Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XII    Nº137    Julho 2009

Entrevista

PEPETELA EM ENTREVISTA

Pepe(tell) me another story

Pepetela tem um novo romance que chegou a Portugal em Abril. O Planalto e a Estepe é baseado em pessoas e factos reais, e conta a história de um amor impossível entre uma jovem mongol e um estudante angolano. Em entrevista concedida por email, o Prémio Camões de 1997 fala de O Planalto e a Estepe e da contribuição da literatura africana para um género ameaçado como o romance. Sobre o Ensino Superior em Angola defende que os grandes desafios são ganhar qualidade e credibilidade e fazer a ligação com a pesquisa que quase não existe.
 

«Uma viagem no tempo e no espaço, de uma geração cansada de guerra num mundo cada vez mais pequeno» Pepetela falou assim de O Planalto e a Estepe na apresentação do livro em Portugal. Baseada em factos verídicos, a ideia de escrever esta história surgiu em que circunstâncias?

A ideia surgiu quando vi aparecer os dois protagonistas finalmente juntos. Disse-lhes: vou escrever a vossa estória. Levou anos, mas cumpri a promessa.
 

O Planalto e a Estepe, a história do narrador e de Sarangerel também prova que o amor é sempre possível, principalmente “o impossível”?

Não só o amor mas sobretudo o relacionamento entre as pessoas, a amizade e o companheirismo, por exemplo. São possíveis e são necessários. Se o homem não tiver relacionamentos fortes, não melhora. E o mundo também não.
 

O Planalto e a Estepe - chancela da Dom Quixote - teve a primeira edição em Portugal, em Abril de 2009, e vai na 3ª edição. O livro está a ter a receptividade que esperava do público português?

Estou bastante satisfeito, não só pelo facto de haver reedições rápidas, mas sobretudo pela reacção das pessoas. Têm sido muito positivas em relação a este livro. É tudo o que um escritor mais pode desejar, que as pessoas gostem de ler um livro seu.
 

O escritor também se comove com as histórias que conta?

Não sei dos outros. Falo por mim. Acho que se um escritor não se diverte a escrever um livro, também não diverte os leitores. O mesmo para as emoções.
 

Jaime Bunda – paródia de James Bond - é o herói/anti-herói dos seus policiais. Como é a relação do autor com esta personagem?

Contraditória. Por um lado, não posso dizer que o personagem represente uma boa pessoa. Nem sequer é inteligente. Mas, por ser patético e ridículo, por vezes comove-me. E deixo que ele se adoce um pouco.
 

O contacto com os leitores em sessões de autógrafos, lançamentos, feiras do livro é feito por prazer ou é uma obrigação inerente à profissão de escritor?

É a única parte interessante do ofício de escritor, depois de o livro estar escrito. Detesto entrevistas, sessões de fotografia, lançamentos e brindes. Protesto sempre comigo depois de ter aceite participar numa coisa dessas. Já o contacto com os leitores em Feiras do Livro ou sessões de autógrafos ou em escolas, sim, isso agrada-me, não o faço por obrigação do marketing.
 

É escritor mas também professor universitário na Universidade Agostinho Neto, em Luanda. O professor ensina, ou aprende, com o escritor?

Deixei a docência o ano passado. Mas um aprendia com o outro, sem dúvida.
 

Quais são os grandes desafios que o Ensino Superior em Angola enfrenta neste momento?

Ganhar qualidade e credibilidade. Fazer a ligação com pesquisa, actualmente quase inexistente.
 

África é o continente forte que sofre, é rico mas vive pobre, é berço da humanidade e lugar de atropelos à dignidade humana. Para além das contradições, o romance africano está a ser escrito em que palavras?

Tem havido um real crescimento da literatura africana, apresentando não só as dores mas também as esperanças do continente. Começam a dizer que África tem ultimamente contribuído para colorir o romance, esse género sempre ameaçado de extinção. Estou de acordo. Temos muitas estórias para contar. E a ironia suficiente.
 

Ao dar título ao romance Geração Utopia estaria também a dar o nome à geração que lutou pela liberdade em Angola. Angola está no caminho do sonho dessa geração?

Não. Parou pelo meio. Atingiu a independência. Falta tudo o resto: sociedade livre, justa, solidária, sem racismos, nem etnicismos, nem xenofobia.
 

Viveu e estudou em Portugal, conhece o país e conhece os portugueses. Qual é o perfil que traça do povo português?

Dá-me a ideia que se queixam demais de si próprios. Deviam ter maior auto-estima e confiança no País.
 

A eleição do presidente Barack Obama é o tal sinal de esperança que o mundo esperava?

Até agora ainda não desiludiu.

Mas é cedo para julgar. Por outro lado, não sei se o mundo tem deficit de esperança. Merecia mais?
 

Pelo conjunto da sua obra, Pepetela recebeu o Prémio Camões 1997. O que significou esse prémio para si?

Foi o reconhecimento de que escrevi algumas obras interessantes por algumas pessoas que faziam parte de um júri. É só. Tão falível como qualquer outro julgamento.
 

Podemos esperar em breve um novo livro?

Para breve, certamente não. Isto é, a menos que haja um “terramoto”, no próximo ano não penso ter livro para publicar.

Eugénia Sousa

 

 

 

LAR MAJOR RATO

RVJ - Editores lança monografia

A RVJ - Editores acaba de editar uma monografia sobre os 150 anos do Lar Major Rato, em Alcains, da autoria de Florentino Beirão. As páginas do livro contam uma aventura com 150 anos de história, fruto da generosidade de um homem e de um povo que não deixou que a obra acabasse.

A história de um homem que depois de morrer deixou a sua fortuna aos mais desprotegidos, criando uma instituição de solidariedade social, está agora contada num livro apresentado dia 27 de Junho, no auditório do Centro Cultural de Alcains. “História do Lar Major Rato – 150 Anos a Fazer o Bem” é uma obra a que ninguém fica indiferente.

“A partir de hoje, já ninguém tem desculpa de desconhecer a grande aventura que tem sido a história do albergue fundado em 1859”, referiu o autor na cerimónia de apresentação, que começou com um concerto musical, com Rui Barata e Roberto. Florentino Beirão dedicou o livro ao falecido Joaquim Manuel Rafael, que o iniciou enquanto desempenhava a função de presidente da Assembleia Geral do lar. A obra está à venda naquela Instituição.
 

 

ANTÓNIO VICTORINO D'ALMEIDA, MAESTRO:

"Os medíocres tomaram de assalto a sociedade"

Para o maestro a revolução de Abril abriu uma comporta que libertou uma «enxurrada de medíocres» que se apoderaram dos lugares de decisão em todas as organizações do País. Como caso flagrante aponta a actual direcção de programas da RTP, que qualifica de «ditadora e cobarde», por recusar as sucessivas propostas que lhe têm sido apresentadas. Victorino d’Almeida afirma que a política para a Cultura «não tem critério», criticando o facto de não se semear para colher mais tarde, ao mesmo tempo que aponta o dedo aos mais altos responsáveis políticos nacionais quando se «gabam do seu próprio analfabetismo», quando, por exemplo, afirmam nada perceberem de música.
 

É verdade que compôs a sua primeira música aos 5 anos?

Isso é um exagero. Talvez tivesse 5 ou 6 anos quando, sem saber nada de música, assobiei ou trauteei uma melodia que utilizei no meu «Opus 1», muito posteriormente. Obra escrita terei feito com uns 8 anos.
 

De que forma a família o influenciou?

O meu pai era advogado. A minha mãe é que tinha estudado canto. Já o meu avô paterno era músico e dramaturgo amador com um talento multifacetado para as artes. Era uma pessoa fascinante. Outra pessoa importante para mim foi uma professora de música da minha mãe que vivia no estrangeiro e um dia, quando veio a Portugal, me viu a acompanhar numa bateria de brinquedo o que a rádio estava a tocar. Ou seja, foi através de uma bateria, e não de um piano, que chamei a atenção de uma professora para a minha eventual musicalidade. Devo dizer que ainda hoje sou um fã de bateria e procuro integrar esse instrumento em todas as minhas orquestrações. Sinto-me uma espécie de pescador de baleias na Suiça.
 

Viena, onde viveu muitos anos, influenciou-o como terra da música por excelência?

Não tanto como poderia pensar. São bons, mas em Londres e Nova Iorque também pode escutar boa música. Portugal é que é a terra da não música por excelência e Lisboa a capital dos defeitos do País, o que é estranho quando temos imensas qualidades, só que não são potenciadas. Somos especialmente maus do ponto de vista musical e cultural.
 

Qual o motivo que nos leva a ficar na cauda em indicadores tão importantes como a cultura, por exemplo?

Houve sempre uma grande tendência para que a mediocridade se apoderasse de Portugal. Basta recuar ao período de Camões. Naquilo que corresponderia, à época, a uma enciclopédia, não figura o nome do poeta de «Os Lusíadas» entre os nomes da literatura. Estão lá o Avelar de Caminha, o Sá de Miranda, o António Ferreira, mas o Camões está omisso. Por inveja e valorização da mediocridade.
 

Tenta-se abafar quem tem valor e foge ao padrão instalado?

Há um horror aos valores que sobem acima de uma determinada média. Não é por acaso que Camilo Castelo Branco se suicidou, que o Eça de Queiroz sempre que estava em Portugal dizia que vinha «à choldra». O Saramago vive em Espanha e já é espanhol. Sou o primeiro a dizer que o regime de Salazar era fascista, criminoso e medonho, mas durante a sua vigência evitou a situação com que agora nos vemos confrontados.
 

Refere-se ao que se passou após a revolução?

O 25 de Abril abriu uma comporta de forma indiscriminada, dando vazão a uma mediocridade assustadora. A revolução trouxe uma enxurrada de mediocridade. O regime do Estado Novo não dava liberdade a ninguém, mas também não permitia esta mistura explosiva e indesejada entre as pessoas com valor e qualidade e os medíocres. Não estou a dizer que a revolução foi negativa, mas trouxe este lado menos bom à superfície. Portugal é hoje uma mediocracia, porque a maioria é medíocre e tomou todos os sectores da sociedade de assalto. Onde quer que vamos, encontramos um medíocre. Perante este cenário, a sociedade não pode sair da cepa torta.
 

A mediocridade reflecte-se, também, na cultura?

Também aqui o papel dos medíocres tem sido nocivo, infiltrando-se naquilo que está ao seu alcance, ou seja na organização. Por isto: o medíocre não sabe compor, não sabe escrever, etc. Todas as organizações portuguesas, quase sem excepção, são dirigidas por gente medíocre, sem capacidade para fazer melhor. A cultura é o espelho disso.
 

Está a pintar um quadro medonho do País…

O 25 de Abril abriu espaço a novos talentos e muitos deles explodiram nos anos e nas décadas seguintes, com especial relevo para o cinema português. Penso que os progressos verificados foram assinaláveis. Boa parte do que tem sido exibido tem qualidade. E a música, verdade seja dita, também melhorou. Temos uma verdadeira geração de ouro de jovens músicos, intérpretes e compositores, com tremenda qualidade. O problema é que a liderar as instituições onde estes tocam estão os medíocres. E são estes senhores que aconselham os ministros.
 

Actualmente, temos maestros de primeiro plano?

Há alguns. A Joana Carneiro, o Rui Massena, são casos flagrantíssimos e produtos da libertação do talento depois da revolução.
 

Como reage quando ouve os governos, como aconteceu com o actual, a assumir culpas por não investir na cultura?

São argumentos eleitoralistas. O Primeiro-Ministro e o seu partido, o PS, levaram uma tareia nas urnas e quer com essa retórica conquistar os intelectuais. Lamento muito, mas não tenho complacência para o executivo do engenheiro Sócrates. É um governo de direita. E o PS é um partido de direita e traidor dos ideais da esquerda, ao contrário do PSD que se tem mantido fiel aos valores. Na cultura, a política tem sido um desastre. O que tem sido feito em termos culturais é mau, isento de critério, ao calhas. Semear para colher e multiplicar é o objectivo de qualquer política cultural. Em Portugal, na melhor das hipóteses, paga-se um concerto, sem qualquer preocupação de atrair novo público. É o caso da Gulbenkian, porque tem dinheiro, mas o número de espectadores está a diminuir a olhos vistos pela falta de renovação do seu público.

As pessoas estão convencidas que a morte do Michael Jackson (NDR: falecido na véspera da gravação desta entrevista) foi uma perda para a Humanidade maior do que morte do Stravinsky. Jackson não era mais do que alguém com escândalos relacionados com a pedofília com indiscutível talento para dançar.
 

A educação musical devia ser obrigatória nas escolas?

É totalmente diferente fazer música e saber o que é a música. É precisamente esta última vertente que as pessoas desconhecem por completo e devia ser ensinada nas escolas. Para começar, a música não é uma coisa necessariamente cantada, dançável e dançada, contrariando a esmagadora maioria das opiniões. Por exemplo, se levar pessoas oriundas de determinados estratos sociais e etários da sociedade portuguesa a uma sala de concertos vão logo perguntar onde está o vocalista. São estes conceitos que não são ensinados na escola e que, para mim, têm mais importância do que o «dó», «ré», «mi». É preciso desmistificar a ideia de que a música é um “bicho de sete cabeças”. Os rudimentos do solfejo ensinam-se em uma semana, se tanto. E as crianças que denotarem mais aptidão para a música devem ser recrutadas de imediato. A ministra da Educação afirmou que se conseguisse levar a bom termo os seus projectos, teríamos 1 milhão e quinhentas mil crianças a saber música. Era uma enormidade, quase um pesadelo. Eu já ficaria muito contente se todos os portugueses tivessem umas noções básicas do que é música.
 

Está a ministrar um curso de História da Música, em Almada, até Outubro. Qual interesse dos seus alunos por esta temática?

São apenas 40 horas de ensino, o que é manifestamente curto. Ainda assim destaco a gratificante fidelidade dos alunos que ajuda a compensar a frustração da escassa duração do curso. Em dias de praia, visto que o curso é ministrado ao sábado à tarde, estão quase todos os que se inscreveram, o que me estimula a dar o meu melhor e tudo o que sei. Nas aulas, traço o percurso da História da Música ocidental da Idade Média até aos nossos dias, falo sobre os compositores, as respectivas biografias e características principais, dando a ouvir pequenos excertos das suas músicas.
 

Como vê proliferação de programas musicais com crianças nos canais portugueses?

Acho horrível e de péssimo gosto. Não gosto de ver os macacos no circo e menos ainda gosto de ver as crianças em macacos…de circo. São concursos que incitam à hipocrisia, com aquela sucessão interminável de abraços e beijinhos.
 

Lembro-me que há cerca de duas décadas o canal do Estado tinha, em horário nobre, teatro e ópera, uma vez por semana. Como explica que estes programas tenham desaparecido da antena ou sejam emitidos a desoras?

Respondo-lhe assim: sem desprimor para o meu amigo Fernando Mendes, eu gostaria de saber as audiências que teria o «Preço Certo», às 2 da manhã. Era zero ou perto disso, certamente. É uma fraude emitirem os programas de qualidade, nomeadamente os de índole cultural, na madrugada, alegando que eles não têm audiência.
 

As responsabilidades são apenas da RTP, enquanto canal de serviço público por excelência, ou também devem ser assacadas aos privados?

Os privados têm alvará para funcionar, logo, devem cumprir essa missão, tal e qual como a RTP. Imagine que compra um táxi, não vai utilizá-lo para vender nabiça!. O que importa saber é se cumprem os mínimos. Pior ainda é se o canal 2 da RTP não cumpre…Já é o cúmulo dos cúmulos.
 

Falta coragem para dar mais cultura às massas?

Os responsáveis pela programação do canal do Estado são ditadores, medíocres e cobardes.
 

Quando volta ao pequeno ecrã?

Estou saneado pela RTP e proibido de fazer qualquer programa. Eu agora só apareço mesmo, e de forma regular, na RTP-Memória. Considero até uma pulhice usarem a minha imagem num canal, quando me impedem de trabalhar noutro, da mesma empresa.
 

Considera-se incómodo para alguém?

Oiço dizer que há pessoas que estão zangadas comigo. Já mandei diversas cartas ao actual director de programas, José Fragoso, para agendarmos uma reunião de trabalho e nunca obtive resposta. Considero que não merecia ser maltratado desta maneira, quando tenho mais de 40 anos de trabalho na RTP. É uma cobardia moral que estes senhores se recusem a sentar-se comigo para falarmos. Recentemente propus um programa à RTP que se chamaria «O som a seu dono», com 13 making off de gravações de 13 compositores portugueses, entre os quais eu não estava. Um programa que, humildemente, considero de interesse e que divulgaria o trabalho de compositores nossos. Isto era serviço público e promoveria a música nacional, visto que sairia também em disco, com o apoio da RDP. O programa foi liminarmente recusado. Sem mais. Isto não é democrático.
 

Não faz mesmo ideia do que se passa?

O último programa que fiz para a RTP teve a luz verde do então director de programas, Nuno Santos, que entretanto foi para a SIC. Recebi um telefonema da RTP, quando já tinha 4 programas entregues, 7 gravados e 3 escritos, a propor-me que desistisse da emissão dos mesmos. Respondi que não o podia fazer e salientei que não tinha assinado contrato com o Nuno Santos, mas com a RTP.
 

Acha que Portugal tem condições para superar a crise que muitos consideram das mais graves de sempre?

A crise é global, mas pode ter lados positivos. Descobriu-se que o socialismo, afinal de contas, não é aberrante. O PS é que não percebeu. Porque o liberalismo selvagem não está a dar bons resultados. Lamentavelmente os ordenados chorudos e escandalosos dos gestores mantêm-se. Mas a moralização há-de chegar, estou convicto. Todos os pobres foram afectados, mas a crise também vai chegar ao bolso dos ricos. O que dificilmente terá retorno é o fosso enorme que se tem cavado entre ricos e pobres.
 

Dentro de meses teremos dois actos eleitorais. É da opinião que o País é ingovernável sem um governo de maioria absoluta?

Os grandes capitalistas acham que sim, não vejo porquê. É falacioso invocar esse argumento. É como dizer que sem maioria absoluta de um partido, mais vale viver no regime ditatorial. Qualquer país democrático é governável, desde que as pessoas que o dirigem sejam honestas. O poder eleito tem que se confrontar com uma oposição que, necessariamente, terá de integrar o processo democrático.
 

Em que sectores é que o país está mais carenciado?

Saúde, em primeiro lugar. Exemplifico com um caso pessoal: esta situação passou-se no Verão de 2007, quando necessitei de uma consulta de oftalmologia de urgência. Constatei que a partir das 8 da noite, em todo o norte do país, havia apenas uma profissional especializada a trabalhar. Esta é a realidade nua e crua. Às 11 da noite lá encontrei uma jovem médica, muito simpática, que me atendeu, esfomeada, por não ter jantado. Veja: médicos, professores, polícias, não são propriamente santos. São pessoas com defeitos e que podem não ter razão em muitos dos seus protestos, mas têm na maioria. Vivemos é de modo ditatorial, em que quem é contra a política do governo, é visto como alguém que pretende tornar o país ingovernável. Assim torna-se impossível progredir.
 

Como vê o braço de ferro que se arrasta na educação entre a tutela e os docentes?

Os professores têm que ser avaliados. É preciso é saber por quem e como. O extremar de posições na educação e noutros sectores acaba por tornar populares estas corporações, quando o que é preciso é equilíbrio e bom senso. Infelizmente este governo não cultiva o diálogo, preferindo o “quero, posso e mando”. Perante isto, as pessoas têm a tendência para se unirem aos contestatários. É normal.
 

Preocupa-o a fuga dos nossos melhores talentos para o estrangeiro?

Sem dúvida. É impressionante o baixo nível cultural e educativo que existe em Portugal. Somos dos países mais ignorantes da Europa e não me refiro aos analfabetos convencionais, mas ao analfabetismo dos que sabem ler. Voltando à música, qualquer político diz, alegremente e quase que orgulhosamente para que todos oiçam, que não percebe nada do assunto. No estrangeiro é o mesmo que dizer que nunca leu um livro ou nunca foi a um museu de pintura. Cá, pessoas com responsabilidade, gabam-se do seu próprio analfabetismo.
 

Com frequência ministra palestras motivacionais em empresas. Quais os objectivos que lhe são pedidos?

Várias empresas têm-me convidado para eu fazer uma associação entre a coordenação de uma orquestra e o modo de funcionamento de uma organização. São sessões que têm corrido muito bem, e em que estão presentes as chefias e os colaboradores. No final, todos se têm mostrado satisfeitos e elucidados. Reconhecem que é preciso haver um chefe, que estabeleça regras, mas a liderança não é uma ditadura. O bom colaborador é aquele que participa e, se necessário, que critica. É preciso saber ouvir. O pior que pode haver é cultivar a política da mordaça nas empresas.
 

Qual é o segredo para fazer passar a sua mensagem?

Nada de mais. Procuro elucidar sobre um aspecto que muitos desconhecem: quais são as reais funções do maestro numa orquestra. E, a partir daí, as pessoas vão associando esta lógica da orquestra ao funcionamento da sua empresa.
 

Transportando os valores da orquestra para uma escola. O que dizia se estivessem na sua plateia, professores e alunos?

Os valores da orquestra aplicam-se nas empresas e nas escolas. Eu há dias tive uma experiência muito curiosa. Fui convidado para fazer um concerto em Oeiras. Pediram-me que antes fizesse uma pequena palestra para um grupo de jovens alunos, mas cuja proveniência desconhecia. A conversa correu o melhor possível. Depois, no concerto, acabei por vê-los na plateia, sempre participativos e disciplinados. Quando perguntei a que escola pertenciam, disseram-me que eram reclusos, a maioria delinquentes em alto grau. Curiosamente, não dei por nada na abordagem que tinha feito anteriormente. Porventura, se tivesse moldado o discurso, dirigindo-o para presos, eles sentir-se-iam discriminados. Moral da história: é fundamental que não se mude o conteúdo do discurso consoante o destinatário.

É preciso encontrar denominadores comuns entre as pessoas, procurar que o discurso seja entendido por todos. É este o segredo para os meus programas de televisão e a popularidade que eles tiveram. Estimo que cerca de 95 por cento dos portugueses conhecem-me da Televisão e não da música que faço ou dos livros que escrevo.
 

É verdade que sonha compilar toda a sua obra em disco?

Pelo menos fazer uma selecção do melhor do repertório. É a realização suprema de qualquer compositor. Ninguém gosta de escrever para a gaveta e o que não está gravado não existe. Não me posso queixar, porque das 34 sinfónicas escritas, 29 já foram tocadas, algumas delas de forma repetida, o que é uma média extraordinária. Só que quem assistiu aos espectáculos, não reteve. E o disco tem o condão de perpetuar. Se for à República Checa verá que há 50 ou 70 discos de compositores locais. Em Portugal, por falta de apoio, não há. As editoras não têm dinheiro e o Ministério da Cultura terminou com todo e qualquer subsídio à edição discográfica. Só resta arranjar patrocínios, mas o sistema estalinista instalado impede isso. A Lei do Mecenato diz que é o Estado que define o que tem valor para ser incluído ao abrigo da legislação em vigor. Dá-se o caso que, se eu não apoiar este governo ou qualquer outro em funções, dificilmente serei contemplado.
 

Consegue estimar quanto custa editar um disco?

Aproximadamente, entre 7 a 10 mil euros. Creio que com 15/20 mil euros gravava uns quatro discos.
 

A internet tem sido apontada como uma das responsáveis pela crise da indústria musical. Como olha para este fenómeno dos tempos modernos?

A revolução tecnológica é algo de extraordinário, mudou o mundo como aconteceu com a revolução industrial, mas a internet está a anos-luz da importância que se lhe dá. É um mau elemento para a sociedade. Sou contra. Para o meu recente livro, «Toda a música que eu conheço», praticamente não me servi dessa ferramenta. Quem me garante que o que lá está é verdade?

Nuno Dias da Silva


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