
O poder curativo dos
professores
Ser professor acarreta uma profunda carga
de utopia e de imaginário. Com o lento passar do tempo e da memória
colectiva, gerações após gerações ajudaram a elaborar a imagem social de
uma profissão de dádiva absoluta e incontestável entrega.
O poder simbólico da actividade docente leva a que os professores sintam
sobre os seus ombros a tarefa herculeana de mudar, para melhor, o mundo;
de traçar os novos caminhos do futuro e de preparar todos e cada um para
que aí, nesse desconhecido vindouro, venham a ser cidadãos de corpo
inteiro e, simultaneamente, mulheres e homens felizes. É obra!
Ao mesmo tempo que a humanidade construiu uma sociedade altamente
dependente de tecnologias dominadoras, transferiu da religião para a
escola a ingénua crença de que o professor, por si só, pode
miraculosamente desenvolver os eleitos, incluir os excluídos, saciar os
insatisfeitos, motivar os desalentados e devolvê-los à sociedade, sãos e
salvos, com certificação de qualidade e garantia perpétua de
actualização permanente.
O emergir da sociedade do conhecimento acentuou muitas assimetrias
sociais. Cada vez é maior o fosso entre os que tudo têm e os que lutam
para ter algum; entre os que participam e os que são marginalizados e
impedidos de cooperar; entre os que protagonizam e os que se limitam a
aplaudir; entre os literatos dos múltiplos códigos e os que nem têm
acesso à informação.
E é este mundo de desigualdades que exige à escola e ao professor a
tarefa alquimista de homogeneizar as diferenças.
Os professores podem e estão habituados a fazer muito e bem. Têm sido os
líderes das forças de sinergia que mantêm os sistemas sociais e
económicos em equilíbrio dinâmico. São eles que, no silêncio de cada
dia, e sem invocar méritos desnecessários, evitam que muitas famílias se
disfuncionalizem, que as sociedades se desagreguem, que os estados se
desestruturem, que as religiões se corroam.
Mas não podem fazer tudo. Melhor diríamos: é injusto que se lhes peça
que façam mais.
Particularmente quando quem o solicita sabe, melhor que ninguém, que se
falseia quando se tenta culpabilizar a escola e os professores pelos
mais variados incumprimentos imputáveis ao sistemático demissionismo e
laxismo das famílias, da sociedade e do próprio Estado tutelar.
É bom que se repita: os professores, por mais que se deseje,
infelizmente não têm esse poder curativo. Dizemos infelizmente porque,
se por milagre o tivessem, nunca tamanho domínio estaria em tão boas e
competentes mãos.
E é precisamente porque nunca foram tocados por qualquer força divina
que os professores, como qualquer outro profissional, também estão
sujeitos à erosão das suas competências; que, como qualquer técnico
altamente qualificado, eles também necessitam de actualização
permanente. E é por isso mesmo que os docentes reclamam uma avaliação
justa do seu desempenho. Uma avaliação em que se revejam, que os
estimule a empreender e que os ajude no seu crescimento profissional.
Todas as escolas preparam impreparados. Até as que formam professores.
Sempre foi assim e, daí, nunca veio mal ao mundo. É a sequência e a
consequência da evolução dialéctica das sociedades e das mentalidades.
Por isso, centrar a discussão na impreparação profissional dos docentes,
como se tal fosse estigma exclusivo desta classe e justificasse as
perversas iniciativas que lançam a suspeita pública sobre a
responsabilidade ética dos educadores no insucesso do sistema educativo
e no desaire das políticas educativas que não têm vindo a sancionar,
isso dizíamos, traduz uma inqualificável atitude de desprezo pela
verdade e pela busca de soluções credíveis e partilhadas.
Admitir que a educação pode resolver todos os problemas e contradições
da sociedade, resulta em transformá-la em vítima evidente do seu próprio
progresso.
Repetimos: os professores não têm esse poder curativo. Os docentes não
podem solucionar a totalidade dos problemas com que se confrontam as
sociedades contemporâneas, sobretudo se não tiverem os contributos
substanciais dos outros agentes educativos e das forças significativas
da sociedade que envolvem a comunidade escolar.
Evidentemente que a escola e os professores podem e devem contribuir
para o progresso da humanidade e para o seu desenvolvimento político,
económico, social e cultural. Porém, tal não é atingível apenas com
meros instrumentos educacionais porque eles, por si só, não são capazes
de estilhaçar o mundo de crescentes desigualdades e uma cúpula política
sob a qual coexistem a injustiça, o desemprego e a exclusão social.
Os professores não têm esse poder curativo e, por favor, não os obriguem
a ser mais do que são, ou nunca serão o que o futuro lhes exige que
venham a ser.

João Ruivo
ruivo@rvj.pt
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