FERNANDO NOBRE,
PRESIDENTE DA ASSISTÊNCIA MÉDICA INTERNACIONAL (AMI)
"Só falta inventar o
curso em engenharia do prego"

Trocou o conforto e a segurança de uma
carreira médica em Bruxelas, por uma missão de solidariedade, ameaçando
a própria vida para salvar a dos outros. Fernando Nobre é o rosto da
acção humanitária da AMI há 30 anos. «Inconformado perpétuo», alerta
para a crescente pobreza e exclusão social que afecta o nosso País, ao
afirmar que sem subsídios, cerca de 40 por cento dos portugueses
estariam a braços com tremendas dificuldades de subsistência. Crítico da
crónica falta de organização nacional, o médico acusa os políticos de
quererem o seu nome associado às reformas da educação e de terem
permitido a abertura indiscriminada de faculdades.
Pode descrever o que é, actualmente,
o «universo» AMI?
A AMI, tendo por base a divisa «por uma acção humanitária global», tem
quatro pilares de intervenção: vertente externa, vertente interna,
alertar consciências e ambiente. A nível internacional, estivemos em
cerca de 68 países, seja em emergência, desenvolvimento ou apoio a
iniciativas locais, e mantemos projectos em 44 nações. A nível interno,
que passa pela luta contra a exclusão social em Portugal, a AMI tem 11
equipamentos sociais a funcionar no País, dos quais, 9 centros «Porta
Amiga» e 9 alojamentos para os sem-abrigo. Do lado ambiental, após
termos começado com as campanhas de recolha de radiografias, estendemos
essas campanhas à reciclagem de bens consumíveis (toner’s, telemóveis,
óleos usados, etc.), com o dinheiro daí resultante a ser investido em
projectos sociais da Instituição – devo registar que a AMI foi
galardoada pelo Ministério do Ambiente, no final de 2008, pelo mérito de
associar a reciclagem de materiais perecíveis a projectos sociais no
terreno. Finalmente, o quarto e último pilar em que eu, porventura
intervenho com maior acutilância (apesar de intervir em todos, sou uma
espécie de «chefe de orquestra» desta casa), chama-se alertar
consciências para direitos humanos, doenças esquecidas, conflitos, etc.
No fundo, procuramos contribuir para um mundo mais equilibrado, mais
sustentado, onde a democracia e a paz se afirmem, de forma mais
duradoura.
Fundou a AMI em 1984 depois de ter
estado na organização dos Médicos Sem Fronteiras, em França. Qual foi o
clique que o fez abandonar a carreira médica em Bruxelas para abraçar as
causas humanitárias?
Eu era docente universitário em Bruxelas das disciplinas de Biologia e
Anatomia Humana e especialista dos hospitais académicos da capital
belga, na medida em que tenho duas especialidades médicas, sou
cirurgião-geral e urologista. Numa reportagem feita pela RTP, pelo
jornalista Barata-Feyo, no Chade, em 1983, ele perguntou-me se estaria
disposto a fundar em Portugal uma organização nos moldes dos Médicos Sem
Fronteiras, ao que eu respondi afirmativamente ao seu desafio, até
porque não me canso de realçar o passado humanista de Portugal, que
considero o verdadeiro impulsionador da globalização. Na sequência da
reportagem, o ministro da Saúde de então, Maldonado Gonelha,
contactou-me e eu vim até Portugal, país que desconhecia, pois apesar de
ser de nacionalidade portuguesa, nasci em África. A carreira no centro
universitário de Bruxelas era uma auto-estrada, enquanto esta aventura
humanitária na AMI era um carreiro de areia. Escolhi esta segunda
hipótese, que se tornou o objectivo da minha vida. Hoje, não tenho
dúvidas, acertei ao preferir o terreno à academia.
Em quantas acções humanitárias
esteve ao longo da sua carreira?
Eu estive em 74 países, considerando as acções de operativo que exerci
ao serviço dos Médicos sem Fronteiras. Por norma, estou sistematicamente
fora do País, em média, de 15 em 15 dias. Posso, por alto, estimar que
tenha participado, em 30 anos de acção humanitária, em para cima de 250
missões, como cirurgião.
Relata que o momento mais marcante,
em termos pessoais, foi o disparo do atirador-furtivo em Beirute que
quase lhe custou a vida. Consegue identificar o episódio mais punjente
do ponto de vista humano?
Sem dúvida, pelo drama humanitário tremendo, a intervenção no Ruanda em
1994, nos campos de refugiados, no seguimento do genocídio. Depois
dessa, o Sri Lanka, pós-tsunami, as Honduras, pós-ciclone Mitch, a
guerra civil de Angola, etc. Sem esquecer a missão no Chade, no fundo
que deu origem à AMI, e a primeira de todas que eu fiz, a guerra
Irão-Iraque, em 1981.
O gabinete da sede da AMI onde
gravamos esta entrevista está repleto de artefactos e objectos
recolhidos ao longo de décadas de missões. Que situações e pessoas em
concreto relembra com mais frequência?
Os rostos de crianças marcaram-me sempre nas minhas missões. No último
livro que publiquei, «Imagens Contra a Indiferença», estão retratadas
pessoas, nomeadamente uma jovem que vai morrer e que não pude salvar,
num campo de refugiados na fronteira entre o então Zaire e o Ruanda. Ou
então, crianças abandonadas em orfanatos da República da Moldávia e da
Roménia de Ceaucescu, que podiam, perfeitamente, ser minhas filhas. Se
algo me choca, sobremaneira, nestas situações é o sofrimento das
crianças. Veja o recente conflito na Faixa de Gaza que ceifou milhares
de vítimas, muitas delas crianças. Os políticos jogam com a vida das
pessoas como se de peões num tabuleiro de xadrez se tratassem.
Define-se como «um gestor de boas
vontades, despertador de consciências e um grande pedinte». Considera-se
um cidadão do mundo que reage à intolerância com o seu inconformismo?
Eu tenho a minha imagem (ainda que incompleta) do mundo. Sou um
inconformado perpétuo e sigo o que dizia a minha amiga Sophia de Mello
Breyner: «Não há nada mais triste do que um homem acomodado». Faço
questão de não o ser até morrer. Peço a quem pode e em nome dos que não
têm rosto e voz. De alguma forma sou um revoltado, pois não aceito que
em nome das razões de Estado ou do «politicamente correcto», aconteçam
catástrofes, genocídios ou matanças como aquelas que há três décadas
acompanho de perto.
No átrio da sede da AMI, existe uma
placa com a seguinte inscrição da sua autoria: «as duas doenças mais
graves do mundo actual são a intolerância e a indiferença». Até quando
pode durar o combate a estas «maleitas»?
É um combate que vai demorar séculos. Mas se se alterar o paradigma das
relações humanas, vamos diminuir drasticamente o sofrimento. Acredito
que com um esforço de sensibilização tremendo, com mais ética, valores,
princípios e mais respeito pelo Direito Internacional e pelo ambiente,
podemos erguer uma sociedade mais pacífica, por isso, menos violenta. O
que me insulta, enquanto ser humano, é pensar que no século XXI, se
continuem a perpetrar genocídios e outros estão em curso, alguns
silenciosos, no Congo, no Sudão, no Zimbabué, na Tchetchenia, etc.
Parece que o homem teima em não aprender nada com a História. É tempo de
parar e escutar os gritos que se ouvem por aí.
Muito do que se passa no mundo
acontece devido à influência americana. Pensa que a administração Obama
vai conseguir apaziguar focos de conflitos nascidos na última década?
Pior do que foi feito por Bush é impossível. O presidente Obama não vai
deixar de seguir a linha estratégica mestra dos Estados Unidos desde há
100 anos, com McKinley, de preservar o império norte-americano como
potência hegemónica. Há 3 eixos fundamentais que se manterão
inalterados: a questão petrolífera, a questão armamentista e a aliança
incondicional e acrítica com Israel. Se mexer nesses campos, a vida pode
correr-lhe muito mal. Onde Obama vai fazer uma mudança, mesmo que
gradual, será nas matérias sociais e ambientais. Devido às suas raízes,
penso que vai empenhar-se algo mais na resolução das tragédias e
misérias do continente africano.
Num período de dois meses, os estados e os bancos centrais avalizaram
para o sistema financeiro cerca de 3 biliões de dólares, para
estabilizar o desnorteado sistema financeiro, o que corresponde a cerca
de 10 vezes o dinheiro que teria sido necessário em 15 anos, para se
lograrem os 8 objectivos do milénio, traçados na assembleia geral da
ONU, em Nova Iorque, em 2000. Por falta de verbas e empenho, esses
objectivos não foram atingidos (nem em 2050, eles serão alcançados) e os
estados mais frágeis ficaram mergulhados num coma profundo.
A luta por recursos hídricos e
alimentares promete ser uma das guerras deste século. A ONU classificou
recentemente a crise alimentar como um «tsnumani silencioso». Como a
avalia?
O «tsunami silencioso» já está em curso. Todos os anos, as doenças ditas
esquecidas, matam, nos países em vias de desenvolvimento, entre 15 a 17
milhões de pessoas. A indústria farmacêutica não investe nas patologias
que matam nesses países, preferindo apostar em fármacos úteis aos países
mais desenvolvidos, onde existe maior poder de compra. A fome e a falta
de água serão temas decisivos nos próximos 50 anos. Estou em crer que
vão provocar centenas de milhares, para não dizer milhões, de refugiados
climáticos, com as oscilações entre secas, chuvas torrenciais,
inundações, subida do nível da água do mar, abandono de ilhas ao nível
do Índico e do Pacífico, etc.
A água vai ser o recurso mais
disputado do século?
O consumo a que hoje estamos habituados não pode ser extensivo a todo o
Planeta. E, não é por acaso, que boa parte da população mundial ainda
não tem acesso a água potável e a situação tende a agravar-se. A
movimentação de pessoas em busca de recursos hídricos vai ser
inevitável.
Pronunciou-se o fim dos alimentos a
baixo custo. Que consequências estima com a inflação alimentar?
A inflação no custo dos alimentos decorre de vários factores: alguns
grandes produtores, como a Austrália ou a Argentina, tiveram
condicionantes climáticas; as matérias-primas e terrenos são utilizados
para biodiesel, não acautelando dois princípios básicos – não podem ser
utilizados para biocombustível alimentos que sejam de uso para homens e
os animais, da mesma forma que não podem ser utilizados terrenos de
cultivo que sirvam para alimentação de homens e animais. Já para não
falar na especulação tremenda sobre os alimentos. Finalmente, alguns
pseudo-científicos, tendem a escamotear esta questão por estarem ao
serviço das grandes empresas agro-alimentares: os alimentos
geneticamente modificados (soja, milho, etc.) não permitem a sua
auto-reprodução. E isso exige que os agricultores que enveredaram pela
compra dessas sementes estejam dependentes, anualmente, da sua
aquisição, impossibilitando-os de plantar a semente no ano seguinte.
Este caldo faz com que a questão alimentar, hídrica e climática se vá
converter na grande tragédia da Humanidade. Mas como sou um optimista
inveterado penso que a geração dos meus filhos (visto que a minha não
esteve à altura das responsabilidades e rapidamente se acomodou) por
opção própria ou por obrigação, será mais interveniente.
Fome e pobreza têm uma ligação muito
forte com corrupção, iliteracia e ignorância. A quem interessa que boa
parte do mundo assim permaneça?
Constato, com os meus 57 anos, e depois de tudo o que vi, que há planos
elaborados para que uma parte do mundo veja diminuir as suas populações
e não tenha determinado desenvolvimento porque as reservas estratégicas
servem, apenas, uma minoria. Está demonstrado que se toda a população do
universo tivesse a pegada de consumo de nós, portugueses, seriam
precisos dois planetas. Se tivesse a dinâmica dos americanos, seriam
precisos quatro planetas. A menos que nós ocidentais aceitemos
restringir o nosso próprio consumo e modo de vida, estamos perante um
problema quase insolúvel. Pelo que observo no terreno, considerando a
crise mundial que vai afectar os mais pobres, estou em crer que hoje, em
gabinetes de estudo e «torres de marfim», onde os sentimentos humanistas
não moram, gizam-se estratégias no sentido que a população diminua e
certas franjas do nosso Planeta não tenham hipótese de desenvolvimento,
porque a Terra não comporta tal ritmo de consumo. A manutenção de uma
corrupção desenfreada, nomeadamente sub-sahariana, é uma das causas
essenciais do não desenvolvimento desses países.
O que conta parece mais próprio de
um filme...
Não tenha dúvida do que digo. Penso que há outros gabinetes que estão
ansiosos por verem descongelar o Alaska e o Pólo Norte, por razões
puramente economicistas e de preservação de privilégios, não
vislumbrando a tragédia planetária que isso acarreta. No Alaska, sem
gelo, a exploração petrolífera será muito mais facilitada, enquanto que
no Pólo Norte, seriam permitidos trânsitos por via marítima muito mais
baratos do que a passagem através do Canal do Panamá.
A teoria de Malthus (assente na tese
de que o crescimento populacional acarretaria a falta de recursos
alimentares para população) está a cumprir-se 300 anos depois?
Parcialmente. Josué de Castro, antigo director geral da FAO, dizia no
seu famoso livro «A Geopolítica da Fome» que o Planeta Terra com o solo
arável que dispõe, bem produzido, daria, perfeitamente, para alimentar
entre 13 a 15 mil milhões de pessoas. Estamos em metade dessa população.
Não é possível fazer melhor quando uma parcela extremamente rica do
Planeta quer preservar os seus exagerados hábitos de consumo. A Ronda de
Doha, iniciada em 2001 e que permitiria abrir um comércio mundial com
regras mais equitativas, está enterrada, segundo as declarações do
director da Organização Mundial do Comércio. Iremos continuar a assistir
a um fosso maior entre o hemisfério norte e sul e mesmo dentro das
próprias sociedades, os 20 por cento dos mais pobres ficarão mais
pobres, comparando com os 20 por cento dos mais ricos.
Em Portugal, vive-se uma situação de
emergência. Sociedade civil e partidos políticos podiam, com vontade e
mobilizados, fazer mais?
A nossa sociedade civil, em comparação com as congéneres europeias, é
muito débil. Por outro lado, a nossa classe política ainda vê no reforço
da sociedade civil um contra-poder que ameaça a sua hegemonia, em vez de
ver um aliado estratégico. Devia entender que sem uma sociedade civil
que seja um dos três pilares essenciais do Estado não há possibilidade
de uma verdadeira democracia e de desenvolvimento. É curioso ouvir
certos comentadores que questionam a legitimidade da sociedade civil,
porque não eleita, mas não fazem o mesmo quando se pronunciam sobre o
poder das empresas e de organizações multinacionais, como o FMI, a OCDE,
o G-8, etc.
Sem uma sociedade estruturada e com
vitalidade o País não progride?
Sou um defensor acérrimo do reforço do pilar da cidadania. Só com três
pilares fortes e que se inter-relacionem, é que o Estado pode ser
verdadeiramente democrático: a saber, os tradicionais poderes
democráticos, a gestão transparente da coisa pública e o pilar da
cidadania – com ênfase nos deveres, sobretudo estes, para com a sua
sociedade e não apenas centrado nos direitos, que, invariavelmente,
conduzem às derrocadas como as que estamos hoje a viver.
O risco de pobreza atinge 18 por
cento dos portugueses, mas sem subsídios esse número pode chegar a 40
por cento. Que tipo de solicitações chegam à AMI?
Há famílias a sacrificarem a alimentação para pagarem prestações várias.
De todos os extractos. Licenciados, empregados, mas com salários
reduzidos, sobreendividados. Há de tudo. Os relatos que oiço dos nove
centros Porta Amiga da AMI identificam uma nova franja da população está
a recorrer aos nossos serviços de forma envergonhada. O aumento da
frequência aos nossos centros aumentou 20 por cento, só no último ano, e
o perfil de quem nos procura também está a mudar. Lembro-me do caso de
uma professora primária que teve necessidade de recorrer à AMI, mas que
escapava ao quadro normal dos nossos utentes, pois apresentava-se
vestida de forma diferente do habitual. Casos como este vão
multiplicar-se, pois devemos estar bem cientes que o desemprego vai
aumentar. E com este, aumenta a precariedade de vida.
Os donativos reduziram-se. Como é
que se ajuda os outros com menos apoios?
Essa é uma questão central que se vai levantar em 2009. O peditório de
rua do ano passado correu bastante bem, mas os donativos avulsos anuais
têm tendência para diminuir. A classe média e média baixa é, geralmente,
a que mais contribui. Por azar, tem sido este estrato a apertar o cinto.
O reflexo nos donativos é óbvio. Faço daqui um apelo a todos os
portugueses para que entendam que a questão da pobreza e da exclusão
social deve ser vista como uma causa nacional. Não tenhamos vergonha de
o assumir. Sinceramente, acho que não há nenhum governo que tenha os
meios para acabar com o flagelo. Creio que só se conseguirá dar a volta
com uma mobilização e motivação nacionais.
Mas os portugueses motivaram-se, no
passado, para outras causas...
É verdade. Dos meus tempos de residente no centro da Europa, lembro-me
que a França todos os anos definia uma causa nacional. Em Portugal,
temos várias que podíamos abraçar: a educação, a justiça, a saúde, a
política externa, etc. Mas há uma essencial, que mais nos penaliza e
mais prejudica o Estado no seu todo, que é a da pobreza e da exclusão.
Prioridade absoluta para ela, gerando à sua volta um esforço colectivo
mobilizador. Sem preconceitos. Olhem todos para os seus amigos e
vizinhos. Há muita gente que vive mal e está a ser afectada por este
problema estrutural que se arrasta há tempo demasiado.
O momento é, igualmente, complexo e
tumultuoso no sector educativo. Por que é que falha a escola na sua
missão?
Não sou especialista na matéria, - apesar de ter quatro filhos em idade
escolar – mas creio que no nosso País houve reformas em excesso. Cada
ministro da educação quis deixar o seu nome para a posteridade associado
a uma reforma. Isso criou uma grande instabilidade no sistema de ensino.
Creio que tem faltado sensibilidade e bom senso. Mais importante do que
as reformas, é o conteúdo e a forma como são apresentadas. Tal como, tão
importante como um rebuçado, é o papel que o envolve.
Aponta o dedo em especial aos
políticos?
Por incapacidade do Estados e dos sucessivos governos, foi-se incapaz de
analisar as necessidades do País com a abertura desmesurada de
faculdades. Actualmente, vive-se uma situação de pré-ruptura no que diz
respeito aos médicos. Oiço falar na contratação de médicos na reforma e
o recrutamento de clínicos em países tão distantes como o Uruguai ou o
Paquistão. A classe médica está envelhecida. Porquê? Ao longo dos
últimos 15 anos, os responsáveis não se reuniram para acautelar e prever
as necessidades do País relativamente a este quadro. Definiu-se um
«numerus clausus» sem nexo. Obrigou-se milhares de jovens competentes a
emigrar, devido às médias estapafúrdias exigidas. São profissionais que
dificilmente regressarão, até porque carregam dentro de si a mágoa de
pertenceram a uma pátria que os destratou. O panorama é este.
Fala com um grande desencanto...
Mais uma vez ninguém será responsabilizado por má gestão. Algo tem de
ser estruturado, de uma vez por todas. Entendo que o que peca em
Portugal é a organização e o planeamento estratégico. Com reflexos em
todos os sectores e também na educação.
É legítimo falar-se de uma geração
enganada?
Ainda há pouco li um artigo de um jovem no jornal que acusava a minha
geração de os ter maltratado e ignorado. Há milhares e milhares de
licenciados que não se enquadravam nas necessidades reais do País (por
exemplo, em Relações Internacionais) mas foi permitida a abertura de
faculdades de forma indiscriminada. Só faltava inventar a licenciatura
em engenharia do prego. Perante isso, esta geração tem razões de queixa
e já não entende que por patriotismo tem que permanecer por cá e vai
para onde lhe derem mais oportunidades.
Acha que se podem repetir os
acontecimentos de rebelião urbana na Grécia fruto do descontentamento
social?
Não é impossível que se repitam os episódios da Grécia e também da
Islândia. Depende, sobretudo, do grau de frustração e desespero dos
jovens. Oiço repetidamente que somos um povo de brandos costumes. Somo
um povo que fomos habituados a ser carneiros, a viver na dependência do
Estado, subserviente, medroso, com auto-censura, com hábitos de delação
– a noção do «bufo» do antigo regime. No fundo, os portugueses têm um
poder de encaixe muito grande. Porventura, é essa a nossa grandeza e a
nossa miséria.
D. João II é a sua referência
histórica. Faz falta uma personalidade deste calibre?
Creio que desde que faleceu, em 1495, começou o declínio de Portugal,
por ter deixado de existir visão estratégica. A divisa dele era muito
simples: «Pela lei e pelo povo». Sem estes valores, começou o fartar
vilanagem. Basta fazer uma breve revisão histórica, desde D. Manuel I,
para perceber isso. Quando D. João V faleceu, os cofres do Estado
estavam vazios ao ponto de não haver dinheiro para pagar o seu funeral.
Em vida, até quadros com molduras cravejadas de pedras preciosas mandou
para os cardeais romanos...
O problema da falta de liderança não
é de hoje...
Quando as lideranças dos deveres são substituídas pelas lideranças,
apenas e só, dos direitos, as derrocadas são sempre inevitáveis.
Trata-se de uma lição que foi válida para as monarquias e é válida para
as repúblicas. É fundamental passar uma mensagem crucial para a nova
geração: para ser-se líder de um país, de um banco, de uma empresa, é
preciso, sobretudo, ter-se deveres. As lideranças habituaram-se a viajar
em aviões de luxo e a frequentar restaurantes chiques. Entraram em
levitação estratosférica. Distanciaram-se do povo.

Nuno Dias da Silva
Cara da notícia
Fernando Nobre nasceu em Luanda, em
1951. Em 1964, mudou-se para o Congo e, três anos mais tarde, para
Bruxelas, onde estudou e residiu até 1985, altura em que veio para
Portugal, país das suas origens paternas. É Doutor em Medicina pela
Universidade Livre de Bruxelas, onde foi assistente, e especialista em
Cirurgia Geral e Urologia. É Doutor Honoris Causa pela Faculdade de
Medicina da Universidade de Lisboa e Académico Correspondente da
Academia Internacional de Cultura Portuguesa. É membro do Conselho Geral
da Universidade de Lisboa e do Conselho Geral da Universidade da Beira
Interior e docente convidado (em Mestrados e Pós-Graduações) nas
Faculdades de Medicina de Lisboa, Coimbra e Minho, na Universidade
Autónoma de Lisboa, no Instituto de Estudos Superiores Militares e no
Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna.

Memórias do "homem
que empurra o mundo"



À parte da conversa fluida e rica em
experiência vivida por ter corrido as sete partidas do mundo, são os
objectos pessoais de Fernando Nobre que magnetizam o olhar de um
estranho que pela primeira vez entra no seu gabinete, nas instalações da
AMI, em Marvila. Um pedaço do muro de Berlim, uma pedra de Chernobyl, um
cachecol timorense, são alguns dos mais emblemáticos artefactos que
mostra com indisfarçável orgulho. Sem esquecer, a recordação familiar
que o filho Alexandre lhe ofertou em 1999, uma estatueta que baptizou
como «o homem que empurra o mundo», em homenagem ao seu pai.

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