ANTÓNIO MARINHO E PINTO,
BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS
"A massificação
dos cursos de Direito
degradou a Justiça"
Eleito com a maior votação da história da
Instituição, assegura que vai continuar a «incomodar» até ao final do
mandato. Marinho e Pinto afirma que a maior parte dos cursos de Direito
tem uma qualidade duvidosa e que o mercado não absorve os cerca de 3 mil
novos licenciados que anualmente saem das faculdades. Em entrevista ao
«Ensino Magazine», o Bastonário dos Advogados diz que a Justiça «é um
dos piores fracassos da nossa República» e que quando o sistema judicial
«funciona mal, nada funciona bem». Lamenta que «não existam corruptos
presos», aponta um «défice de cidadania e cultura democrática» nacional
e mostra-se estupefacto com a «política de favorecimento» que vigora no
relacionamento entre o Estado e os bancos.
Foi eleito o 24º Bastonário da Ordem
dos Advogados com a maior votação de sempre. Que balanço faz de um ano
de mandato na afirmação do Estado de Direito e da dignificação da
profissão?
O meu balanço é positivo. Tivemos muitas dificuldades, mas a
determinação para enfrentá-las foi e é grande. Propusemo-nos reformar a
Ordem e a Justiça para que esta esteja ao serviço do Estado de Direito e
dos cidadãos. Nesse sentido, temos procurado implementar mudanças
imperiosas que têm suscitado variadíssimas resistências. A questão do
apoio judiciário, que estava longe de ser a prioridade, foi a primeira
reforma, visto que herdámos uma portaria publicada cinco dias antes de
tomarmos posse e que era aviltante para os cidadãos e para a advocacia.
Convencemos o Governo a mudar o sistema de acesso ao Direito.
Que principais conquistas decorrem
dessa reforma?
O apoio judiciário foi ampliado a muitos mais cidadãos, criaram-se
regras mais transparentes na nomeação de advogados, evitaram-se
situações susceptíveis de gerar suspeitas, e, finalmente, dignificou-se
a prestação do apoio judiciário através da nomeação de advogados mais
experientes em vez de advogados estagiários que não estavam,
manifestamente, em condições para o exercício dessas funções. O apoio
judiciário existe para garantir os direitos dos cidadãos mais
carenciados, não existe para dar formação aos candidatos à advocacia na
OA. Era uma perversão a que pusemos termo. A celeuma foi muita, mas o
barco continua a navegar e há-de chegar a bom porto.
Acusam-no de ser polémico e já o
compararam a Hugo Chávez e a Benito Mussolini. Responde que é,
simplesmente, um homem de convicções. Tem noção que incomoda muita
gente?
Claro que incomodo. Aliás, fui eleito para incomodar. O programa que
elaborei foi justamente para operar a mudança. Estou imunizado face a
esse tipo de argumentos que partem de pessoas que não apresentam
alternativas para combater as minhas ideias. Quando não há argumentos,
ataca-se as pessoas. Por vezes, as injúrias definem mais quem as produz,
do que propriamente os visados.
A luta contra a corrupção foi uma
das bandeiras no início do seu mandato. Falta coragem política para ir
mais longe?
A corrupção é, porventura, o problema mais grave que afecta o Estado de
Direito. E não falo só de Portugal. Denunciar e combater a corrupção é
um imperativo de todos, não apenas das polícias e dos investigadores. No
meu programa propus lançar uma grande campanha nacional contra a
corrupção. Quando proferi as primeiras declarações, apareceram algumas
pessoas, quase com ar de virgens num bordel, dizendo que eu devia
apresentar nomes. Eu denuncio factos e situações que acho que estão
errados, não acuso pessoas. Há órgãos do Estado próprios para fazer a
investigação e reunir as provas necessárias para deduzir a acusação.
Mas disse que houve governantes que
estiveram implicados em casos nebulosos. É uma acusação grave...
A mim compete-me discutir, enquanto cidadão, as questões que são
preocupantes para o Estado de Direito. Repare: eu quando abordo o
tráfico de droga não tenho de apresentar nomes de traficantes, quando
abordo a exploração da prostituição não tenho de identificar proxenetas,
e o mesmo se aplica rigorosamente quando se fala em corrupção e os
respectivos corruptos e corruptores. Temos é que debater o tema com
seriedade e não varrer o lixo para debaixo do tapete.
Onde entra o papel dos políticos?
O debate sobre a corrupção deve centrar-se no campo político, a partir
de medidas corajosas, uma vez que em termos processuais é muito difícil
reunir as provas e os elementos típicos desse ilícito.
Diz-nos a experiência que nunca
houve um português preso por corrupção...
É um facto que não há corruptos presos no nosso país. A corrupção é um
cancro do Estado de Direito e um grande entrave ao desenvolvimento de
Portugal. Um alto quadro do Banco Mundial disse há uns anos que Portugal
podia ter um desenvolvimento semelhante ao da Finlândia não fosse o
elevado índice de corrupção. Esta constatação deve levar-nos a agir, ou
seja, a denunciar. E criar condições para que quem beneficia com a
corrupção não se sinta bem dentro do regime democrático.
É correcto falarmos em pessoas acima
da lei e numa governamentalização da Justiça, que encobre casos
envolvendo pessoas com responsabilidades públicas?
Não há uma governamentalização judicial. Aliás, um dos males da Justiça
é precisamente o de funcionar demasiado em roda livre, de modo
irresponsável e sem prestar contas a ninguém. Antes de mais, devia
existir uma cultura de responsabilidade nos tribunais, a começar pelos
magistrados, pelo que fazem e, sobretudo, pelo que não fazem.
Mas por que é que diz que a
esmagadora maioria dos políticos nacionais não «sobreviveriam
politicamente» no Reino Unido e nos Estados Unidos?
Os eleitores lá são muito mais exigentes. Veja as dificuldades com que
se tem confrontado o presidente Obama para formar a sua administração,
devido às incompatibilidades que têm surgido em alguns dos nomes que ele
escolheu. Cá temos a peculiaridade de pessoas que são julgadas por
crimes cometidos no exercício de funções públicas, acabam condenadas e
posteriormente são eleitas.
Como explica a popularidade dessas
pessoas?
Há sectores da população portuguesa que acumulam um grande défice de
cidadania e de cultura democrática o que leva a que se escolham
personalidades desprovidas de idoneidade moral e cívica para desempenhar
funções políticas.
A maior visibilidade da Justiça nos
últimos anos, trouxe-lhe pior imagem e mais descrédito. É atirando
dinheiro sobre os problemas, aliás uma técnica muito portuguesa, que
vamos inverter esse cenário?
Temos gasto milhões e milhões de euros, sem qualquer sentido. Os
tribunais são um sorvedouro infinito de recursos públicos. Era preciso
racionalizar essas verbas que saem do erário público para estes órgãos
de soberania. A cultura de responsabilidade e os critérios rigorosos nos
gastos devia prevalecer. Dou-lhe este dado, para que se perceba a forma
arrepiante como se esbanja dinheiro na Justiça em Portugal: segundo um
relatório do Conselho da Europa de 2004, cada cidadão no Reino Unido
pagava 55 euros para a Justiça, 38 dos quais eram destinados ao apoio
judiciário e 17 ao funcionamento da máquina judicial; em Portugal, cada
cidadão pagava 50 euros, 47 dos quais iam para a engrenagem judicial e
os restantes três eram canalizados para o apoio judiciário.
Disse que Portugal «é um país que
funciona muito na base da mentira, e o nosso sistema judicial também».
Este sistema é o espelho social?
Não é apenas na Justiça. Acontece em muitas outras instâncias da vida
nacional. Lamenta-se é que os problemas se acumulem na instância que
tinha por função resolver os desvios em outros domínios da vida pública.
Por isso, num país onde a Justiça funciona mal, nada funciona bem.
O caso Casa Pia, o expoente máximo
do mediatismo judicial, demonstrou que se legisla, sofregamente, ao
sabor de uma dificuldade?
Não creio que tenha havido muita pressa em legislar. O que o caso Casa
Pia mostrou foi os podres da Justiça, nomeadamente que esta funcionava
segundo critérios medievais e próprios da Inquisição. As pessoas eram
presas sem poder rebater os factos, estavam detidas preventivamente sem
motivo, os interrogatórios eram demasiado longos, etc. Este processo
demonstrou que não se podem fazer mudanças no escuro ou ao sabor de
interesses corporativos que estão instalados no sistema judicial.
A opinião pública interroga-se sobre
a duração excessiva deste caso. Para quando prevê uma decisão?
A sentença será proferida ainda este ano e objecto de vários recursos
para diversos tribunais. O veredicto final vai demorar muitos anos, não
lhe sei dizer quantos, com rigor.
Foi jornalista vários anos,
nomeadamente no «Expresso». Estando os dois tempos, o mediático e o
judicial desfasados, como é que se atinge o ponto de equilíbrio,
estancando alguns excessos que têm sido cometidos de parte a parte?
Cada um deve respeitar os valores éticos da respectiva profissão. O
jornalista deve obedecer à sua deontologia e os tribunais devem
respeitar a lei e os direitos fundamentais dos sujeitos processuais. O
que temos assistido é a evidência de uma promiscuidade entre os maus
investigadores judiciais e os maus jornalistas. É, nesse âmbito, que os
jornalistas parasitam as investigações, em vez de desenvolverem a
investigação autónoma que lhes competia. Limitam-se a transformar em
manchetes ou em factos a opinião de investigadores frustrados por não
conseguirem os resultados que gostariam de apresentar à opinião
pública...
Refere-se o caso Freeport, em que
denunciou a «simbiose» entre a investigação e o jornalismo
sensacionalista?
Precisamente. Até à data não foi apresentado nenhum facto jornalístico
que possa consubstanciar um indício processual da prática de um crime.
Tudo foi inventado a partir da própria polícia, sem nenhum facto. Isto
durante 4 anos. É uma vergonha para a investigação criminal em Portugal
o que se está a passar com o caso Freeport. Isto gera uma situação de
alarme social desnecessário, criando uma nuvem de suspeição que, na
prática, não existe.
Quando afirma que «há medo instalado
nas pessoas e falta de coragem para exercer a liberdade de expressão»,
está a traçar o perfil de uma sociedade amordaçada em pleno regime
democrático?
A liberdade é um bem pelo qual se tem de lutar em permanência.
Infelizmente, por comodismo ou por medo, há muita gente que abdica de
combater por esse valor. A liberdade de expressão assume três dimensões:
a de criticar ou denunciar, a de estar calado e a de elogiar. Num Estado
de Direito é, sobretudo, a liberdade de criticar que é fundamental, no
sentido da denúncia de factos que estão errados. Porque a liberdade para
elogiar ou para estar calado existe em qualquer ditadura. O Dr. Salazar
convivia muito bem com a liberdade de expressão quando ela se
manifestava através do silêncio ou dos elogios. Mas não é essa a
liberdade num Estado de Direito digno desse nome. O problema é que há
muitas pessoas que não aceitam a crítica e reagem com ameaças, insultos
e perseguições, fazendo com que os outros tenham medo de ser livres. Há
sectores da sociedade que têm medo de assumir a sua condição de cidadãos
em plenitude.
A troca de argumentos entre a Ordem
e o Sindicato dos Juízes aumentou de tom. Porque é que magistrados e
advogados estão de costas voltadas?
Os sindicatos tratam o Estado como patrão e estão em conflito permanente
com o patrão. Como todas as associações sindicais, desejam mais dinheiro
e menos trabalho para os seus associados. O Sindicato dos Juízes gosta
muito de quem os elogia ou quem fica calado perante o que se passa nos
tribunais. Como eu denuncio o que acontece nos tribunais, eles
desferem-me ataques pessoais e cortam relações institucionais. Suporto
isso muito bem, porque essas atitudes têm origem em pessoas sem
argumentos para rebater as minhas críticas.
O que se passa de tão grave nos
tribunais para merecer a sua indignação?
Situações completamente aberrantes de violação da lei por parte de
magistrados, sobretudo de juízes, de agressão aos direitos fundamentais
da pessoa humana. Aliás, os tribunais portugueses são um dos locais onde
mais se violam os direitos fundamentais, quando devia ser o oposto. Os
direitos humanos nunca terão boa saúde se são agredidos num órgão de
soberania como são os tribunais. Os magistrados colocam na primeira
linha os seus privilégios e as suas comodidades, em detrimento dos
direitos e necessidades dos cidadãos. Há muito tempo que denuncio isto e
continuarei a fazê-lo.
Os magistrados não convivem bem com
a crítica?
Os nossos magistrados estão habituados apenas a elogios ou ao silêncio
reverencial. Comigo não. Devo dizer que muitas das piores mentiras que
existem na Justiça são feitas de silêncios. Muitas vezes, estar calado é
mentir. Eu, enquanto Bastonário, ambiciono mais respeito pelos direitos
dos cidadãos, Justiça mais barata, mais rápida e mais próxima dos seus
destinatários, mais desformalizada e compreensível para todos. Pelo
contrário, a Justiça tem sido orientada em função de interesses e
prerrogativas dos senhores magistrados.
A opinião pública insurge-se contra
os dois pesos e duas medidas do sistema. Os poderosos envolvidos em
esquemas obscuros estão à solta, enquanto uma senhora que roubou um
creme numa loja foi condenada em tribunal. Os juízes também têm «culpas
no cartório» face a esta dualidade de critérios?
O cenário de uma Justiça para pobres e outra para ricos, não deve ser
apenas imputável aos juízes. Os magistrados têm a sua quota parte de
responsabilidade, mas as principais causas são do próprio sistema que
não garante a possibilidade de as pessoas poderem contratar advogados
para os defenderem. Cerca de 90 por cento dos detidos em cadeias
portuguesas são pobres e não tiveram dinheiro para contratar um
advogado, restando-lhe um advogado oficioso, em muitos casos com falta
de experiência. Daqui surge a recorrente sensação de que a Justiça não é
igual para todos: temos uma Justiça impiedosa e inclemente para sectores
mais desfavorecidos e uma outra Justiça dócil e obsequiosa para os ricos
e poderosos. Este é, seguramente, um dos piores fracassos da nossa
República.
Nos casos BPP e BPN, o Estado saiu
em defesa da banca em dificuldades, mesmo existindo indícios de gestão
danosa e crime. Como explica este tratamento privilegiado?
Vigora uma cultura política de favorecimento aos bancos. A actividade
bancária tem um privilégio especial na nossa sociedade. Parece que em
Portugal nenhum banco pode ir à falência, o que é uma discriminação
relativamente a outros domínios da economia. Por exemplo, há empresas
com milhares de trabalhadores que fecham e o Estado mantém-se impávido,
mas se um banco tiver em dificuldades, é imediatamente nacionalizado.
Veja que do BPN desapareceram quase 2 mil milhões de euros (400 milhões
de contos) e continuamos num processo de investigação para saber para
onde foi o dinheiro. Parece que se encontrou um «bode expiatório», mas
nada mais do que isso. É preciso apurar, até ao fim, responsabilidades
dos dirigentes do banco, sabendo-se que alguns deles tinham um pé na
actividade económico-financeira e outro no meio político.
A relação próxima entre bancos e o
poder político pode ter ligação com o financiamento partidário?
Não faço esse tipo de processo de intenção. Afirmo que a relação entre
bancos e Estado é potencialmente explosiva e perigosa, o que deve
merecer um permanente escrutínio público e político.
É defensor da abolição do segredo
bancário?
O endeusamento do segredo bancário deve ceder, imediatamente, perante a
evidência de crimes. Não é possível recorrer a ele para ocultar a
prática de infracções de natureza criminal. Da mesma forma que seria bom
que os off-shores acabassem rapidamente.
A Escola, tal como a Justiça, não
vive um período fácil. Aponta semelhanças entre os dois sistemas?
Tal como a Justiça deve estar voltada para o cidadão, a política
educativa deve ser direccionada para os alunos. Porque são estes que dão
sentido à Escola. Neste domínio, tal como noutros sectores, os sistemas
estão organizados em beneficio das comodidades e interesses de quem lá
trabalha, sejam funcionários ou professores, em vez de beneficiar os que
lá se dirigem, os alunos. Quando era professor do ensino superior, via
que algumas vezes os alunos tinham uma aula às 10 da manhã e outra às 6
da tarde, por mera comodidade dos docentes. Isto é uma crítica
transversal aos vários sectores da administração pública.
Falta, de uma forma geral, exigência
na Escola?
Daquilo que conheço melhor, ou seja, as universidades e o ensino do
Direito, penso que sim. Estou em crer que ninguém vai querer estar numa
escola que reprove muito e vão antes procurar aquela que chumbe o menos
possível. Por isso, os padrões de rigor e exigência estão actualmente
muito flácidos no sistema de ensino. É sabido que elevar o nível de
exigência e de rigor não traz votos aos políticos e aos próprios
sindicatos.
A advocacia passou a ser uma
actividade massificada (de 5 mil advogados nos anos 80, passámos para
mais de 26 mil no exercício efectivo da actividade). Defende menos
advogados na profissão e também menos cursos?
É preciso combater a massificação na advocacia, através de uma lógica
assente em menos advogados e melhores advogados.
Como se alcança esse desiderato?
Obviamente que não vamos expulsar os que já estão no mercado, tem é que
se ser criterioso na admissão. É incomportável aceitar 3 mil novos
advogados por ano na sequência da massificação do ensino universitário
do Direito. Foi um bom e chorudo negócio para muita gente, mas
contribuiu para degradar a Justiça. Espera-se que a Agência de
Acreditação e Validação dos Cursos do Ensino Superior comece a encerrar
grande parte dos cursos de Direito existentes no nosso país, por não
terem a qualidade mínima exigida para licenciar estudantes.
Quantos advogados é que Portugal
precisa?
Seguramente menos de metade do que os que tem. Entre 10 a 12 mil
advogados eram suficientes para responder adequadamente às necessidades
sociais do patrocínio forense e às respectivas exigências
constitucionais.
Há mercado para «encaixar» os 26 mil
advogados actualmente a exercer?
De maneira nenhuma. O mercado não absorve tantos profissionais. Passa-se
uma situação semelhante com os licenciados em Comunicação Social. Era
bom que não houvesse tantos cursos a funcionar, porque estão a enganar
os jovens, prometendo-lhes saídas profissionais que não existem. Muitos
deles só conseguem empregos em sectores que não têm nada a ver com o
curso que estão a tirar. Muitos tentam inscrever-se na Ordem e andam
anos a lutar pela sobrevivência profissional que, infelizmente, só uma
minoria vai conseguir. A mensagem que deve ser passada é a seguinte:
depois de 4 ou 5 anos de curso, vão ter mais 2 ou 3 anos de estágio e,
só depois, com sorte, mais 4 ou 5 anos para sobreviver
profissionalmente, porque não existe procura para tanta oferta.
No que diz respeito à formação dos
advogados também introduziu mudanças substanciais. Em que consiste a
mudança de paradigma?
2009 vai ser o ano dedicado à formação na OA As reformas em curso visam
acabar com práticas erradas. Os estagiários pagam 1 milhão e 800 mil
euros por ano à Ordem, mas a entidade reguladora da profissão não pode
estar a cobrar quantias tão elevadas quando muitos deles nem vão seguir
esta carreira. É injusto. Outro aspecto que queremos mudar, rompendo com
paradigmas instalados de há duas décadas é o seguinte: a formação deve
assentar no patrono tradicional - a OA não tem que ensinar Direito aos
candidatos a advocacia, mas ministrar formação em deontologia e na área
da prática forense. O Direito teórico é aprendido nas universidades. A
Ordem deve orientar os seus esforços para a formação contínua dos
advogados, mais do que para a formação preliminar.
Dentro de quantos anos prevê que a classe seja mais homogénea?
Sei que não conseguirei esse objectivo no meu mandato. Mas espero viver
o suficiente para o ver realizado. Não queremos que a classe seja
elitista, mas está a transformar-se nisso. Hoje, só acedem e triunfam na
advocacia determinadas elites, com poder económico ou com ligações
familiares no meio. Eu quero que todos os que têm vocação para serem
advogados possam seguir esta via, porque a diversidade e a pluralidade
da origem social são riquezas específicas desta profissão.
Nuno Dias da Silva
Cara da notícia
Polémico, para uns. Corajoso, segundo
outros. Comparou os juízes aos antigos agentes da PIDE, garantiu que o
processo Casa Pia visou «decapitar» a liderança de Ferro Rodrigues e
asseverou que políticos, em funções ou que já as exerceram, estiveram
envolvidos em crimes que ficaram impunes. Contudo, antes de chegar a
Bastonário, ficou conhecido pelos seus inflamados comentários sobre
questões judiciais nos ecrãs da SIC.
António Marinho e Pinto nasceu em Vila Chã do Marão, concelho de
Amarante, a 10 de Setembro de 1950. Licenciado em Direito pela
Universidade de Coimbra, reside na cidade do Mondego desde os tempos de
estudante. Foi também aí que começou a exercer como advogado, corria o
ano de 1987. Foi membro do Conselho-Geral da Ordem dos Advogados e
presidente da Comissão de Direitos Humanos entre 2002 e 2003, cargo de
que foi afastado pelo Bastonário de então, José Miguel Júdice, pelas
duras crítica que dirigiu à magistratura portuguesa, em vésperas do
Congresso da Justiça promovido pela Ordem. A «guerra» aberta com Júdice
mantém-se ainda hoje, alimentada por uma troca azeda de acusações entre
ambos nos órgãos de comunicação social.
Foi também jornalista e professor do ensino secundário e do ensino
superior nas áreas de Direito e Deontologia nas universidades de Aveiro
e Coimbra, onde foi professor auxiliar convidado. Depois de ter sido
derrotado por Rogério Alves em 2004, a 30 de Novembro de 2007, foi
eleito o 24.º bastonário da Ordem dos Advogados, uma das mais antigas e
prestigiadas instituições portuguesas, com a votação mais expressiva de
sempre em actos eleitorais.
RAÚL PEREZ EM ENTREVISTA
O Pintor de sonhos
Raúl Perez recusa rótulos, escapa à
definição de surrealista ou qualquer outra definição, e defende que a
arte não se ensina nas escolas. A pintura e o desenho são a forma mais
profunda de estar e as suas telas falam a linguagem dos sonhos. Vê a
submissão da arte ao comércio como algo medonho, só vende por uma
questão de sobrevivência e não abdica de alguns dos seus trabalhos.
O Museu Berardo mostra as obras de Raúl Perez numa grande exposição.
Cerca de 90 obras realizadas entre
1970 e 1990 são o núcleo da exposição de desenho e pintura patente no
Museu Berardo até ao mês de Abril. O que significa esta exposição para
si?
É a minha vida.
Esta exposição é mais importante do
que as outras em que tem participado?
Sim, foi tudo escolhido por mim. Eu é que decidi o que é que ia pôr, e o
que não ia pôr na exposição, e as outras são um bocadinho fruto de
várias circunstâncias. Primeiro as galerias não aceitam colocar quadros
nas paredes que não sejam para vender, e há coisas que eu não quero
vender, e isso já é uma limitação.
Movimento surrealista tardio, arte
mágica, pintura metafísica. Os críticos usam essas expressões quando se
referem à sua obra, contudo recusa definições e já afirmou: “O espírito
não cabe dentro de um rótulo, e quando cabe é mau sinal”. Que linguagem
falam as suas telas?
A linguagem dos sonhos. Tudo o que é feito de um modo inconsciente tem a
linguagem dos sonhos e portanto é sonho.
Abdicou de um elemento
característico da pintura, a cor. O preto e branco veio para ficar, ou
podemos falar de uma fase mais duradoura?
Não, foi uma fase. Eu pintava muito coloridos até finais dos anos
sessenta e de repente comecei a pintar a preto e branco, não sei
explicar porquê, e com uma técnica também muito diferente da técnica
usada habitualmente, que é pintar com pincel de uma forma tradicional.
Comecei a pintar a preto e branco com esta técnica estranhíssima, mas
que é uma coisa que me dá muito prazer, é um exercício de paciência.
Gosto imenso de gastar tempo, às vezes meses, a fazer estes caracolinhos
na superfície da tela, a encher espaços com esta espécie de renda que
faço de uma forma automática. Já tenho dito imensas vezes que comparo
àquelas mulheres que vão no autocarro a fazer tricot e estão a tomar
atenção a tudo menos ao tricot, a falar de tudo e mais alguma coisa e
não propriamente com atenção ao que estão a fazer. Este meu trabalho de
preencher a superfície das telas com esta espécie de brocado é uma coisa
semelhante a isso; não é uma coisa pensada, racional.
O desenho entrou cedo na sua vida e
é o elemento que entra primeiro nas suas telas?
O meu trabalho é todo baseado no desenho. Pego numa tela e num lápis e
faço um esboço na tela não faço estudos. A seguir preencho a tela desse
modo que estive a explicar. Não é uma coisa nada deliberada, é
perfeitamente instintiva.
Disse que também escrevia. O que é
que escreve?
Nos momentos em que estou a pintar, nesse trabalho de preencher a tela
com essas texturas, tenho ao lado um bloco. Estou embrenhado a fazer
esse trabalho, e surgem-me ideais interessantes, pensamentos sobre
várias coisas. Tenho imensas caixinhas cheias de papelinhos com essas
coisas que vou escrevendo.
Expôs em vários países da Europa
como Espanha, Holanda, Bruxelas, Alemanha. Qual tem sido a receptividade
do público estrangeiro com o seu trabalho?
Não sei, mas presumo que foi razoável. Mandava os meus trabalhos para
essas exposições, e não ia lá, portanto não sei qual era a
receptividade.
Mas houve algumas exposições onde estive, por exemplo na Holanda. Fui
convidado pelo meu amigo Laurens Van Krevel, e na altura não tinha
quadros suficientes. Então pensei, vou falar com o Cruzeiro Seixas e
juntamente com ele vou fazer uma exposição na Holanda. E assim
aconteceu, falei com o Cruzeiro e ele aceitou. O nosso amigo Holandês
juntou-nos ao Rik Lina e ao Philip West. O Rik Lina felizmente ainda é
vivo, mas o Philip West morreu, - era um pintor inglês que vivia na
Espanha - e fizemos os quatro uma exposição em Amsterdão. A outras
exposições também fui, mas à maioria não me deslocava.
Algumas das suas obras fazem parte
do seu espólio pessoal, não as consegue vender. Porque é que escolhe
umas e deixa partir outras?
Algumas não sei porquê, considero uma espécie de marcos e vou guardando.
Os pintores precisam de viver e as galerias têm uma função importante na
divulgação da arte, mas acho o comércio abominável e não gosto de pautar
a minha actividade por ele. Não preciso de enriquecer com os quadros,
vendo de vez em quando um quadro para sobreviver, mas acho essa
submissão de quem pinta ao comércio de arte, feiras, uma coisa medonha.
Como vê o actual panorama artístico
português?
Salvo raras excepções muito mau. Há um conto do Andersen, O Fato Novo do
Imperador, O Rei vai Nu, que ilustra muito bem o que se está a passar
actualmente, não só em Portugal, mas em todo o mundo. As pessoas têm
medo de dizerem o que pensam, com medo de passarem por estúpidas e
resumem-se ao seu silêncio. Não têm espírito crítico sobre aquilo que
vêem.
Há uma data de equívocos instalados e a sociedade vive sobre esses
equívocos, viver assim é muito mau, as coisas não têm consistência, não
são sólidas e o público assiste a tudo impassível e caladinho, porquê
não se deve falar para não criar atritos. É tudo muito pacífico. Isto é
uma coisa perfeitamente idiota com a qual não estou nada de acordo.
As asas são um elemento recorrente
nas suas telas. Qual o significado dessas asas?
Um tentativa de sonho, talvez. As asas às vezes estão corroídas, mas
foram uma tentativa de voar.
Como é que fala dos seus quadros?
Essas coisas falam outra linguagem e não podem ser abordadas com essa
que nós usamos no dia-a-dia. Quando tentamos fazê-lo, estamos a
diminuí-las, a torná-las abjectas. Quando uma pessoa fica esmagada por
um quadro, por uma árvore, ou uma coisa qualquer, quer dizer que
entendeu perfeitamente o que tem à frente dos olhos.
O meu processo de trabalho conheço-o muito bem, desde pequenino que
pinto e tenho pensado sobre este mecanismo, as coisas em si eu não gosto
de falar sobre elas, porque esta linguagem traiçoeira que nós usamos não
reflecte com verdade aquilo que os quadros são.
Quando é que percebeu que a arte era
a sua vida?
Não há uma fronteira, foi uma coisa muito lenta. Os meus pais sabiam
desenhar e pintar , desenhavam muito bem, e foram fantásticos comigo
porque davam-me os materiais e nunca me diziam «Não pintes o céu de
verde, porque o céu é azul.», como uma professora do secundário uma vez
disse ao meu filho ao vê-lo pintar o céu com uma cor muito estranha «
Olha que o céu é azul, não é dessa cor». Os meus pais nunca o fizeram,
sempre cresci com a maior das liberdades. A vida é a melhor escola para
um artista, não é a Academia de Belas-Artes. A arte não é uma ciência
exacta, não é algo que se possa ensinar. Ensinam-se os apêndices, como a
história da arte, mas a arte em si, não se ensina.
A arte é uma aprendizagem
individual?
Sim, não há uma escola que forme poetas pois não? É um disparate. Há
quem defenda que se pode fabricar poetas. Conheço algumas pessoas que
tem essa teoria, mas eu acho esquisito. Pode fazer-se um engenheiro, mas
não se pode fazer um pintor ou um músico.
A música devia ser ministrada às criancinhas desde a pré-primária e ao
longo da vida. Aquilo que é ensinável na música, saber ler uma pauta,
tocar um instrumento, história da música, podia ser dado até ao fim do
secundário, pois é cultura, faz parte do conhecimento como saber outra
coisa qualquer, por exemplo história, química, ou física. Desde cedo as
crianças deviam ir interiorizando essas coisas todas, para não chegarem
ao secundário e decidirem ir para o Conservatório, ou para as
belas-artes, quando já estão no telhado. É preciso os alicerces, as
paredes. É uma falha enorme do Ensino.
Passados todos estes anos dedicado à
pintura, consegue imaginar-se a fazer outra coisa com a mesma paixão?
Não. Eu nunca estive empregado, nunca trabalhei em nada, e não sou capaz
de fazer mais nada. As pessoas são para aquilo que nascem e eu nasci
para isto. As coisas em mim não são programadas, as coisas são e mais
nada.
À entrada da exposição existe um
texto de Raúl Perez, A Arte é um Prolongamento do Sonho que diz: «Desde
cedo me apercebi que tudo o que eu desenhava às ocultas da “consciência”
continha uma linguagem e uma filosofia próprias, semelhante às dos
sonhos; era como se os sonhos me saíssem pelas mãos... um processo que
se assemelhava a algo de mediúnico, e no qual eu representava um simples
instrumento».
Eugénia Sousa
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