
Maio 68 & 40 depois
Em Maio de 68 eu estava em Castelo Branco
a curtir uma doce e inesquecível vida proporcionada por um premeditado
preguiçar, a que me permitia o estatuto de pré finalista do Liceu.
Por esse tempo, o nosso grupo de amigos passeava-se entre a pastelaria
Belar e a Avenida Nuno Álvares, numa contestação caseira do possível,
construindo imaginários de mudança, porque a demarcação se nos
apresentava, no mínimo, necessária, já que a festa, aqui e então, se
adivinhava impossível. No limite, fomos apenas observadores distantes
dos acontecimentos de Maio de 68 em França, sorvendo, aqui e ali, os
ecos que a imprensa da ditadura permitia transparecer, ou que ouvíamos
nas roqueiras rádios piratas, tipo Radio Caroline.
Mesmo assim, promovíamos a festa colectiva à nossa medida. O Zé Manel
Castanheira (actual director do Teatro Nacional, mas que na altura
apenas treinava as asas em arquitecturas de artes menores) armou-se em
empresário do nosso grupo de rock que ensaiava na garagem do seu avô,
massacrando os ouvidos à vizinhança. E lá íamos, eu, o Rui Pipas (que me
observa por entre as nuvens), o Quim Teixeira (irmão do João, o
arquitecto, que passava a vida a imaginar esquemas para fugir ao
controlo do pai) e o Dâmaso Filipe (agora ilustre melómano e
proprietário dum restaurante de primeira água em Constância), todos numa
de dar o corpo e a alma pelo nosso conjunto. Registe-se o nome: Clube
21. Grupo para consumo imediato de chás dançantes no salão dos
bombeiros, ou concertos e récitas no Cine Teatro Avenida. A contestação
acontecia quando conseguíamos pôr duas dúzias de miúdas a dançar e a
gritar.
Nos intervalos, e ainda à margem de certa maneira, ouvíamos o Sgt.
Pepper's e o Álbum Branco dos Beatles, íamos ao cinema ver o Peter Fonda
em o Easy Ryder, líamos Mead, Ievtuchenko, Pauwels, Russel, Alegre, Poe,
toneladas de BD e despertávamos para outros mundos com a edição francesa
do Politzer que o Luis Geirinhas tinha suprimido à biblioteca do pai.
Neste espírito de contestação provinciana, à moda dos sixties, ainda nos
deu para produzir e vender um ilegalíssimo jornal/revista, O Êxito de
seu nome, em que se envolveram de corpo e alma o João Carlos Antunes,
mais o Tó Luís Carmona e o Zé Manel Guardado Moreira.
O que lá vai, lá vai. E já lá vão quatro décadas… Mas o que mais
propriamente eu hoje vos queria dizer é que, deste Maio adolescente, à
nossa escala provinciana de País ditatorialmente silenciado, policiado e
em estado de sítio, sobrou para muitos, agora cinquentões de um Maio
mais maduro, o desejo da utopia, o direito à indignação, a necessidade
de alimentar o imaginário, na busca permanente dos novos rumos que
emprestam sentido à vida.
Passados 40 anos, e se todos esforçarmos um olhar com olhos de ver,
todos nós continuamos a partilhar os espaços e os tempos das nossas
escolas com novas gerações de jovens que insistem em acreditar ser
possível sobreviver ao "pântano", apesar de tudo, apesar do sistema que
teima em nos sufocar.
É certo: os jovens de hoje terão outras linguagens, modelaram diferentes
gestos, assumiram comportamentos e gostos diversos. Mas estão aí, no
eterno sobressalto do desencanto com que as desigualdades escolares e
sociais os continuam a marcar. Com a presciência dum futuro intranquilo
que lhes reservou a sociedade pouco utópica e nada solidária que nós (os
tais do outro Maio) lhes deixámos no colo.
Pouco mais nos exigem do que os deixemos ser sobreviventes, para também
um dia o poderem contar. E olham-nos com a desconfiança que se lança aos
acomodados e aos leais conselheiros. No fundo, apenas mendigam que
ninguém permita que venham a ser perdedores ou derrotados.
Seria pedir muito às escolas e aos educadores que assumissem a coragem
de contribuírem para o desenvolvimento pessoal destes jovens,
qualificando o desempenho dos seus papéis sociais, no respeito da sua
integridade afectiva, da sua individualidade valorativa e das suas
escolhas quanto aos estilos de vida?
Não adiem mais: façam-no. Mesmo que em nome de um outro Maio. Um pouco
mais maduro, talvez...

João Ruivo
ruivo@rvj.pt
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