Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XII    Nº133    Março 2009

Entrevista

ANTÓNIO MARINHO E PINTO, BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS

"A massificação dos cursos de Direito
degradou a Justiça"

Eleito com a maior votação da história da Instituição, assegura que vai continuar a «incomodar» até ao final do mandato. Marinho e Pinto afirma que a maior parte dos cursos de Direito tem uma qualidade duvidosa e que o mercado não absorve os cerca de 3 mil novos licenciados que anualmente saem das faculdades. Em entrevista ao «Ensino Magazine», o Bastonário dos Advogados diz que a Justiça «é um dos piores fracassos da nossa República» e que quando o sistema judicial «funciona mal, nada funciona bem». Lamenta que «não existam corruptos presos», aponta um «défice de cidadania e cultura democrática» nacional e mostra-se estupefacto com a «política de favorecimento» que vigora no relacionamento entre o Estado e os bancos.
 

Foi eleito o 24º Bastonário da Ordem dos Advogados com a maior votação de sempre. Que balanço faz de um ano de mandato na afirmação do Estado de Direito e da dignificação da profissão?

O meu balanço é positivo. Tivemos muitas dificuldades, mas a determinação para enfrentá-las foi e é grande. Propusemo-nos reformar a Ordem e a Justiça para que esta esteja ao serviço do Estado de Direito e dos cidadãos. Nesse sentido, temos procurado implementar mudanças imperiosas que têm suscitado variadíssimas resistências. A questão do apoio judiciário, que estava longe de ser a prioridade, foi a primeira reforma, visto que herdámos uma portaria publicada cinco dias antes de tomarmos posse e que era aviltante para os cidadãos e para a advocacia. Convencemos o Governo a mudar o sistema de acesso ao Direito.
 

Que principais conquistas decorrem dessa reforma?

O apoio judiciário foi ampliado a muitos mais cidadãos, criaram-se regras mais transparentes na nomeação de advogados, evitaram-se situações susceptíveis de gerar suspeitas, e, finalmente, dignificou-se a prestação do apoio judiciário através da nomeação de advogados mais experientes em vez de advogados estagiários que não estavam, manifestamente, em condições para o exercício dessas funções. O apoio judiciário existe para garantir os direitos dos cidadãos mais carenciados, não existe para dar formação aos candidatos à advocacia na OA. Era uma perversão a que pusemos termo. A celeuma foi muita, mas o barco continua a navegar e há-de chegar a bom porto.
 

Acusam-no de ser polémico e já o compararam a Hugo Chávez e a Benito Mussolini. Responde que é, simplesmente, um homem de convicções. Tem noção que incomoda muita gente?

Claro que incomodo. Aliás, fui eleito para incomodar. O programa que elaborei foi justamente para operar a mudança. Estou imunizado face a esse tipo de argumentos que partem de pessoas que não apresentam alternativas para combater as minhas ideias. Quando não há argumentos, ataca-se as pessoas. Por vezes, as injúrias definem mais quem as produz, do que propriamente os visados.
 

A luta contra a corrupção foi uma das bandeiras no início do seu mandato. Falta coragem política para ir mais longe?

A corrupção é, porventura, o problema mais grave que afecta o Estado de Direito. E não falo só de Portugal. Denunciar e combater a corrupção é um imperativo de todos, não apenas das polícias e dos investigadores. No meu programa propus lançar uma grande campanha nacional contra a corrupção. Quando proferi as primeiras declarações, apareceram algumas pessoas, quase com ar de virgens num bordel, dizendo que eu devia apresentar nomes. Eu denuncio factos e situações que acho que estão errados, não acuso pessoas. Há órgãos do Estado próprios para fazer a investigação e reunir as provas necessárias para deduzir a acusação.
 

Mas disse que houve governantes que estiveram implicados em casos nebulosos. É uma acusação grave...

A mim compete-me discutir, enquanto cidadão, as questões que são preocupantes para o Estado de Direito. Repare: eu quando abordo o tráfico de droga não tenho de apresentar nomes de traficantes, quando abordo a exploração da prostituição não tenho de identificar proxenetas, e o mesmo se aplica rigorosamente quando se fala em corrupção e os respectivos corruptos e corruptores. Temos é que debater o tema com seriedade e não varrer o lixo para debaixo do tapete.
 

Onde entra o papel dos políticos?

O debate sobre a corrupção deve centrar-se no campo político, a partir de medidas corajosas, uma vez que em termos processuais é muito difícil reunir as provas e os elementos típicos desse ilícito.
 

Diz-nos a experiência que nunca houve um português preso por corrupção...

É um facto que não há corruptos presos no nosso país. A corrupção é um cancro do Estado de Direito e um grande entrave ao desenvolvimento de Portugal. Um alto quadro do Banco Mundial disse há uns anos que Portugal podia ter um desenvolvimento semelhante ao da Finlândia não fosse o elevado índice de corrupção. Esta constatação deve levar-nos a agir, ou seja, a denunciar. E criar condições para que quem beneficia com a corrupção não se sinta bem dentro do regime democrático.
 

É correcto falarmos em pessoas acima da lei e numa governamentalização da Justiça, que encobre casos envolvendo pessoas com responsabilidades públicas?

Não há uma governamentalização judicial. Aliás, um dos males da Justiça é precisamente o de funcionar demasiado em roda livre, de modo irresponsável e sem prestar contas a ninguém. Antes de mais, devia existir uma cultura de responsabilidade nos tribunais, a começar pelos magistrados, pelo que fazem e, sobretudo, pelo que não fazem.
 

Mas por que é que diz que a esmagadora maioria dos políticos nacionais não «sobreviveriam politicamente» no Reino Unido e nos Estados Unidos?

Os eleitores lá são muito mais exigentes. Veja as dificuldades com que se tem confrontado o presidente Obama para formar a sua administração, devido às incompatibilidades que têm surgido em alguns dos nomes que ele escolheu. Cá temos a peculiaridade de pessoas que são julgadas por crimes cometidos no exercício de funções públicas, acabam condenadas e posteriormente são eleitas.
 

Como explica a popularidade dessas pessoas?

Há sectores da população portuguesa que acumulam um grande défice de cidadania e de cultura democrática o que leva a que se escolham personalidades desprovidas de idoneidade moral e cívica para desempenhar funções políticas.
 

A maior visibilidade da Justiça nos últimos anos, trouxe-lhe pior imagem e mais descrédito. É atirando dinheiro sobre os problemas, aliás uma técnica muito portuguesa, que vamos inverter esse cenário?

Temos gasto milhões e milhões de euros, sem qualquer sentido. Os tribunais são um sorvedouro infinito de recursos públicos. Era preciso racionalizar essas verbas que saem do erário público para estes órgãos de soberania. A cultura de responsabilidade e os critérios rigorosos nos gastos devia prevalecer. Dou-lhe este dado, para que se perceba a forma arrepiante como se esbanja dinheiro na Justiça em Portugal: segundo um relatório do Conselho da Europa de 2004, cada cidadão no Reino Unido pagava 55 euros para a Justiça, 38 dos quais eram destinados ao apoio judiciário e 17 ao funcionamento da máquina judicial; em Portugal, cada cidadão pagava 50 euros, 47 dos quais iam para a engrenagem judicial e os restantes três eram canalizados para o apoio judiciário.
 

Disse que Portugal «é um país que funciona muito na base da mentira, e o nosso sistema judicial também». Este sistema é o espelho social?

Não é apenas na Justiça. Acontece em muitas outras instâncias da vida nacional. Lamenta-se é que os problemas se acumulem na instância que tinha por função resolver os desvios em outros domínios da vida pública. Por isso, num país onde a Justiça funciona mal, nada funciona bem.
 

O caso Casa Pia, o expoente máximo do mediatismo judicial, demonstrou que se legisla, sofregamente, ao sabor de uma dificuldade?

Não creio que tenha havido muita pressa em legislar. O que o caso Casa Pia mostrou foi os podres da Justiça, nomeadamente que esta funcionava segundo critérios medievais e próprios da Inquisição. As pessoas eram presas sem poder rebater os factos, estavam detidas preventivamente sem motivo, os interrogatórios eram demasiado longos, etc. Este processo demonstrou que não se podem fazer mudanças no escuro ou ao sabor de interesses corporativos que estão instalados no sistema judicial.
 

A opinião pública interroga-se sobre a duração excessiva deste caso. Para quando prevê uma decisão?

A sentença será proferida ainda este ano e objecto de vários recursos para diversos tribunais. O veredicto final vai demorar muitos anos, não lhe sei dizer quantos, com rigor.
 

Foi jornalista vários anos, nomeadamente no «Expresso». Estando os dois tempos, o mediático e o judicial desfasados, como é que se atinge o ponto de equilíbrio, estancando alguns excessos que têm sido cometidos de parte a parte?

Cada um deve respeitar os valores éticos da respectiva profissão. O jornalista deve obedecer à sua deontologia e os tribunais devem respeitar a lei e os direitos fundamentais dos sujeitos processuais. O que temos assistido é a evidência de uma promiscuidade entre os maus investigadores judiciais e os maus jornalistas. É, nesse âmbito, que os jornalistas parasitam as investigações, em vez de desenvolverem a investigação autónoma que lhes competia. Limitam-se a transformar em manchetes ou em factos a opinião de investigadores frustrados por não conseguirem os resultados que gostariam de apresentar à opinião pública...
 

Refere-se o caso Freeport, em que denunciou a «simbiose» entre a investigação e o jornalismo sensacionalista?

Precisamente. Até à data não foi apresentado nenhum facto jornalístico que possa consubstanciar um indício processual da prática de um crime. Tudo foi inventado a partir da própria polícia, sem nenhum facto. Isto durante 4 anos. É uma vergonha para a investigação criminal em Portugal o que se está a passar com o caso Freeport. Isto gera uma situação de alarme social desnecessário, criando uma nuvem de suspeição que, na prática, não existe.
 

Quando afirma que «há medo instalado nas pessoas e falta de coragem para exercer a liberdade de expressão», está a traçar o perfil de uma sociedade amordaçada em pleno regime democrático?

A liberdade é um bem pelo qual se tem de lutar em permanência. Infelizmente, por comodismo ou por medo, há muita gente que abdica de combater por esse valor. A liberdade de expressão assume três dimensões: a de criticar ou denunciar, a de estar calado e a de elogiar. Num Estado de Direito é, sobretudo, a liberdade de criticar que é fundamental, no sentido da denúncia de factos que estão errados. Porque a liberdade para elogiar ou para estar calado existe em qualquer ditadura. O Dr. Salazar convivia muito bem com a liberdade de expressão quando ela se manifestava através do silêncio ou dos elogios. Mas não é essa a liberdade num Estado de Direito digno desse nome. O problema é que há muitas pessoas que não aceitam a crítica e reagem com ameaças, insultos e perseguições, fazendo com que os outros tenham medo de ser livres. Há sectores da sociedade que têm medo de assumir a sua condição de cidadãos em plenitude.
 

A troca de argumentos entre a Ordem e o Sindicato dos Juízes aumentou de tom. Porque é que magistrados e advogados estão de costas voltadas?

Os sindicatos tratam o Estado como patrão e estão em conflito permanente com o patrão. Como todas as associações sindicais, desejam mais dinheiro e menos trabalho para os seus associados. O Sindicato dos Juízes gosta muito de quem os elogia ou quem fica calado perante o que se passa nos tribunais. Como eu denuncio o que acontece nos tribunais, eles desferem-me ataques pessoais e cortam relações institucionais. Suporto isso muito bem, porque essas atitudes têm origem em pessoas sem argumentos para rebater as minhas críticas.
 

O que se passa de tão grave nos tribunais para merecer a sua indignação?

Situações completamente aberrantes de violação da lei por parte de magistrados, sobretudo de juízes, de agressão aos direitos fundamentais da pessoa humana. Aliás, os tribunais portugueses são um dos locais onde mais se violam os direitos fundamentais, quando devia ser o oposto. Os direitos humanos nunca terão boa saúde se são agredidos num órgão de soberania como são os tribunais. Os magistrados colocam na primeira linha os seus privilégios e as suas comodidades, em detrimento dos direitos e necessidades dos cidadãos. Há muito tempo que denuncio isto e continuarei a fazê-lo.
 

Os magistrados não convivem bem com a crítica?

Os nossos magistrados estão habituados apenas a elogios ou ao silêncio reverencial. Comigo não. Devo dizer que muitas das piores mentiras que existem na Justiça são feitas de silêncios. Muitas vezes, estar calado é mentir. Eu, enquanto Bastonário, ambiciono mais respeito pelos direitos dos cidadãos, Justiça mais barata, mais rápida e mais próxima dos seus destinatários, mais desformalizada e compreensível para todos. Pelo contrário, a Justiça tem sido orientada em função de interesses e prerrogativas dos senhores magistrados.
 

A opinião pública insurge-se contra os dois pesos e duas medidas do sistema. Os poderosos envolvidos em esquemas obscuros estão à solta, enquanto uma senhora que roubou um creme numa loja foi condenada em tribunal. Os juízes também têm «culpas no cartório» face a esta dualidade de critérios?

O cenário de uma Justiça para pobres e outra para ricos, não deve ser apenas imputável aos juízes. Os magistrados têm a sua quota parte de responsabilidade, mas as principais causas são do próprio sistema que não garante a possibilidade de as pessoas poderem contratar advogados para os defenderem. Cerca de 90 por cento dos detidos em cadeias portuguesas são pobres e não tiveram dinheiro para contratar um advogado, restando-lhe um advogado oficioso, em muitos casos com falta de experiência. Daqui surge a recorrente sensação de que a Justiça não é igual para todos: temos uma Justiça impiedosa e inclemente para sectores mais desfavorecidos e uma outra Justiça dócil e obsequiosa para os ricos e poderosos. Este é, seguramente, um dos piores fracassos da nossa República.
 

Nos casos BPP e BPN, o Estado saiu em defesa da banca em dificuldades, mesmo existindo indícios de gestão danosa e crime. Como explica este tratamento privilegiado?

Vigora uma cultura política de favorecimento aos bancos. A actividade bancária tem um privilégio especial na nossa sociedade. Parece que em Portugal nenhum banco pode ir à falência, o que é uma discriminação relativamente a outros domínios da economia. Por exemplo, há empresas com milhares de trabalhadores que fecham e o Estado mantém-se impávido, mas se um banco tiver em dificuldades, é imediatamente nacionalizado. Veja que do BPN desapareceram quase 2 mil milhões de euros (400 milhões de contos) e continuamos num processo de investigação para saber para onde foi o dinheiro. Parece que se encontrou um «bode expiatório», mas nada mais do que isso. É preciso apurar, até ao fim, responsabilidades dos dirigentes do banco, sabendo-se que alguns deles tinham um pé na actividade económico-financeira e outro no meio político.
 

A relação próxima entre bancos e o poder político pode ter ligação com o financiamento partidário?

Não faço esse tipo de processo de intenção. Afirmo que a relação entre bancos e Estado é potencialmente explosiva e perigosa, o que deve merecer um permanente escrutínio público e político.
 

É defensor da abolição do segredo bancário?

O endeusamento do segredo bancário deve ceder, imediatamente, perante a evidência de crimes. Não é possível recorrer a ele para ocultar a prática de infracções de natureza criminal. Da mesma forma que seria bom que os off-shores acabassem rapidamente.
 

A Escola, tal como a Justiça, não vive um período fácil. Aponta semelhanças entre os dois sistemas?

Tal como a Justiça deve estar voltada para o cidadão, a política educativa deve ser direccionada para os alunos. Porque são estes que dão sentido à Escola. Neste domínio, tal como noutros sectores, os sistemas estão organizados em beneficio das comodidades e interesses de quem lá trabalha, sejam funcionários ou professores, em vez de beneficiar os que lá se dirigem, os alunos. Quando era professor do ensino superior, via que algumas vezes os alunos tinham uma aula às 10 da manhã e outra às 6 da tarde, por mera comodidade dos docentes. Isto é uma crítica transversal aos vários sectores da administração pública.
 

Falta, de uma forma geral, exigência na Escola?

Daquilo que conheço melhor, ou seja, as universidades e o ensino do Direito, penso que sim. Estou em crer que ninguém vai querer estar numa escola que reprove muito e vão antes procurar aquela que chumbe o menos possível. Por isso, os padrões de rigor e exigência estão actualmente muito flácidos no sistema de ensino. É sabido que elevar o nível de exigência e de rigor não traz votos aos políticos e aos próprios sindicatos.
 

A advocacia passou a ser uma actividade massificada (de 5 mil advogados nos anos 80, passámos para mais de 26 mil no exercício efectivo da actividade). Defende menos advogados na profissão e também menos cursos?

É preciso combater a massificação na advocacia, através de uma lógica assente em menos advogados e melhores advogados.
 

Como se alcança esse desiderato?

Obviamente que não vamos expulsar os que já estão no mercado, tem é que se ser criterioso na admissão. É incomportável aceitar 3 mil novos advogados por ano na sequência da massificação do ensino universitário do Direito. Foi um bom e chorudo negócio para muita gente, mas contribuiu para degradar a Justiça. Espera-se que a Agência de Acreditação e Validação dos Cursos do Ensino Superior comece a encerrar grande parte dos cursos de Direito existentes no nosso país, por não terem a qualidade mínima exigida para licenciar estudantes.
 

Quantos advogados é que Portugal precisa?

Seguramente menos de metade do que os que tem. Entre 10 a 12 mil advogados eram suficientes para responder adequadamente às necessidades sociais do patrocínio forense e às respectivas exigências constitucionais.
 

Há mercado para «encaixar» os 26 mil advogados actualmente a exercer?

De maneira nenhuma. O mercado não absorve tantos profissionais. Passa-se uma situação semelhante com os licenciados em Comunicação Social. Era bom que não houvesse tantos cursos a funcionar, porque estão a enganar os jovens, prometendo-lhes saídas profissionais que não existem. Muitos deles só conseguem empregos em sectores que não têm nada a ver com o curso que estão a tirar. Muitos tentam inscrever-se na Ordem e andam anos a lutar pela sobrevivência profissional que, infelizmente, só uma minoria vai conseguir. A mensagem que deve ser passada é a seguinte: depois de 4 ou 5 anos de curso, vão ter mais 2 ou 3 anos de estágio e, só depois, com sorte, mais 4 ou 5 anos para sobreviver profissionalmente, porque não existe procura para tanta oferta.
 

No que diz respeito à formação dos advogados também introduziu mudanças substanciais. Em que consiste a mudança de paradigma?

2009 vai ser o ano dedicado à formação na OA As reformas em curso visam acabar com práticas erradas. Os estagiários pagam 1 milhão e 800 mil euros por ano à Ordem, mas a entidade reguladora da profissão não pode estar a cobrar quantias tão elevadas quando muitos deles nem vão seguir esta carreira. É injusto. Outro aspecto que queremos mudar, rompendo com paradigmas instalados de há duas décadas é o seguinte: a formação deve assentar no patrono tradicional - a OA não tem que ensinar Direito aos candidatos a advocacia, mas ministrar formação em deontologia e na área da prática forense. O Direito teórico é aprendido nas universidades. A Ordem deve orientar os seus esforços para a formação contínua dos advogados, mais do que para a formação preliminar.


Dentro de quantos anos prevê que a classe seja mais homogénea?

Sei que não conseguirei esse objectivo no meu mandato. Mas espero viver o suficiente para o ver realizado. Não queremos que a classe seja elitista, mas está a transformar-se nisso. Hoje, só acedem e triunfam na advocacia determinadas elites, com poder económico ou com ligações familiares no meio. Eu quero que todos os que têm vocação para serem advogados possam seguir esta via, porque a diversidade e a pluralidade da origem social são riquezas específicas desta profissão.

Nuno Dias da Silva

 

 

 

Cara da notícia

Polémico, para uns. Corajoso, segundo outros. Comparou os juízes aos antigos agentes da PIDE, garantiu que o processo Casa Pia visou «decapitar» a liderança de Ferro Rodrigues e asseverou que políticos, em funções ou que já as exerceram, estiveram envolvidos em crimes que ficaram impunes. Contudo, antes de chegar a Bastonário, ficou conhecido pelos seus inflamados comentários sobre questões judiciais nos ecrãs da SIC.

António Marinho e Pinto nasceu em Vila Chã do Marão, concelho de Amarante, a 10 de Setembro de 1950. Licenciado em Direito pela Universidade de Coimbra, reside na cidade do Mondego desde os tempos de estudante. Foi também aí que começou a exercer como advogado, corria o ano de 1987. Foi membro do Conselho-Geral da Ordem dos Advogados e presidente da Comissão de Direitos Humanos entre 2002 e 2003, cargo de que foi afastado pelo Bastonário de então, José Miguel Júdice, pelas duras crítica que dirigiu à magistratura portuguesa, em vésperas do Congresso da Justiça promovido pela Ordem. A «guerra» aberta com Júdice mantém-se ainda hoje, alimentada por uma troca azeda de acusações entre ambos nos órgãos de comunicação social.

Foi também jornalista e professor do ensino secundário e do ensino superior nas áreas de Direito e Deontologia nas universidades de Aveiro e Coimbra, onde foi professor auxiliar convidado. Depois de ter sido derrotado por Rogério Alves em 2004, a 30 de Novembro de 2007, foi eleito o 24.º bastonário da Ordem dos Advogados, uma das mais antigas e prestigiadas instituições portuguesas, com a votação mais expressiva de sempre em actos eleitorais.

 

 

 

RAÚL PEREZ EM ENTREVISTA

O Pintor de sonhos

Raúl Perez recusa rótulos, escapa à definição de surrealista ou qualquer outra definição, e defende que a arte não se ensina nas escolas. A pintura e o desenho são a forma mais profunda de estar e as suas telas falam a linguagem dos sonhos. Vê a submissão da arte ao comércio como algo medonho, só vende por uma questão de sobrevivência e não abdica de alguns dos seus trabalhos.

O Museu Berardo mostra as obras de Raúl Perez numa grande exposição.
 

Cerca de 90 obras realizadas entre 1970 e 1990 são o núcleo da exposição de desenho e pintura patente no Museu Berardo até ao mês de Abril. O que significa esta exposição para si?

É a minha vida.
 

Esta exposição é mais importante do que as outras em que tem participado?

Sim, foi tudo escolhido por mim. Eu é que decidi o que é que ia pôr, e o que não ia pôr na exposição, e as outras são um bocadinho fruto de várias circunstâncias. Primeiro as galerias não aceitam colocar quadros nas paredes que não sejam para vender, e há coisas que eu não quero vender, e isso já é uma limitação.
 

Movimento surrealista tardio, arte mágica, pintura metafísica. Os críticos usam essas expressões quando se referem à sua obra, contudo recusa definições e já afirmou: “O espírito não cabe dentro de um rótulo, e quando cabe é mau sinal”. Que linguagem falam as suas telas?

A linguagem dos sonhos. Tudo o que é feito de um modo inconsciente tem a linguagem dos sonhos e portanto é sonho.
 

Abdicou de um elemento característico da pintura, a cor. O preto e branco veio para ficar, ou podemos falar de uma fase mais duradoura?

Não, foi uma fase. Eu pintava muito coloridos até finais dos anos sessenta e de repente comecei a pintar a preto e branco, não sei explicar porquê, e com uma técnica também muito diferente da técnica usada habitualmente, que é pintar com pincel de uma forma tradicional. Comecei a pintar a preto e branco com esta técnica estranhíssima, mas que é uma coisa que me dá muito prazer, é um exercício de paciência. Gosto imenso de gastar tempo, às vezes meses, a fazer estes caracolinhos na superfície da tela, a encher espaços com esta espécie de renda que faço de uma forma automática. Já tenho dito imensas vezes que comparo àquelas mulheres que vão no autocarro a fazer tricot e estão a tomar atenção a tudo menos ao tricot, a falar de tudo e mais alguma coisa e não propriamente com atenção ao que estão a fazer. Este meu trabalho de preencher a superfície das telas com esta espécie de brocado é uma coisa semelhante a isso; não é uma coisa pensada, racional.
 

O desenho entrou cedo na sua vida e é o elemento que entra primeiro nas suas telas?

O meu trabalho é todo baseado no desenho. Pego numa tela e num lápis e faço um esboço na tela não faço estudos. A seguir preencho a tela desse modo que estive a explicar. Não é uma coisa nada deliberada, é perfeitamente instintiva.
 

Disse que também escrevia. O que é que escreve?

Nos momentos em que estou a pintar, nesse trabalho de preencher a tela com essas texturas, tenho ao lado um bloco. Estou embrenhado a fazer esse trabalho, e surgem-me ideais interessantes, pensamentos sobre várias coisas. Tenho imensas caixinhas cheias de papelinhos com essas coisas que vou escrevendo.
 

Expôs em vários países da Europa como Espanha, Holanda, Bruxelas, Alemanha. Qual tem sido a receptividade do público estrangeiro com o seu trabalho?

Não sei, mas presumo que foi razoável. Mandava os meus trabalhos para essas exposições, e não ia lá, portanto não sei qual era a receptividade.

Mas houve algumas exposições onde estive, por exemplo na Holanda. Fui convidado pelo meu amigo Laurens Van Krevel, e na altura não tinha quadros suficientes. Então pensei, vou falar com o Cruzeiro Seixas e juntamente com ele vou fazer uma exposição na Holanda. E assim aconteceu, falei com o Cruzeiro e ele aceitou. O nosso amigo Holandês juntou-nos ao Rik Lina e ao Philip West. O Rik Lina felizmente ainda é vivo, mas o Philip West morreu, - era um pintor inglês que vivia na Espanha - e fizemos os quatro uma exposição em Amsterdão. A outras exposições também fui, mas à maioria não me deslocava.
 

Algumas das suas obras fazem parte do seu espólio pessoal, não as consegue vender. Porque é que escolhe umas e deixa partir outras?

Algumas não sei porquê, considero uma espécie de marcos e vou guardando. Os pintores precisam de viver e as galerias têm uma função importante na divulgação da arte, mas acho o comércio abominável e não gosto de pautar a minha actividade por ele. Não preciso de enriquecer com os quadros, vendo de vez em quando um quadro para sobreviver, mas acho essa submissão de quem pinta ao comércio de arte, feiras, uma coisa medonha.
 

Como vê o actual panorama artístico português?

Salvo raras excepções muito mau. Há um conto do Andersen, O Fato Novo do Imperador, O Rei vai Nu, que ilustra muito bem o que se está a passar actualmente, não só em Portugal, mas em todo o mundo. As pessoas têm medo de dizerem o que pensam, com medo de passarem por estúpidas e resumem-se ao seu silêncio. Não têm espírito crítico sobre aquilo que vêem.

Há uma data de equívocos instalados e a sociedade vive sobre esses equívocos, viver assim é muito mau, as coisas não têm consistência, não são sólidas e o público assiste a tudo impassível e caladinho, porquê não se deve falar para não criar atritos. É tudo muito pacífico. Isto é uma coisa perfeitamente idiota com a qual não estou nada de acordo.
 

As asas são um elemento recorrente nas suas telas. Qual o significado dessas asas?

Um tentativa de sonho, talvez. As asas às vezes estão corroídas, mas foram uma tentativa de voar.
 

Como é que fala dos seus quadros?

Essas coisas falam outra linguagem e não podem ser abordadas com essa que nós usamos no dia-a-dia. Quando tentamos fazê-lo, estamos a diminuí-las, a torná-las abjectas. Quando uma pessoa fica esmagada por um quadro, por uma árvore, ou uma coisa qualquer, quer dizer que entendeu perfeitamente o que tem à frente dos olhos.
O meu processo de trabalho conheço-o muito bem, desde pequenino que pinto e tenho pensado sobre este mecanismo, as coisas em si eu não gosto de falar sobre elas, porque esta linguagem traiçoeira que nós usamos não reflecte com verdade aquilo que os quadros são.
 

Quando é que percebeu que a arte era a sua vida?

Não há uma fronteira, foi uma coisa muito lenta. Os meus pais sabiam desenhar e pintar , desenhavam muito bem, e foram fantásticos comigo porque davam-me os materiais e nunca me diziam «Não pintes o céu de verde, porque o céu é azul.», como uma professora do secundário uma vez disse ao meu filho ao vê-lo pintar o céu com uma cor muito estranha « Olha que o céu é azul, não é dessa cor». Os meus pais nunca o fizeram, sempre cresci com a maior das liberdades. A vida é a melhor escola para um artista, não é a Academia de Belas-Artes. A arte não é uma ciência exacta, não é algo que se possa ensinar. Ensinam-se os apêndices, como a história da arte, mas a arte em si, não se ensina.
 

A arte é uma aprendizagem individual?

Sim, não há uma escola que forme poetas pois não? É um disparate. Há quem defenda que se pode fabricar poetas. Conheço algumas pessoas que tem essa teoria, mas eu acho esquisito. Pode fazer-se um engenheiro, mas não se pode fazer um pintor ou um músico.

A música devia ser ministrada às criancinhas desde a pré-primária e ao longo da vida. Aquilo que é ensinável na música, saber ler uma pauta, tocar um instrumento, história da música, podia ser dado até ao fim do secundário, pois é cultura, faz parte do conhecimento como saber outra coisa qualquer, por exemplo história, química, ou física. Desde cedo as crianças deviam ir interiorizando essas coisas todas, para não chegarem ao secundário e decidirem ir para o Conservatório, ou para as belas-artes, quando já estão no telhado. É preciso os alicerces, as paredes. É uma falha enorme do Ensino.
 

Passados todos estes anos dedicado à pintura, consegue imaginar-se a fazer outra coisa com a mesma paixão?

Não. Eu nunca estive empregado, nunca trabalhei em nada, e não sou capaz de fazer mais nada. As pessoas são para aquilo que nascem e eu nasci para isto. As coisas em mim não são programadas, as coisas são e mais nada.

 

À entrada da exposição existe um texto de Raúl Perez, A Arte é um Prolongamento do Sonho que diz: «Desde cedo me apercebi que tudo o que eu desenhava às ocultas da “consciência” continha uma linguagem e uma filosofia próprias, semelhante às dos sonhos; era como se os sonhos me saíssem pelas mãos... um processo que se assemelhava a algo de mediúnico, e no qual eu representava um simples instrumento».

Eugénia Sousa


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