Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XI    Nº123    Maio 2008

Entrevista

ANTÓNIO PEDRO VASCONCELOS, REALIZADOR DE CINEMA, PROFESSOR E COMENTADOR

"A intervenção do Estado no cinema é nefasta"

NA política de intervenção do Estado no cinema português é absolutamente nefasta e inadmissível num país democrático. A opinião é do realizador António Pedro Vasconcelos, que crítica, em entrevista ao Ensino Magazine, a política de financiamento à produção de filmes portugueses. Sobre o seu último filme, Call Girl, o realizador mostra-se satisfeito com a forma como ele comunica com o público.

Adepto do Benfica, o realizador, que só filma no período de defeso dos campeonatos de futebol, diz que é necessário criar estabilidade no clube e espera que Rui Costa tenha a autonomia suficiente para fazer a limpeza que ele necessita.
 

Call Girl é já um sucesso de bilheteira. Considera-o um dos seus melhores filmes?

Tenho sempre dificuldade em fazer uma valorização relativa dos meus filmes. Cada um correspondeu a uma fase da minha vida. Tenho uma relação com os meus filmes que tem a ver com o parto, com a maneira como eles nasceram. Depois há o acolhimento do público, e aqueles que têm, de facto muito acolhimento, ficamos com a ideia de que correram melhor. Mas há também a ideia do «patinho feio». Eu tenho tendência a ter mais afectos pelos filmes que correm pior. Por tudo isto é difícil dizer se o Call Girl foi o meu melhor filme. Penso que tem alguns aspectos que os anteriores não possuem, onde há mais densidade e frequência de cenas fortes. É também um filme que comunica bem. Como todos os contadores de histórias, tenho a preocupação de saber se aquilo que estamos a apresentar é entendido pelo público. Nós somos contadores de emoções e se fizermos uma comédia e não conseguirmos fazer rir o público, ou um melodrama e não o fazermos chorar, é porque falhámos. Nesse sentido, o Call Girl correu muito bem, houve uma boa comunicação com o público.
 

Já referiu, por diversas vezes, que produz os filmes para quem os quiser ver. Isso significa que não há uma elite para os seus filmes?

O meu público é vastíssimo. Dou tanta importância à opinião do crítico, como àquela que a minha porteira me transmite. O filme é feito para um público anónimo, que eu não conheço, e não para os amigos. Há dois critérios para avaliar a importância de uma obra, seja ela qual for: a universalidade e a plenitude. São coisas difíceis de medir. Um filme ou uma obra de ficção que não interaja com o seu tempo, que não comunique com a sociedade é uma obra falhada.
 

Neste seu último filme a Soraia Chaves desempenha um dos papéis principais. Quando decidiu realizar esta longa metragem ela foi a actriz que idealizou para aquela personagem?

Não, quando escrevi o filme com o Tiago Santos ainda não sabia que a Soraia Chaves existia. Isto foi escrito para uma actriz imaginária. E quando, finalmente, começámos a pensar fazer o filme surgiu um problema: tinha escrito um papel para uma actriz que não existia em Portugal. Entrei um pouco em pânico, por isso. Felizmente vi um filme que ela tinha feito, «O Crime do Padre Amaro», e pareceu-me que ela poderia ser a minha salvação. Só que tinha um inconveniente, era muito nova – o papel era para uma mulher mais madura -, e uma dúvida: não sabia como ela iria responder como actriz. Estamos a falar de um papel muito exigente e complexo, que exigia uma mulher com atributos e qualidades várias, desde a sensualidade, elegância, classe ou um misto de capacidade de metamorfose e de frieza. Tive que testar a Soraia Chaves para saber se ela estaria à altura de representar o papel. Depois de ter feito um ou dois testes apostei nela e foi uma aposta ganha. Os atributos visíveis eram fáceis de reconhecer, os invisíveis como o seu talento como actriz foram provados. Fiquei bastante satisfeito.
 

Esta é a sua sétima longa metragem. Certamente gostaria de ter feito mais. Porque é que isso não aconteceu?

Gostaria de ter feito uns 20 ou 30 filmes. Acontece que sou português e vivo em Portugal, um país que não tem indústria e onde há muita gente que não quer que ela exista. Portugal está fechado sobre si mesmo, nem sequer com Espanha há cooperações. Tudo isto é agravado com uma política de intervenção do Estado no cinema, que é absolutamente nefasta, gravosa e inadmissível num Estado democrático, a que eu chamo de soviética. Esta é uma herança do «marcelismo», com o Estado a chamar a si a política do gosto, que não pratica noutras artes. Ou seja, no nosso país não há júris para decidir quem é que deve escrever ou pintar, mas há júris para decidir quem é que filma.
 

Isso significa que os realizadores são obrigados a recorrer aos subsídios para poderem realizar os seus filmes?

Infelizmente é verdade. Isto porque a política existente cria um distanciamento entre o público e o cinema, o que faz com que nenhum investidor privado invista. Por outro lado, os distribuidores, primeiro, e os canais de televisão, depois, foram obrigados a investir no cinema, só que esse dinheiro é gerido pelo Estado, o que afastou as televisões e os distribuidores, que eram as primeiras janelas para dar visibilidade aos nossos filmes, tornando-os inimigos do cinema nacional. Isto porque eles sentem que o dinheiro lhes é retirado para depois ser distribuído pelos realizadores e produtores, de uma maneira completamente arbitrária.
 

Nesse sentido para onde caminha o cinema português?

O cinema português já bateu no fundo. Em anos normais, excepto quando há um fenómeno que consegue mais de 200 mil espectadores, como felizmente aconteceu com o Call Girl, a frequência de portugueses que vêem filmes nacionais é 50 vezes inferior à média europeia. E a média europeia é já por si baixa. Estamos numa situação de catástrofe, pois foi criada uma situação de parasitismo, em que os beneficiários não querem que o sistema mude. E neste momento não vejo nenhuma vontade política de mudar esta situação. Por isso sou muito pessimista quanto ao futuro do cinema em Portugal.
 

Considera-se, portanto, um outsider?

Sim. Não só sou um realizador bissexto, porque só consigo realizar filmes de quatro em quatro anos, pois o sistema não me permite mais, como também sou um outsider, já que para sobreviver sou obrigado a deitar mãos a outras actividades. Neste momento, além de professor universitário, e de escrever alguns artigos, sou comentador de futebol. Isso significa que eu só posso filmar no período do defeso, pois não posso estar a filmar e interromper esse trabalho para participar no programa de televisão, no Porto. A acrescer a estas limitações, importa referir que só posso filmar nos anos ímpares, pois nos pares há campeonatos da Europa ou do Mundo. Portanto, enquanto não for normal para o público ter dois ou três filmes no ecrã, com 100, 200 ou 400 mil espectadores, não haverá investidores privados e as televisões estarão de costas viradas para esta indústria.
 

E os alunos que estão em cursos superiores de cinema? São obrigados a emigrar?

Essa é uma questão que eu lhes coloco. Dado o actual estado das coisas, por melhor escola que se consiga criar, é tudo muito difícil. Eu costumo dar o seguinte exemplo: imagine que em Portugal há uma excelente escola de música, que forma grandes pianistas, e que eles quando saem para o mercado de trabalho são obrigados a ir tocar num bar. Um dos factores que me levaram a criar uma escola foi o tentar formar uma nova geração, com uma nova mentalidade, que possa lutar para que se criem mais e melhores condições. E a mudança é fácil de acontecer, pois faz-se por Decreto. Basta que sejam multiplicadas as fontes de financiamento e se diversifique os centros de decisão. Neste momento a única fonte de financiamento é o Instituto de Cinema e Audiovisual (ICA) e o único centro de decisão é também o ICA, onde júris, compostos por cinco indivíduos decidem quais são os filmes que os portugueses merecem ou não merecem ver. E isso é uma aberração num Estado democrático.
 

Mudando de assunto, como benfiquista confesso, o que é que falta ao seu clube para voltar a ganhar títulos?

Em tempos fiz essa pergunta ao meu amigo e saudoso Artur Semedo. E ele respondeu-me: as colónias. E de facto, a época gloriosa do Benfica – embora depois se tenham sucedido outras com presenças em finais europeias e campeonatos ganhos -, foi no tempo do José Águas, Eusébio ou Coluna. Jogadores que vieram das colónias. Numa perspectiva mais séria, poderemos dizer que o Benfica foi vítima do seu sucesso. Isto é: infelizmente o Benfica foi e é tão grande que, no pós 25 de Abril, foi gerido por algumas pessoas incompetentes. No plano do futebol fomos geridos de uma forma amadora, deixou de ter formação, deixou de ter bons olheiros. O caso de Vale e Azevedo é um exemplo típico, onde se conjugou o populismo com os interesses de uma televisão. Neste momento faltam quatro coisas ao Benfica: estabilidade, organização, liderança e competência. E estes quatro aspectos têm que ser consubstanciados com uma direcção que tenha seriedade. Hoje o Benfica recuperou a sua credibilidade com Luís Filipe Vieira, mas houve uma falha no plano desportivo.
 

O Rui Costa é a peça que falta?

Já que foi a pessoa escolhida quero acreditar que sim. No meu entender foi uma solução precipitada e populista, por três razões. Primeiro porque o Rui Costa com as suas qualidades e capacidades ainda jogaria mais um ano. Segundo porque o anúncio foi feito numa altura em que criou perturbação na equipa. Em terceiro porque o Rui Costa é um benfiquista admirável, por quem tenho grande admiração. E tenho receio que ele não tenha a autonomia total, e não possa fazer a limpeza que é necessária no Benfica.

 

 

ANTÓNIO TABUCCHI

Afirma Tabucchi

O escritor italiano António Tabucchi está prestes a lançar um novo livro. São contos sobre o tempo, um assunto sobre o qual diz valer sempre a pena pensar por ser muito mais concreto e precioso do que por vezes se acredita ser.

Em entrevista ao Ensino Magazine recorda a ligação a Portugal, que começou muito cedo com a literatura, mas continuou com as pessoas. Nos anos noventa, Afirma Pereira, um livro que fala de jornalismo, amizade e liberdade, que se passa em Portugal durante o salazarismo, tornou-o ainda mais conhecido entre nós. Sobre a liberdade de expressão e o uso da palavra, defende que esta é a nossa parte mais sagrada, e que censurar a palavra é uma punição demasiado grande para infligir ao Homem.
 

Quando veio pela primeira vez a Portugal, conhecia os fados de Amália e de Alfredo Marceneiro e o poema A Tabacaria de Fernando Pessoa, em tradução francesa. Actualmente é um dos grandes especialistas na obra de Fernando Pessoa e já leccionou língua e literatura portuguesa em universidades de Itália. A poesia de Pessoa foi um ponto de partida?

Mais do que um ponto de partida, Pessoa é um oceano, é um arquipélago, dá para viajar. Constitui no presente vários pontos de partida. É uma poesia universal, e as referências culturais que Pessoa tem são muitas, variadíssimas, e podem levar para muito longe, para outras Literaturas. Não só a Literatura Portuguesa, de que ele é um dos líderes principais, mas também há outros arquipélagos culturais, Inglês, Francês, para não falar da simultaneidade com a qual ele viveu todas as vanguardas europeias da época. Pessoa é simultaneamente português, mas também italiano, francês, no sentido do futurismo, simultaneismo, e todos os ismos que ele criou e viveu. Situou-se plenamente no horizonte internacional.
 

E os seus alunos gostam de Pessoa?

Há uma parte do Pessoa que é mais intelectual e que necessita de uma iniciação. Sobretudo Pessoa mais esotérico, metafísico. No entanto, há também um Pessoa mais amável, - entre aspas -, com o qual se pode ter uma conversa imediata. Sobretudo o poeta Ortónimo do Cancioneiro, o Ricardo Reis, e talvez algumas coisas do Alberto Caeiro, que aparentemente é um poeta bucólico mas que não é absolutamente um poeta bucólico. É um poeta muito complicado do ponto de vista filosófico. Todavia, o texto é inteligível de imediato.
 

O livro Afirma Pereira é também uma bela homenagem à amizade, à liberdade, e aos jornalistas portugueses do antes do 25 de Abril. Pereira deixa de ser um homem só, para passar a ser um homem comprometido com o mundo. Quando se sabe o que está certo, difícil é não o fazer?

Cada um de nós, do ponto de vista ético, do ponto de vista moral, tem um empenho com os outros, não só consigo próprio. Mas quando alguém exerce uma profissão como a do jornalismo, cuja função é realmente informar os outros, o não informar, ocultar a verdade das notícias, constitui efectivamente um crime moral. Pereira, a uma certa altura, responde perfeitamente à deontologia da sua própria profissão.
 

Escreveu o livro Requiem em Português, tem laços afectivos com Portugal e há quem lhe chame «o maior português dos escritores italianos». Como é que acontece essa relação com Portugal?

Graças à Literatura cheguei a Portugal, quando era muito novo. Mas a Literatura não é suficiente. A Literatura é importante, mas as pessoas são mais importantes, obviamente. A minha ligação com Portugal começa com a Literatura e continua com as pessoas. O facto de ter elegido Portugal como meu país também, - ao mesmo nível do meu país natal, - depende das pessoas que eu conheço, das pessoas que eu conheci, e que fazem e fizeram parte da minha vida. Infelizmente algumas já não existem. Enfim, é a vida.
 

Fala do Alexandre O‘Neill e do José Cardoso Pires. Que recordações guarda dessa amizade?

Há recordações muito bonitas, muito intensas, de quem viveu uns anos importantes juntos, de quem acreditou nas mesmas coisas. São as ideias, é a escrita, a Literatura, e partilhar estas coisas significa pertencer a uma comunidade de uma maneira total.
 

Deu aulas em Universidades Italianas. Como é que os alunos universitários italianos veem a língua portuguesa? Têm afinidades com o Português?

A língua portuguesa é uma língua neo-latina, portanto a nível da aprendizagem, situa-se á mesma dificuldade do francês, do espanhol, ou do romeno, mesmo que a fonética portuguesa possa constituir algo mais difícil. De qualquer modo, creio que a Itália é um país que tem um grande interesse pelo mundo lusófono. Portugal, e também os outros países lusófonos, são muito estudados em Itália. Recentemente dei aulas numa universidade de Nova Iorque, sobre literatura, e sobretudo sobre os meus livros, mas uma parte das aulas reservei-as à poesia de Pessoa, e devo dizer que os estudantes americanos também mostraram um extraordinário interesse pela Literatura Portuguesa.
 

Venceu um Prémio de Liberdade de Expressão espanhol - Josep Maria Llado - com um artigo que escreveu sobre a liberdade de expressão para o jornal El Monde, e que depois foi traduzido no El País. A liberdade de expressão é um tema que lhe é particularmente caro?

Creio que sim. A natureza, ou Deus, - para outros, - concedeu-nos este privilégio, que nenhum outro ser vivo tem na terra, que é a palavra. Temos de exercer este privilégio. A palavra é a parte mais sagrada que nós temos, é a expressão profunda do que nós somos. Censurar a palavra, significa infligir ao homem uma punição muito grande.
 

Para além das ideias, os ideias do escritor estão presentes nos seus livros?

Cada um de nós escritor tem uma mala pessoal, uma bagagem de escritor. É óbvio que eu gosto também de descobrir as novidades, e há sempre novidades interessantes. Mas fico fiel aos escritores que representaram a minha formação de escritor, que são o Fernando Pessoa, o António Machado, o Luigi Pirandello, o Conrad, - entre os ingleses, - o Stevenson também, que eu amei muito e continuo a reler muitas vezes. Ler é importante, mas reler também é.
 

«Um grande coração», «uma alma iluminada», um «carácter excepcional» é o que se pede para os homens. E o que é que um livro tem de ser, para ser um bom livro?

Posso responder com uma frase de um escritor latino, Plínio, o Velho, o qual diz: «Nenhum livro é tão mau, que não tenha alguma coisa de bom».
 

Em Portugal está em curso o Plano Nacional de Leitura. Na Itália também foi necessário implementar este tipo de medidas para que os jovens começassem a ler mais?

Acho fundamental os governos e as instituições promoverem a leitura, e fazê-lo através dos meios que os jovem frequentam mais, por exemplo a televisão, os meios audiovisuais. São um incentivo e uma propaganda que pode atingir um público vasto, e dar bons resultados.
 

Devem usar-se as novas tecnologias para incentivar a leitura?

Claro que sim. Por exemplo a internet pode ser um instrumento extremamente válido. Eu sou a favor de todas as modernizações. Neste aspecto, todos os meios têm de ser explorados.
 

Hoje lê-se mais do que há vinte anos atrás?

Acho que sim, e as estatísticas confortam-me nesta opinião. Podem ver-se pequenas vilas com uma livraria aberta, há vinte anos não existia isto. Há uma difusão da rede de livros que se vai expandindo necessariamente e não acho que a internet e o computador sejam negativos neste processo.
 

Existe um próximo livro?

Sim. Estive a escrever nestes últimos tempos e gostaria de voltar a uma medida da narração que eu gostei muito, que é o conto. O conto é uma medida da narração que me atrai muito, porque é preciso tirar-lhe realmente as medidas. Contar uma história em poucas páginas, ás vezes é um desafio e também uma luta contra o tempo.
 

O livro aborda que assunto?

Aborda um assunto que seria muito vasto, que é o tempo. Às vezes pergunto a mim próprio se sou eu que atravesso o tempo, ou se é ele que me está a atravessar. Há várias maneiras de viver o tempo que nos é dado viver, nesta nossa breve vida. Reflectir e pensar no tempo é um argumento importante. Por vezes todos nós, sem nos apercebermos, deitamos fora, abusamos, gastamos o tempo, que é uma coisa muito preciosa, como a água para a terra.
 

Já têm título?

Não tem. É difícil dar um título a contos sobre o tempo. Não queria que fosse um título demasiado abstracto, queria que fosse concreto. O tempo parece muito abstracto, mas na realidade é uma coisa muito concreto.
 

O livro sairá quando?

Escrevo à mão, e preenchi até agora três cadernos, vai ser um trabalhão agora para passá-los a computador - um trabalho físico. Espero poder entregar ao editor depois do Verão.

Eugénia Sousa


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