um dos principais problemas do SNS. O problema é de falta de meios ou
meramente de défice organizativo?
O caso da minha área, a neurocirurgia, é muito particular. Repare que
não temos listas de espera para tumores cerebrais, por exemplo, visto
que estes doentes são altamente prioritários. Na minha opinião não há
neste momento no serviço público meios para abolir eficazmente listas de
espera em patologia de coluna. O meu serviço tem uma produtividade muito
considerável, inclusive é o número um do País, segundo a avaliação da
Escola Nacional de Saúde Pública, mas nós não chegamos para as
encomendas. Mesmo que as duas salas de operações estivessem a trabalhar
todo o dia não seria suficiente. O que não significa que eu concorde que
o recurso a instituições privadas seja feito da forma actual. Nada
garante que a qualidade prestada em instituições desta natureza seja
avaliada do modo que eu entendo, quanto aos procedimentos e quanto às
indicações. A regulamentação do privado é um passo fundamental para
harmonizar ambos os sectores, segundo a conceptualização que considero
mais indicada.
Defende uma melhor articulação entre
ambas as realidades?
Existe um papel legítimo do privado, que eu tenho defendido, mas é
preciso definir padrões de qualidade: quem faz, quem não faz, para não
acontecer que após uma operação no privado, e pós alguma complicação que
surja, o paciente regresse ao público. Ou seja, a responsabilidade do
privado limita-se, praticamente ao acto cirúrgico em si, o que na minha
visão não é a filosofia mais correcta.
O curso de Medicina, ao contrário da
Gestão, Economia e Psicologia, garante alguma estabilidade profissional.
É essa segurança que explica a grande procura em termos de carreira
universitária?
Acho que não. Continua a haver uma grande apetência, especialmente da
população feminina - cerca de dois terços dos alunos de Medicina são
mulheres - e um genuíno interesse e atracção pelas Ciências da Saúde,
até pela possibilidade utópica de praticar o bem. Evidentemente se
houver uma pletora de médicos e não existir prudência na regulação do
seu número, pode chegar-se a situações de desemprego, o que seria uma
catástrofe.
Mas veja que ao contrário de um psicólogo, um economista ou um jurista,
que têm uma multiplicidade de saídas profissionais, nós praticamente só
temos a Medicina. Claro que é possível ir para a indústria ou para a
investigação, mas são carreiras sem significado. Por isso as nossas
aptidões são limitadas.
Continua a achar que o universo de
médicos está mal distribuído pelo País?
Isso é uma evidência constatada pela realidade. Portugal hoje está
próximo de si próprio. Já não existem distâncias intransponíveis. Estou
convicto que se pode ter uma vida muito agradável e de satisfação
profissional seguindo esta carreira, o que é preciso é garantir os meios
e criar atractivos para que as pessoas se desloquem para fora dos
centros urbanos. Reconhecer e retribuir o esforço e o mérito é
fundamental, especialmente nesta profissão.
«Conheço muitos professores, e nos
últimos meses, ainda não vi nenhum feliz», afirmou numa entrevista no
auge do «braço de ferro» entre os docentes e a tutela. Que estados de
alma partilharam consigo os professores que passaram aqui pelo seu
consultório no Hospital de Santa Maria?
Digamos que a mensagem fundamental se pode resumir a isto: não fazem
aquilo para que foram treinados. Existe uma desadequação entre aquilo
que sabem fazer e as funções que lhes foram distribuídas.
Sentiu muita amargura nesses
testemunhos?
Há uma enorme incerteza relativamente a tudo: ao futuro, às posições,
aos lugares, às vagas, etc. E separam-se casais de uma forma desumana.
Da mesma forma que na Medicina os médicos se casam com médicas, no
ensino os professores contraem matrimónio com professoras. Há situações
de casais muito jovens, a começar a vida em conjunto, separados por
centenas de quilómetros. É algo que faz sangrar o coração. Não sei qual
a solução para isto, mas que o fenómeno humano e social existe, lá isso
existe.
Este conflito aberto entre a tutela
e os docentes feriu de morte a autoridade dos professores?
Talvez não seja politicamente correcto o que vou dizer, mas toda a forma
de ensino é um exercício de autoridade. Esta tolerância máxima nas
escolas e aquilo que se reclama com os direitos dos alunos, mais do que
com os seus deveres, parece ofuscar o facto fundamental de que há uma
assimetria de autoridades. O professor sabe, o aluno aprende. O
professor ensina, o aluno é o receptor. Portanto, tudo o que de alguma
forma ameace a assimetria de autoridades acaba por ferir a própria
ciência do acto de ensinar.
O Liceu Camões completou
recentemente 100 anos. Na condição de antigo aluno, pronunciou um
discurso em que destacou o rigor com que o Reitor Sérvulo Correia geriu
a prestigiada escola de Lisboa. Que recordações tem desses tempos?
O Reitor era muito severo e autoritário, mas tinha o mérito de governar
um grande liceu. E quando olhamos para trás vemos que a disciplina que
reinava era o ingrediente fundamental do processo de aprendizagem na
altura.
É o ingrediente que agora falta?
Há algumas posições absurdas, porque o exercício de autoridade é sempre
este deslizar para um despotismo não esclarecido. A autoridade não se
impõe pela força, mas pelo respeito. E também por outro sentimento que
está muito fora de moda e a que o George Steiner chamou «reverência». A
reverência tem que existir relativamente à pessoa, mas também tem que
existir pela carga simbólica do cargo. Quando oiço pessoas com
responsabilidade usarem relativamente ao Presidente da República certas
expressões, espanto-me como é que esses indivíduos poderão exigir aos
alunos respeito pelos professores.
A reverência pelo velho mestre que
tudo ensinava perdeu-se em definitivo?
O professor merece reverência, a começar pelo cargo que representa, pelo
simples facto de ser professor. A partir do momento em que se mina esse
sentimento, tudo pode acontecer.
Os actos de violência nas escolas
foram a expressão que se perdeu o respeito à classe docente?
Sem dúvida. Hoje em dia dou algumas aulas, a pequenos e a grandes
grupos, e quando vejo alguém a enviar um SMS dentro da sala,
interrompo-a de imediato e convido a pessoa a sair. Sei que não é
prática corrente, mas parece que hoje em dia os professores têm medo dos
alunos. Eu não aceito.
Admite que falta vocação a alguns
professores?
Sou frequentemente convidado para palestras em escolas secundárias. Das
minhas viagens constato que existem docentes com uma enorme boa vontade.
Tal como a Medicina, o ensino e a docência são vocações. É o vocatio, a
resposta a um chamamento. Eu sou por natureza um educador, porque
percebi a importância que teve para mim a educação. Ou seja, o processo
de transformação da forma como eu me fiz, naquilo que sou. Isso cria um
dever moral quase de retribuição. A cirurgia tem de ser ensinada e é
muito compensador observar que o processo de evolução das pessoas é
transformativo.
Definiu o computador “Magalhães”
como uma espécie de vacina anti-iliteracia. Porque é que afirma que é
uma solução fácil que não contribui para a memorização e para exercitar
o cérebro?
Um dos enormes disparates da pedagogia moderna foi desvalorizar a
memória. A educação escolar é hoje, em grande medida, um exercício de
amnésia programada. Recordo que a minha aprendizagem de Medicina foi,
desde sempre, um exercício de musculação da memória. A memória é
essencial para a vida, em geral, e para o exercício de uma profissão, em
particular.
O melhor professor de Matemática que tive, e que marcou muitos dos que
passaram no Liceu Camões, o prof. Carneiro da Silva, obrigava-nos a
decorar as fórmulas matemáticas e, no dia seguinte, dizia simplesmente
isto: «cantem meninos, cantem».
Hoje em dia abusa-se das receitas
educativas mais fáceis e de resultados rápidos?
Abusa-se. Outro disparate é a tentativa de aniquilar o livro.
Tem combatido o que diz ser o
«apagamento» da filosofia nos programas do ensino secundário,
sublinhando a importância desta disciplina na sua vida profissional e
pessoal. O que perde um ser humano em construção cívica e moral sem as
referências filosóficas?
Como dizia o Fernando Gil, provavelmente o melhor filósofo português
do século XX, sem a Filosofia perde-se «a capacidade de ver para lá da
aparência das coisas». Digo que também que se perde sentido crítico, a
percepção das contingências da verdade e da evidência e o sentido da
administração do transcendente. A outra dimensão da nossa existência. No
fundo, a escola e o mundo sem a Filosofia tornam-se num enorme
empobrecimento.
Corre-se o risco de a Filosofia
desaparecer por completo da escola?
É o mesmo risco que se corre ao desvalorizarmos os portugueses, se
insistirmos na relativização de tudo, em que tudo vale a mesma coisa, o
que não é verdade…
O seu pai trabalhou de perto com
Egas Moniz. Já confidenciou que o Prémio Nobel da Medicina, em 1949, foi
uma das pessoas que o influenciou a seguir esta carreira e está, neste
momento, a trabalhar na biografia de Egas Moniz, a lançar no próximo ano
durante as comemorações do Centenário da República. Quer falar-nos um
pouco desse projecto?
É uma empresa demorada, custosa e difícil, mas muito gratificante. Não
sei se será possível ter a obra pronta a tempo das comemorações do
Centenário da República, mas pela investigação que tenho feito já
percebi a dificuldade de compilar a vida de uma pessoa que viveu tanto
tempo e que deixa um legado tão rico. Eu gostaria muito, de acordo com
as minhas possibilidades, que esta fosse a obra mais perfeita que
consegui fazer com aquilo que tenho. No fundo, pretendo, em colaboração
com outros «egófilos» que existem neste País, chamar a atenção para o
significado que este português teve na história das neurociências a
nível mundial.
Sem ser político, tem estado perto
deles e merecido a sua confiança para funções de destaque. Foi
mandatário nacional das candidaturas presidenciais de Sampaio e Cavaco e
actualmente é Conselheiro de Estado. Os políticos e as políticas não têm
dado resposta para os problemas do País. Acha que os políticos são
incompetentes ou incompreendidos?
Se calhar é um pequenino componente de ambas as coisas. A minha primeira
palavra é de respeito para os que conseguem ser políticos. Qualquer
cargo desta natureza é de uma enorme delicadeza e complexidade. Tenho
encontrado muitos com sentido de Estado e do dever. Nutro uma enorme
admiração pelo poder autárquico, tendo-me cruzado, ao longo destes anos,
com gente admirável e empenhada. Independentemente dos pecadilhos que
possam ter, seja de ambição pessoal, vaidade, etc. Isso a mim não me
interessa. Um político vale basicamente pela obra, o que não quer dizer
que aprove todas as maneiras de a colocar em prática.
De que políticos não gosta
verdadeiramente?
Não gosto dos políticos que mancham o serviço público com a
intolerância, que recorrem ao insulto por não terem liberdade
intelectual para reconhecer a bondade de opiniões opostas. Confesso que
também não gosto dos políticos que nasceram na política e nunca fizeram
outra coisa na vida e que desconhecem o mundo real e as verdadeiras
dificuldades das pessoas. Tenho uma enorme suspeita por quem nasce,
cresce e acaba por morrer dentro da política, sem ter tido outra
experiência qualquer. É preciso reconhecer que da mesma forma que há
maus médicos e jornalistas desonestos, é possível que também haja
políticos incompetentes. Acontece que eu tenho uma enorme tolerância
para com as fraquezas da natureza humana.
E também há os que são trucidados
pelo sistema...
O dever cívico comum a todos nós é desempenhar da melhor forma possível,
no dia-a-dia, aquilo que nos compete fazer. Deixe-me falar de dois
políticos, que já não estão em funções e que foram severamente
criticados. Tome-se, por exemplo, a ex-ministra da Educação Maria de
Lurdes Rodrigues, pessoa que critiquei várias vezes. Tenho um enorme
respeito por ela. Tenho a certeza absoluta que as suas medidas foram
tomadas em consciência, tendo em vista o melhor para o País, alunos,
professores e sociedade em geral. Veja-se, também, o ex-ministro,
Correia de Campos, na Saúde, que por ser tão criticado, acabou afastado.
Ele tinha uma ideia convicta, em certos aspectos com muito mérito, mas
acabou traído por alguma inabilidade política.
Tenho muito respeito por ambos. Eu não era capaz de fazer o que eles
fizeram. Prova disso, é que já fui convidado para ser ministro e não
aceitei.
Define-se como um «médico que
escreve». Os seus irmãos, Nuno e António, também são escritores de
sucesso. Lê o que eles escrevem? Trocam críticas literárias?
Temos uma enorme independência, mas alguns dos assuntos que se encontram
nos livros são temas das nossas conversas. O António refere-se, uma vez
por outra, àquilo que eu escrevo. Reconheço uma autoridade em relação à
minha escrita que eu não tenho em relação à escrita dele. Mas aprecio
quando há uma palavra de elogio. Não posso deixar de o confessar. Quanto
ao Nuno, escreve também muito bem. Noutro registo. Ambos merecem o meu
respeito e aplauso.
Os irmãos Lobo Antunes escritores
não disputam os mesmos públicos?
Temos públicos diferentes. Não sei qual o meu nicho, mas no outro dia
encontrei um senhor muito velhinho aqui no Hospital de Santa Maria que
se dirigiu a mim para me «agradecer o prazer que me dá com a sua
escrita». Se houver um leitor que seja a pensar desta maneira, então
acho que vale a pena escrever.
Nuno Dias da Silva
Tiago Miranda/Expresso H
Cara da Notícia
João Lobo Antunes nasceu a 4 de Junho
de 1944, em Lisboa. Neurocirurgião, licenciou-se no ano de 1967 em
Medicina na Universidade de Lisboa. Três anos após terminar o curso,
obteve uma bolsa e rumou aos Estados Unidos, onde permaneceu durante
13 anos, tendo trabalhado no Departamento de Neurocirurgia da
Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde foi nomeado professor
associado. Doutorou-se em Medicina, pela Universidade de Lisboa, em
1983. Um ano mais tarde regressa a Portugal como Professor
Catedrático de Neurocirurgia da Faculdade de Medicina de Lisboa. Foi
presidente da Sociedade Europeia de Neurocirurgia e actualmente é
director do Serviço de Neurocirurgia do Hospital de Santa Maria,
preside à Sociedade de Ciências Médicas de Lisboa e ao Instituto de
Medicina Molecular, sendo também membro da Academia Portuguesa de
Medicina e de numerosas sociedades científicas europeias e
norte-americanas. Em 1996, foi a décima personalidade a receber o
prestigiado «Prémio Pessoa», instituído pelo jornal «Expresso» e
pela empresa de consultoria «Unisys».
Em termos de produção literária, lançou os seguintes livros com a
chancela da Gradiva: «Um modo de ser» (1996), «Numa cidade feliz»
(1999), «Nova Iorque e Outros Ensaios» (2002), «Sobre a mão e outros
ensaios» (2005) e «Eco silencioso» (2009).
Na política, foi mandatário da candidatura presidencial de Jorge
Sampaio, em 1996, e Cavaco Silva, em 2006. Depois de eleito para
Belém, Cavaco Silva nomeou-o Conselheiro de Estado.
Os objectos de estudo de Lobo Antunes foram principalmente o
hipotálamo e a hipófise. Em 1982 foi o primeiro médico da história a
implantar o olho electrónico num invisual. Desde então esse implante
já foi realizado noutros invisuais, permitindo-lhes visualizar
algumas formas e distinguir certas cores.
Em 1984, opera de urgência no hospital da CUF, em Lisboa, o ciclista
Joaquim Agostinho, vítima de uma fractura de crânio provocada por
uma queda na Volta ao Algarve. O «herói da estrada» passa 10 dias em
coma depois da intervenção em o neurocirurgião tentou remover com
sucesso o coágulo que se formara. O facto de há 25 anos em Portugal
não existir um serviço de neurocirurgia no sul do País e de a viagem
por estrada entre Faro e Lisboa demorar 6 longas horas terá pesado
no dramático desfecho que enlutou o país.
PAULA MOURA PINHEIRO,
JORNALISTA
Jornalismo deveria ser
mais exigente
Paula Moura Pinheiro, sub-directora da
RTP2, considera que o objectivo daquele canal passa pela missão expressa
de promover o conhecimento, o pensamento e a criação. Em discurso
directo, com respostas enviadas por mail, aquela responsável fala do seu
programa Câmara Clara, e sublinha que o jornalismo deveria ser uma
profissão mais exigente.
Qual a avaliação que faz destes três
anos ao leme do Câmara Clara?
Têm sido tempos muito gratificantes. Conseguimos fixar uma média de cem
mil telespectadores por semana.
A que se deve a longevidade e a
frescura do Programa?
Não creio que a longevidade do Câmara Clara seja, para já, notícia. Há
muitos programas no ar com muito maior longevidade. Quanto à frescura, a
expressão é sua. Mas agradecemos.
Quais as razões que pesaram na
decisão de aceitar o cargo de sub-directora da RTP2?
Para lá de ser uma jornalista que começou a fazer televisão há 17 anos,
a RTP2 é, desde sempre, o canal com que mais me identifico.
A RTP2 está destinada a ser o último
reduto da cultura televisiva em Portugal?
A RTP2 tem por missão expressa promover o conhecimento, o pensamento e a
criação. Isto não é sinónimo de que a RTP1 não o faça também, à sua
maneira. A promoção do conhecimento e do pensamento não se faz
exclusivamente através do documentário de autor, da transmissão de uma
ópera de Wagner ou de um programa como o Câmara Clara. Quando se passa
uma série de ficção inteligente, bem escrita, bem realizada, está-se
também a promover o pensamento. Sendo que quem garante ao público, em
sinal aberto, as melhores séries de ficção é a RTP2.
O jornalismo ainda é um sonho para
muitos jovens, mas a realidade do jornalismo como é?
Devia ser uma profissão muito exigente porque envolve uma enorme
responsabilidade. Lamentavelmente, muitas vezes essa responsabilidade
não é honrada (as razões são diversas) e, portanto, a dureza desta
profissão tem mais a ver com questões financeiras, logísticas,
administrativas e não com o coração do que significa ser jornalista.
A Literatura perdeu terreno entre os
jovens? Lêem-se mais piores livros?
Lê-se mais que há 35 anos. Os dados são objectivos: antigamente uma
grande parte da população nem sequer sabia ler. Não creio que o Thomas
Mann seja, nalguma latitude, a leitura habitual dos “jovens”.
A promoção da leitura que faz é um
trabalho missionário?
Não. É um gosto. Se for útil a alguém, óptimo.
Uma única peça de arte tem
inspiração para mudar uma vida?
Às vezes, há encontros que mudam a forma de sentirmos a vida. Nesses
encontros transformadores cabem os livros, a pintura ou escultura, o
teatro, a música.
Ser uma figura pública retira-lhe
alguma liberdade?
Pouca. Sou uma figura discreta e faço uma vida discreta.
Pensa em escrever mais livros?
Não. E, em rigor, nunca “escrevi um livro”. Tenho algumas edições
assinadas por mim de textos já publicados na imprensa ou de textos de
carácter jornalístico.
MANUELA JUSTINO EM
EXPOSIÇÃO
Um Sopro de Água
A artista albicastrense Manuela Justino
tem patente, até ao próximo dia 27 de Dezembro, no Museu Tavares Proença
Jr, em Castelo Branco, a exposição de pintura Sopro de Água. Uma mostra,
que integra também um trabalho fotográfico da autora sobre os chafarizes
e fontes da cidade de Castelo Branco, e que pretende homenagear aqueles
locais emblemáticos da cidade.
No entender de Manuela Justino, “Sopro de Água procura sensibilizar as
pessoas e entidades competentes de Castelo Branco para a fruição,
preservação e recuperação destes espaços e da sua essência”. A ideia de
Manuela Justino passa por dar vida às fontes e aos chafarizes da cidade,
dignificando-os através da materialização de propostas culturais e
educativas. “Pautada pelo acorde dos fios de água, podemos ouvir uma
música ou deter o olhar num pequeno espectáculo de dança, teatro ou
circo, numa pequena exposição de pintura, escultura, tapeçaria ou
fotografia”, explica.
Para Manuela Justino, também as crianças podem usufruir desses espaços,
através da realização de jogos ou histórias. A exposição, que demorou
cerca de um ano a ser preparada, constitui um desafio para todos os
locais em que vai ser apresentada, no sentido de se recuperarem as
fontes e os chafarizes existentes, dando-lhes uma nova vida.
Em Castelo Branco, algumas das propostas de Manuela Justino poderão vir
a ser desenvolvidas pela autarquia, através da dinamização, durante a
primavera, de vários chafarizes ou fontes da cidade. Uma dinamização que
poderá envolver também a Escola Superior de Artes Aplicadas, com os seus
diferentes grupos de música.
A residir em Lisboa, e docente de Escola Mário Sá Carneiro, Manuela
Justino é uma das artistas portuguesas da actualidade mais conceituadas,
tendo já exposto os seus trabalhos nas principais salas portuguesas,
como o Centro Cultural de Belém, Museu da Água, Fórum Picoas, Museu das
Comunicações ou Tavares Proença Jr, em Castelo Branco. Esteve também no
Brasil, numa exposição colectiva e está representada em colecções
particulares de Portugal, Brasil, Estados Unidos, Tunísia e Grécia. A
exposição Sopro de Água passará ainda por outros locais do país e será
encerrada no Museu da Água, tendo como lema a homenagem às fontes,
chafarizes e correntes de água de cada um dos locais em que marcar
presença.
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