CRÓNICA
Memória Selectiva

É provável que faça parte daquele grupo
humano que reivindica o dom, ou simplesmente a lábia, de ter memória
selectiva. Era suposto lembrar-me dos pormenores dos eventos que
determinaram o meu estatuto de cidadão imaculado e cumpridor dos mais
nobres valores da minha estirpe, mas não, nem de perto, nem de longe.
Claro que, ao longo da vida, nem sempre nos lembramos de anotar com
precisão o que é ou o que vai ser importante para o resto da nossa
efémera existência. Por outro lado, só é realmente assumido como
relevante o que à posteriori constatámos que assim foi. Sem essa
comprovação, as coisas são o que são nesse momento e nessas
circunstâncias e… logo se vê.
Lembro-me de pormenores tão pueris como do primeiro jogo de berlinde que
ganhei, que deu lugar a uma violenta discussão com o adversário incapaz
de assumir a derrota. Dito de forma simples, apertei-lhe o papo até o
desgraçado vomitar o seu orgulho e o abafa em jogo. Era de vidro
cristalino, listado como um arco-íris e enorme. Coisa para custar mais
de dez tostões. Durante algum tempo só eu tive tamanha preciosidade, até
que outros jogos e vaidades impuseram as suas leis.
Foi na Devesa, à saída da escola. Ele vestia uma gabardina
exageradamente comprida, já surrada de lama nas bainhas de tanto
esfregar o chão e eu uma canadiana que me dava pelos joelhos e se
abotoava com umas cordinhas brancas, em forma de infinito, entrelaçadas
em botões semelhantes a pipas de madeira.
Mas nem todas as memórias têm esta nitidez e precisão. Não digo que
sejam de episódios mais importantes ou que, de forma impressiva,
pudessem condicionar o meu futuro imediato ou a longo prazo, mas na
verdade não recordo um avo duma boa parte de acontecimentos, dos quais
apenas guardo algo como uma foto ou um bilhete postal, estático e de
diminuta legenda…
Apesar disso, não creio que valha a pena a auto censura, do género não
te lembras porque não te convém ou alguma fizeste para te esqueceres
dessa maneira. Opto antes pela tese o que for soará. Por outro lado,
acredito que qualquer psiquiatra me faria imediatamente o boneco, mas
assim não teria graça nenhuma e, no fundo, isto nem sequer é uma queixa.
Em seu tempo, fiz também a minha semana de campo militar. Era o fim
incontornável da instrução de três meses e, a avaliar pelo que nos
transmitiam, o golpe de asa para todos os filhos da pátria. A partir
dali era o futuro auspicioso, a honra e o serviço dedicado à causa
comum.
É claro que tudo isto tem que se lhe diga, designadamente a "causa
comum", que é uma espécie de conceito que se vai transmitindo pela
hierarquia abaixo até não fazer sentido, em escusado esbanjamento do
léxico castrense, já por si limitado e grosseiro.
Com efeito - e aqui chegámos, finalmente - apenas tenho de memória
daquele fim de etapa obrigatório para todos os mancebos da época, no
caso, para os incorporados na segunda de setenta e três, o facto de me
ter calhado em sorte uma tenda com metro e meio de comprido, e todas as
manhãs acordar completamente ensopado dos joelhos para baixo.
Que memória a minha!
João de Sousa Teixeira
teijoao@gmail.com
CONTRABAIXO
Xutos e Pontapés

Um dos aspectos mais interessantes de uma
actividade que implique o contacto com personalidades que viajam
constantemente um pouco por todo o mundo, é o de termos acesso a
informação vivida na primeira pessoa. Claro que há a Internet e o
telefone, mas é sempre outra coisa com a presença física. O olhar, os
sorrisos, o ritmo da fala e os silêncios que só acontecem desta forma.
Uma das linhas de coincidência das últimas conversas que mantive com
vários artistas de primeiro plano, como os membros do TAKÁCS QUARTET e a
pianista ELISSO VIRSALADZE, é a da crescente dificuldade em cativar
público para concertos de música erudita. E não, não se trata de
Portugal. Deram-me exemplos de salas em países como França, Alemanha e,
nos Estados Unidos, com o problema do envelhecimento do público sem se
estar a conquistar uma audiência mais jovem.
Outra tendência é a diminuição da antecedência com que os contratos são
assinados com os programadores. Onde era habitual um prazo nunca
inferior a um ano, agora confirmam-se concertos a seis, cinco ou até
mesmo menos meses da data de realização do espectáculo. Estas alterações
colocam em evidência, por um lado, uma crescente dificuldade em garantir
os financiamentos para as actividades culturais e, num outro sentido,
uma avassaladora competição entre pares e com outros meios que captam a
atenção dos públicos. Uma das razões para a dificuldade de financiamento
é a crescente concentração de recursos em grandes acontecimentos,
altamente mobilizadores em muitos dos casos, mas que secam quase tudo à
sua volta.
Mas contam-me também estórias como a do empresário na longínqua Samara,
na Rússia, onde o dito, só porque gosta de ouvir boa música, resolveu
promover a construção de uma excelente sala de concertos e de patrocinar
uma programação de alto nível. Haja esperança, pois então!
Eu tenho pouca. Estamos agora mesmo em confronto com a avassaladora
omnipresença do futebol, à conta do Europeu, da Selecção, das bandeiras
Made in China, do melhor do mundo e sei lá mais o quê. E mesmo para
quem, como eu, gosta de ver um bom jogo isto não só é demais como
tresanda a ópio para toda uma sociedade já de si adormecida. Liga-se a
televisão e é o que se vê. Ouve-se a rádio e é difícil fugir ao tema.
Mesmo nos jornais ditos de referência, lá está ele, como se de o centro
do mundo se tratasse. Dizem-me que é fácil. Se não gosto, mudo-me. Mudo
de canal, de estação, de jornal. Só que todos sabem que não é assim tão
simples.
O que nós precisamos é de empresários como o de Samara e não de clones
de Abramovich. Mesmo quando este último se põe a licitar valores recorde
por obras de arte sobre as quais não faz a mínima ideia do real valor.
E quando a grande pianista Elisso Virsaladze me diz chegou a tocar em
pianos verticais simplesmente porque eram o melhor piano que havia na
região e o respeito pelo público é o mais importante, percebo que temos
de ter muito cuidado com estes xutos e pontapés. Que me desculpem os
homónimos...
Carlos Semedo
carlossemedo@gmail.com
OPINIÃO
Cartas desde la
ilusión
Querido amigo:
Se dice que “lo prometido es deuda”, y como te prometí contarte la
narración de “La vasija”, ahora mismo te la relato. Dice así:
Un cargador de agua de la India tenía dos grandes vasijas que colgaban a
los extremos de un palo y que llevaba encima de los hombros.
Una de las vasijas tenía varias grietas, mientras que la otra era
perfecta y conservaba toda el agua al final del largo camino a pie,
desde el arroyo hasta la casa de su patrón; pero cuando llegaba, la
vasija rota sólo tenía la mitad del agua.
Durante dos años completos esto fue así diariamente.
Desde luego la vasija perfecta estaba muy orgullosa de sus logros, pues
se sabía perfecta para los fines para los que había sido creada.
Pero la pobre vasija agrietada estaba muy avergonzada de su propia
imperfección y se sentía miserable porque sólo podía hacer la mitad de
todo lo que se suponía que era su obligación.
Después de dos años, la tinaja quebrada le habló al aguador diciéndole:
- Estoy avergonzada y me quiero disculpar contigo porque, debido a mis
grietas, sólo puedes entregar la mitad de mi carga y sólo obtienes la
mitad del valor que deberías recibir.
El aguador, sin perder la calma, le dijo compasivamente:
- Cuando regresemos a la casa quiero que notes las bellísimas flores que
crecen a lo largo del camino.
Así lo hizo la tinaja, y, en efecto, vio muchísimas flores hermosas a lo
largo del trayecto; pero de todos modos se sintió apenada porque al
final, sólo quedaba dentro de sí la mitad del agua que debía llevar.
El aguador le dijo entonces:
- ¿Te diste cuenta de que las flores sólo crecen en tu lado del camino?
Siempre he sabido de tus grietas y quise sacar el lado positivo de ello.
Sembré semillas de flores a todo lo largo del camino por donde vas, y
todos los días las has regado, y por dos años yo he podido recoger estas
flores para decorar el altar de mi Madre. Si no fueras exactamente como
eres, con todos tus defectos, no hubiera sido posible crear esta belleza.
Siento haber agotado prácticamente todo el espacio de que dispongo. Pero
aún me quedan unas líneas para invitarte a reflexionar un poco. Esta vez
la aplicación del ejercicio tiene que repercutir sobre nosotros mismos.
De vez en cuando es bueno detenernos y pensar sobre lo que somos (¡casi
siempre pensamos y reflexionamos sobre lo que hacemos!).
Es importante que caigamos en la cuenta de que cada uno de nosotros
tiene sus propias grietas. Todos somos vasijas agrietadas, pero debemos
saber que siempre existe la posibilidad de aprovechar las grietas para
obtener buenos resultados. Esto es válido no sólo para nuestros alumnos,
sino también para nosotros mismos.
En relación con nuestros alumnos, he aquí el reto. ¿Seremos capaces de
sacar el máximo provecho de sus “grietas”? Yo creo que una respuesta
afirmativa a esta pregunta mostraría a una/un auténtica/o educadora/or
que es capaz de llevar a cabo el mejor proyecto educativo que se puede
imaginar en nuestra sociedad.
Un abrazo, con mis mejores deseos de “salud y felicidad”. 
Juan A. Castro
juancastrop@gmail.com
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