Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XII    Nº132    Fevereiro 2009

Entrevista

FERNANDO NOBRE, PRESIDENTE DA ASSISTÊNCIA MÉDICA INTERNACIONAL (AMI)

"Só falta inventar o curso em engenharia do prego"

Trocou o conforto e a segurança de uma carreira médica em Bruxelas, por uma missão de solidariedade, ameaçando a própria vida para salvar a dos outros. Fernando Nobre é o rosto da acção humanitária da AMI há 30 anos. «Inconformado perpétuo», alerta para a crescente pobreza e exclusão social que afecta o nosso País, ao afirmar que sem subsídios, cerca de 40 por cento dos portugueses estariam a braços com tremendas dificuldades de subsistência. Crítico da crónica falta de organização nacional, o médico acusa os políticos de quererem o seu nome associado às reformas da educação e de terem permitido a abertura indiscriminada de faculdades.
 

Pode descrever o que é, actualmente, o «universo» AMI?

A AMI, tendo por base a divisa «por uma acção humanitária global», tem quatro pilares de intervenção: vertente externa, vertente interna, alertar consciências e ambiente. A nível internacional, estivemos em cerca de 68 países, seja em emergência, desenvolvimento ou apoio a iniciativas locais, e mantemos projectos em 44 nações. A nível interno, que passa pela luta contra a exclusão social em Portugal, a AMI tem 11 equipamentos sociais a funcionar no País, dos quais, 9 centros «Porta Amiga» e 9 alojamentos para os sem-abrigo. Do lado ambiental, após termos começado com as campanhas de recolha de radiografias, estendemos essas campanhas à reciclagem de bens consumíveis (toner’s, telemóveis, óleos usados, etc.), com o dinheiro daí resultante a ser investido em projectos sociais da Instituição – devo registar que a AMI foi galardoada pelo Ministério do Ambiente, no final de 2008, pelo mérito de associar a reciclagem de materiais perecíveis a projectos sociais no terreno. Finalmente, o quarto e último pilar em que eu, porventura intervenho com maior acutilância (apesar de intervir em todos, sou uma espécie de «chefe de orquestra» desta casa), chama-se alertar consciências para direitos humanos, doenças esquecidas, conflitos, etc. No fundo, procuramos contribuir para um mundo mais equilibrado, mais sustentado, onde a democracia e a paz se afirmem, de forma mais duradoura.
 

Fundou a AMI em 1984 depois de ter estado na organização dos Médicos Sem Fronteiras, em França. Qual foi o clique que o fez abandonar a carreira médica em Bruxelas para abraçar as causas humanitárias?

Eu era docente universitário em Bruxelas das disciplinas de Biologia e Anatomia Humana e especialista dos hospitais académicos da capital belga, na medida em que tenho duas especialidades médicas, sou cirurgião-geral e urologista. Numa reportagem feita pela RTP, pelo jornalista Barata-Feyo, no Chade, em 1983, ele perguntou-me se estaria disposto a fundar em Portugal uma organização nos moldes dos Médicos Sem Fronteiras, ao que eu respondi afirmativamente ao seu desafio, até porque não me canso de realçar o passado humanista de Portugal, que considero o verdadeiro impulsionador da globalização. Na sequência da reportagem, o ministro da Saúde de então, Maldonado Gonelha, contactou-me e eu vim até Portugal, país que desconhecia, pois apesar de ser de nacionalidade portuguesa, nasci em África. A carreira no centro universitário de Bruxelas era uma auto-estrada, enquanto esta aventura humanitária na AMI era um carreiro de areia. Escolhi esta segunda hipótese, que se tornou o objectivo da minha vida. Hoje, não tenho dúvidas, acertei ao preferir o terreno à academia.
 

Em quantas acções humanitárias esteve ao longo da sua carreira?

Eu estive em 74 países, considerando as acções de operativo que exerci ao serviço dos Médicos sem Fronteiras. Por norma, estou sistematicamente fora do País, em média, de 15 em 15 dias. Posso, por alto, estimar que tenha participado, em 30 anos de acção humanitária, em para cima de 250 missões, como cirurgião.
 

Relata que o momento mais marcante, em termos pessoais, foi o disparo do atirador-furtivo em Beirute que quase lhe custou a vida. Consegue identificar o episódio mais punjente do ponto de vista humano?

Sem dúvida, pelo drama humanitário tremendo, a intervenção no Ruanda em 1994, nos campos de refugiados, no seguimento do genocídio. Depois dessa, o Sri Lanka, pós-tsunami, as Honduras, pós-ciclone Mitch, a guerra civil de Angola, etc. Sem esquecer a missão no Chade, no fundo que deu origem à AMI, e a primeira de todas que eu fiz, a guerra Irão-Iraque, em 1981.
 

O gabinete da sede da AMI onde gravamos esta entrevista está repleto de artefactos e objectos recolhidos ao longo de décadas de missões. Que situações e pessoas em concreto relembra com mais frequência?

Os rostos de crianças marcaram-me sempre nas minhas missões. No último livro que publiquei, «Imagens Contra a Indiferença», estão retratadas pessoas, nomeadamente uma jovem que vai morrer e que não pude salvar, num campo de refugiados na fronteira entre o então Zaire e o Ruanda. Ou então, crianças abandonadas em orfanatos da República da Moldávia e da Roménia de Ceaucescu, que podiam, perfeitamente, ser minhas filhas. Se algo me choca, sobremaneira, nestas situações é o sofrimento das crianças. Veja o recente conflito na Faixa de Gaza que ceifou milhares de vítimas, muitas delas crianças. Os políticos jogam com a vida das pessoas como se de peões num tabuleiro de xadrez se tratassem.
 

Define-se como «um gestor de boas vontades, despertador de consciências e um grande pedinte». Considera-se um cidadão do mundo que reage à intolerância com o seu inconformismo?

Eu tenho a minha imagem (ainda que incompleta) do mundo. Sou um inconformado perpétuo e sigo o que dizia a minha amiga Sophia de Mello Breyner: «Não há nada mais triste do que um homem acomodado». Faço questão de não o ser até morrer. Peço a quem pode e em nome dos que não têm rosto e voz. De alguma forma sou um revoltado, pois não aceito que em nome das razões de Estado ou do «politicamente correcto», aconteçam catástrofes, genocídios ou matanças como aquelas que há três décadas acompanho de perto.
 

No átrio da sede da AMI, existe uma placa com a seguinte inscrição da sua autoria: «as duas doenças mais graves do mundo actual são a intolerância e a indiferença». Até quando pode durar o combate a estas «maleitas»?

É um combate que vai demorar séculos. Mas se se alterar o paradigma das relações humanas, vamos diminuir drasticamente o sofrimento. Acredito que com um esforço de sensibilização tremendo, com mais ética, valores, princípios e mais respeito pelo Direito Internacional e pelo ambiente, podemos erguer uma sociedade mais pacífica, por isso, menos violenta. O que me insulta, enquanto ser humano, é pensar que no século XXI, se continuem a perpetrar genocídios e outros estão em curso, alguns silenciosos, no Congo, no Sudão, no Zimbabué, na Tchetchenia, etc. Parece que o homem teima em não aprender nada com a História. É tempo de parar e escutar os gritos que se ouvem por aí.
 

Muito do que se passa no mundo acontece devido à influência americana. Pensa que a administração Obama vai conseguir apaziguar focos de conflitos nascidos na última década?

Pior do que foi feito por Bush é impossível. O presidente Obama não vai deixar de seguir a linha estratégica mestra dos Estados Unidos desde há 100 anos, com McKinley, de preservar o império norte-americano como potência hegemónica. Há 3 eixos fundamentais que se manterão inalterados: a questão petrolífera, a questão armamentista e a aliança incondicional e acrítica com Israel. Se mexer nesses campos, a vida pode correr-lhe muito mal. Onde Obama vai fazer uma mudança, mesmo que gradual, será nas matérias sociais e ambientais. Devido às suas raízes, penso que vai empenhar-se algo mais na resolução das tragédias e misérias do continente africano.

Num período de dois meses, os estados e os bancos centrais avalizaram para o sistema financeiro cerca de 3 biliões de dólares, para estabilizar o desnorteado sistema financeiro, o que corresponde a cerca de 10 vezes o dinheiro que teria sido necessário em 15 anos, para se lograrem os 8 objectivos do milénio, traçados na assembleia geral da ONU, em Nova Iorque, em 2000. Por falta de verbas e empenho, esses objectivos não foram atingidos (nem em 2050, eles serão alcançados) e os estados mais frágeis ficaram mergulhados num coma profundo.
 

A luta por recursos hídricos e alimentares promete ser uma das guerras deste século. A ONU classificou recentemente a crise alimentar como um «tsnumani silencioso». Como a avalia?

O «tsunami silencioso» já está em curso. Todos os anos, as doenças ditas esquecidas, matam, nos países em vias de desenvolvimento, entre 15 a 17 milhões de pessoas. A indústria farmacêutica não investe nas patologias que matam nesses países, preferindo apostar em fármacos úteis aos países mais desenvolvidos, onde existe maior poder de compra. A fome e a falta de água serão temas decisivos nos próximos 50 anos. Estou em crer que vão provocar centenas de milhares, para não dizer milhões, de refugiados climáticos, com as oscilações entre secas, chuvas torrenciais, inundações, subida do nível da água do mar, abandono de ilhas ao nível do Índico e do Pacífico, etc.
 

A água vai ser o recurso mais disputado do século?

O consumo a que hoje estamos habituados não pode ser extensivo a todo o Planeta. E, não é por acaso, que boa parte da população mundial ainda não tem acesso a água potável e a situação tende a agravar-se. A movimentação de pessoas em busca de recursos hídricos vai ser inevitável.
 

Pronunciou-se o fim dos alimentos a baixo custo. Que consequências estima com a inflação alimentar?

A inflação no custo dos alimentos decorre de vários factores: alguns grandes produtores, como a Austrália ou a Argentina, tiveram condicionantes climáticas; as matérias-primas e terrenos são utilizados para biodiesel, não acautelando dois princípios básicos – não podem ser utilizados para biocombustível alimentos que sejam de uso para homens e os animais, da mesma forma que não podem ser utilizados terrenos de cultivo que sirvam para alimentação de homens e animais. Já para não falar na especulação tremenda sobre os alimentos. Finalmente, alguns pseudo-científicos, tendem a escamotear esta questão por estarem ao serviço das grandes empresas agro-alimentares: os alimentos geneticamente modificados (soja, milho, etc.) não permitem a sua auto-reprodução. E isso exige que os agricultores que enveredaram pela compra dessas sementes estejam dependentes, anualmente, da sua aquisição, impossibilitando-os de plantar a semente no ano seguinte. Este caldo faz com que a questão alimentar, hídrica e climática se vá converter na grande tragédia da Humanidade. Mas como sou um optimista inveterado penso que a geração dos meus filhos (visto que a minha não esteve à altura das responsabilidades e rapidamente se acomodou) por opção própria ou por obrigação, será mais interveniente.
 

Fome e pobreza têm uma ligação muito forte com corrupção, iliteracia e ignorância. A quem interessa que boa parte do mundo assim permaneça?

Constato, com os meus 57 anos, e depois de tudo o que vi, que há planos elaborados para que uma parte do mundo veja diminuir as suas populações e não tenha determinado desenvolvimento porque as reservas estratégicas servem, apenas, uma minoria. Está demonstrado que se toda a população do universo tivesse a pegada de consumo de nós, portugueses, seriam precisos dois planetas. Se tivesse a dinâmica dos americanos, seriam precisos quatro planetas. A menos que nós ocidentais aceitemos restringir o nosso próprio consumo e modo de vida, estamos perante um problema quase insolúvel. Pelo que observo no terreno, considerando a crise mundial que vai afectar os mais pobres, estou em crer que hoje, em gabinetes de estudo e «torres de marfim», onde os sentimentos humanistas não moram, gizam-se estratégias no sentido que a população diminua e certas franjas do nosso Planeta não tenham hipótese de desenvolvimento, porque a Terra não comporta tal ritmo de consumo. A manutenção de uma corrupção desenfreada, nomeadamente sub-sahariana, é uma das causas essenciais do não desenvolvimento desses países.
 

O que conta parece mais próprio de um filme...

Não tenha dúvida do que digo. Penso que há outros gabinetes que estão ansiosos por verem descongelar o Alaska e o Pólo Norte, por razões puramente economicistas e de preservação de privilégios, não vislumbrando a tragédia planetária que isso acarreta. No Alaska, sem gelo, a exploração petrolífera será muito mais facilitada, enquanto que no Pólo Norte, seriam permitidos trânsitos por via marítima muito mais baratos do que a passagem através do Canal do Panamá.
 

A teoria de Malthus (assente na tese de que o crescimento populacional acarretaria a falta de recursos alimentares para população) está a cumprir-se 300 anos depois?

Parcialmente. Josué de Castro, antigo director geral da FAO, dizia no seu famoso livro «A Geopolítica da Fome» que o Planeta Terra com o solo arável que dispõe, bem produzido, daria, perfeitamente, para alimentar entre 13 a 15 mil milhões de pessoas. Estamos em metade dessa população. Não é possível fazer melhor quando uma parcela extremamente rica do Planeta quer preservar os seus exagerados hábitos de consumo. A Ronda de Doha, iniciada em 2001 e que permitiria abrir um comércio mundial com regras mais equitativas, está enterrada, segundo as declarações do director da Organização Mundial do Comércio. Iremos continuar a assistir a um fosso maior entre o hemisfério norte e sul e mesmo dentro das próprias sociedades, os 20 por cento dos mais pobres ficarão mais pobres, comparando com os 20 por cento dos mais ricos.
 

Em Portugal, vive-se uma situação de emergência. Sociedade civil e partidos políticos podiam, com vontade e mobilizados, fazer mais?

A nossa sociedade civil, em comparação com as congéneres europeias, é muito débil. Por outro lado, a nossa classe política ainda vê no reforço da sociedade civil um contra-poder que ameaça a sua hegemonia, em vez de ver um aliado estratégico. Devia entender que sem uma sociedade civil que seja um dos três pilares essenciais do Estado não há possibilidade de uma verdadeira democracia e de desenvolvimento. É curioso ouvir certos comentadores que questionam a legitimidade da sociedade civil, porque não eleita, mas não fazem o mesmo quando se pronunciam sobre o poder das empresas e de organizações multinacionais, como o FMI, a OCDE, o G-8, etc.
 

Sem uma sociedade estruturada e com vitalidade o País não progride?

Sou um defensor acérrimo do reforço do pilar da cidadania. Só com três pilares fortes e que se inter-relacionem, é que o Estado pode ser verdadeiramente democrático: a saber, os tradicionais poderes democráticos, a gestão transparente da coisa pública e o pilar da cidadania – com ênfase nos deveres, sobretudo estes, para com a sua sociedade e não apenas centrado nos direitos, que, invariavelmente, conduzem às derrocadas como as que estamos hoje a viver.
 

O risco de pobreza atinge 18 por cento dos portugueses, mas sem subsídios esse número pode chegar a 40 por cento. Que tipo de solicitações chegam à AMI?

Há famílias a sacrificarem a alimentação para pagarem prestações várias. De todos os extractos. Licenciados, empregados, mas com salários reduzidos, sobreendividados. Há de tudo. Os relatos que oiço dos nove centros Porta Amiga da AMI identificam uma nova franja da população está a recorrer aos nossos serviços de forma envergonhada. O aumento da frequência aos nossos centros aumentou 20 por cento, só no último ano, e o perfil de quem nos procura também está a mudar. Lembro-me do caso de uma professora primária que teve necessidade de recorrer à AMI, mas que escapava ao quadro normal dos nossos utentes, pois apresentava-se vestida de forma diferente do habitual. Casos como este vão multiplicar-se, pois devemos estar bem cientes que o desemprego vai aumentar. E com este, aumenta a precariedade de vida.
 

Os donativos reduziram-se. Como é que se ajuda os outros com menos apoios?

Essa é uma questão central que se vai levantar em 2009. O peditório de rua do ano passado correu bastante bem, mas os donativos avulsos anuais têm tendência para diminuir. A classe média e média baixa é, geralmente, a que mais contribui. Por azar, tem sido este estrato a apertar o cinto. O reflexo nos donativos é óbvio. Faço daqui um apelo a todos os portugueses para que entendam que a questão da pobreza e da exclusão social deve ser vista como uma causa nacional. Não tenhamos vergonha de o assumir. Sinceramente, acho que não há nenhum governo que tenha os meios para acabar com o flagelo. Creio que só se conseguirá dar a volta com uma mobilização e motivação nacionais.
 

Mas os portugueses motivaram-se, no passado, para outras causas...

É verdade. Dos meus tempos de residente no centro da Europa, lembro-me que a França todos os anos definia uma causa nacional. Em Portugal, temos várias que podíamos abraçar: a educação, a justiça, a saúde, a política externa, etc. Mas há uma essencial, que mais nos penaliza e mais prejudica o Estado no seu todo, que é a da pobreza e da exclusão. Prioridade absoluta para ela, gerando à sua volta um esforço colectivo mobilizador. Sem preconceitos. Olhem todos para os seus amigos e vizinhos. Há muita gente que vive mal e está a ser afectada por este problema estrutural que se arrasta há tempo demasiado.
 

O momento é, igualmente, complexo e tumultuoso no sector educativo. Por que é que falha a escola na sua missão?

Não sou especialista na matéria, - apesar de ter quatro filhos em idade escolar – mas creio que no nosso País houve reformas em excesso. Cada ministro da educação quis deixar o seu nome para a posteridade associado a uma reforma. Isso criou uma grande instabilidade no sistema de ensino. Creio que tem faltado sensibilidade e bom senso. Mais importante do que as reformas, é o conteúdo e a forma como são apresentadas. Tal como, tão importante como um rebuçado, é o papel que o envolve.
 

Aponta o dedo em especial aos políticos?

Por incapacidade do Estados e dos sucessivos governos, foi-se incapaz de analisar as necessidades do País com a abertura desmesurada de faculdades. Actualmente, vive-se uma situação de pré-ruptura no que diz respeito aos médicos. Oiço falar na contratação de médicos na reforma e o recrutamento de clínicos em países tão distantes como o Uruguai ou o Paquistão. A classe médica está envelhecida. Porquê? Ao longo dos últimos 15 anos, os responsáveis não se reuniram para acautelar e prever as necessidades do País relativamente a este quadro. Definiu-se um «numerus clausus» sem nexo. Obrigou-se milhares de jovens competentes a emigrar, devido às médias estapafúrdias exigidas. São profissionais que dificilmente regressarão, até porque carregam dentro de si a mágoa de pertenceram a uma pátria que os destratou. O panorama é este.
 

Fala com um grande desencanto...

Mais uma vez ninguém será responsabilizado por má gestão. Algo tem de ser estruturado, de uma vez por todas. Entendo que o que peca em Portugal é a organização e o planeamento estratégico. Com reflexos em todos os sectores e também na educação.
 

É legítimo falar-se de uma geração enganada?

Ainda há pouco li um artigo de um jovem no jornal que acusava a minha geração de os ter maltratado e ignorado. Há milhares e milhares de licenciados que não se enquadravam nas necessidades reais do País (por exemplo, em Relações Internacionais) mas foi permitida a abertura de faculdades de forma indiscriminada. Só faltava inventar a licenciatura em engenharia do prego. Perante isso, esta geração tem razões de queixa e já não entende que por patriotismo tem que permanecer por cá e vai para onde lhe derem mais oportunidades.
 

Acha que se podem repetir os acontecimentos de rebelião urbana na Grécia fruto do descontentamento social?

Não é impossível que se repitam os episódios da Grécia e também da Islândia. Depende, sobretudo, do grau de frustração e desespero dos jovens. Oiço repetidamente que somos um povo de brandos costumes. Somo um povo que fomos habituados a ser carneiros, a viver na dependência do Estado, subserviente, medroso, com auto-censura, com hábitos de delação – a noção do «bufo» do antigo regime. No fundo, os portugueses têm um poder de encaixe muito grande. Porventura, é essa a nossa grandeza e a nossa miséria.
 

D. João II é a sua referência histórica. Faz falta uma personalidade deste calibre?

Creio que desde que faleceu, em 1495, começou o declínio de Portugal, por ter deixado de existir visão estratégica. A divisa dele era muito simples: «Pela lei e pelo povo». Sem estes valores, começou o fartar vilanagem. Basta fazer uma breve revisão histórica, desde D. Manuel I, para perceber isso. Quando D. João V faleceu, os cofres do Estado estavam vazios ao ponto de não haver dinheiro para pagar o seu funeral. Em vida, até quadros com molduras cravejadas de pedras preciosas mandou para os cardeais romanos...
 

O problema da falta de liderança não é de hoje...

Quando as lideranças dos deveres são substituídas pelas lideranças, apenas e só, dos direitos, as derrocadas são sempre inevitáveis. Trata-se de uma lição que foi válida para as monarquias e é válida para as repúblicas. É fundamental passar uma mensagem crucial para a nova geração: para ser-se líder de um país, de um banco, de uma empresa, é preciso, sobretudo, ter-se deveres. As lideranças habituaram-se a viajar em aviões de luxo e a frequentar restaurantes chiques. Entraram em levitação estratosférica. Distanciaram-se do povo.

Nuno Dias da Silva

 

 

 

Cara da notícia

Fernando Nobre nasceu em Luanda, em 1951. Em 1964, mudou-se para o Congo e, três anos mais tarde, para Bruxelas, onde estudou e residiu até 1985, altura em que veio para Portugal, país das suas origens paternas. É Doutor em Medicina pela Universidade Livre de Bruxelas, onde foi assistente, e especialista em Cirurgia Geral e Urologia. É Doutor Honoris Causa pela Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa e Académico Correspondente da Academia Internacional de Cultura Portuguesa. É membro do Conselho Geral da Universidade de Lisboa e do Conselho Geral da Universidade da Beira Interior e docente convidado (em Mestrados e Pós-Graduações) nas Faculdades de Medicina de Lisboa, Coimbra e Minho, na Universidade Autónoma de Lisboa, no Instituto de Estudos Superiores Militares e no Instituto Superior de Ciências Policiais e Segurança Interna.

 

 

 

Memórias do "homem
que empurra o mundo"

À parte da conversa fluida e rica em experiência vivida por ter corrido as sete partidas do mundo, são os objectos pessoais de Fernando Nobre que magnetizam o olhar de um estranho que pela primeira vez entra no seu gabinete, nas instalações da AMI, em Marvila. Um pedaço do muro de Berlim, uma pedra de Chernobyl, um cachecol timorense, são alguns dos mais emblemáticos artefactos que mostra com indisfarçável orgulho. Sem esquecer, a recordação familiar que o filho Alexandre lhe ofertou em 1999, uma estatueta que baptizou como «o homem que empurra o mundo», em homenagem ao seu pai.


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