DAVID BUCKINGHAM,
INVESTIGADOR DA UNIVERSIDADE DE LONDRES, GARANTE
Educação para os
média: é urgente formar docentes
A formação na área dos média é uma
necessidade para todos os púbicos, mas deve começar o mais cedo
possível, designadamente na escola. É que hoje o conhecimento chega
sobretudo através dos média, os quais não apresentam a realidade, mas
sim construções feitas a partir da realidade. Por isso, é fundamental
que os cidadãos estejam preparados para fazerem uma interpretação
crítica das mensagens média, e que saibam usar os média para também eles
comunicarem.
A ideia é defendida por David Buckingham, um dos maiores especialistas
mundiais na área da Educação para os Média, que concedeu uma entrevista
ao Ensino Magazine, em Dublin, na República da Irlanda, onde foi o
principal orador da conferência Youth Media & Democracy, que teve lugar
no Dublin Institute of Technology.
O director do Centre for the Study of Children, Youth and Media, do
Instituto de Educação da Universidade de Londres, explica que a
investigação na área tem ainda um longo caminho a percorrer, no sentido
serem definidos critérios e formas de avaliar a efectividade dos
programas de Educação para os Média. Mas diz-se plenamente confiante que
essa efectividade é real. De caminho, explica em que consiste o seu
próximo projecto de investigação, considera que os média devem abrir as
portas à colaboração dos jovens, sobretudo os jornais, ao mesmo tempo
que comenta os previsíveis efeitos do programa Media Smart em Portugal,
que está a ajudar a implementar.
Em sua opinião, a formação das
pessoas na área dos média deve acontecer sobretudo em relação aos média
digitais ou também em relação aos média tradicionais, como os jornais, a
rádio ou a televisão?
Definitivamente em relação a ambos. Quando olhamos para a dieta dos
jovens em termos de consumo de média, percebemos que continuam a dedicar
muito tempo aos chamados velhos média. Na Grã-Bretanha, as crianças
dedicam diariamente entre duas horas e meia e três horas à televisão. Em
Portugal talvez dediquem um pouco menos, mas não muito menos. A
televisão é o média dominante entre os jovens. E se os jornais serão dos
média menos importantes, os filmes e a música continuam a sê-lo.
Mas existe uma ligação entre velhos
e novos média?
A ligação entre velhos e novos média tem vindo a aumentar. Se falarmos,
por exemplo, em jogos de computador, em muitos casos esses jogos tiveram
origem em filmes e os filmes estão ligados a programas de televisão. É
por isso que necessitamos de ensinar acerca dos média em geral, em lugar
de nos centrarmos num ou noutro média, ou nos novos média excluindo os
mais antigos.
Em 2003 escreveu que, "tal como em
qualquer prática educacional, a Educação para os Média necessita de
encontrar um modelo de curriculum e uma teoria coerente de
aprendizagem". Na Europa estamos no bom caminho para o conseguir ou isso
é algo ainda muito difícil?
Isso está a começar a acontecer. Há um diálogo internacional, mas as
actividades de Educação para os Média estão a acontecer ao nível
nacional. Por isso temos de pensar mais em que espaços curriculares a
Literacia dos Média pode acontecer. No Reino Unido, um dos espaços tem
sido a disciplina de Inglês, ou seja, no ensino da língua materna. É, de
facto, um espaço muito importante e muitos dos professores interessados
na Educação para os Média são professores de Inglês. Então, temos de
olhar para cada situação nacional, porque pode não acontecer apenas na
disciplina de língua materna mas, por exemplo, em disciplinas da área
dos estudos sociais.
É possível desenvolver a Educação
para os Média em espaços do currículo dedicados às Tecnologias de
Informação e Comunicação (TIC)?
Essa é uma questão que, de momento, me preocupa bastante. No espaço
curricular chamado TIC, aquilo que acontece é muito limitado, pelo menos
no Reino Unido. Esse é um espaço onde a Educação para os Média deve
acontecer de forma muito mais consistente. Penso que a Unesco pode
desempenhar aí um papel importante, tal como a Comissão Europeia, pois
podem insistir junto dos governos. No final do ano passado, a Comissão
Europeia publicou uma comunicação que pode ajudar, pois faz pressão
junto dos governos nacionais. E cada um deles é que define o que muda
nas escolas.
O Professor Buckingham tem referido
que o papel do professor tem de ser alterado. Qual será o novo papel do
professor?
Não é fácil ser professor na área da Educação para os Média. Às vezes as
pessoas dizem que toda a gente vê televisão, pelo que todas as pessoas
percebem o que deve ser ensinado. Isso não é verdade. Essa é apenas uma
parte do conhecimento que o professor deve ter. Sobretudo agora, quando
o ambiente dos média está a mudar rapidamente, é muito difícil que cada
um saiba o que deve ser ensinado. Os professores devem possuir um corpo
de conhecimento sobre como funcionam os média. Mas precisam também, e
acima de tudo, de pensar seriamente a sua pedagogia.
Qual é a grande diferença das
actividades de Educação para os Média em relação às actividades das
áreas disciplinares?
Não estamos numa situação em que os professores têm todo o conhecimento
e os alunos não têm nenhum. Não é como no ensino da Física. É uma área
onde, na realidade, os estudantes têm conhecimento, onde nós esperamos
que os professores tenham conhecimento. A questão está em como conseguir
criar um diálogo entre estes dois tipos de conhecimento. Tal é, muitas
vezes, difícil para os professores, pois eles necessitam de respeitar o
conhecimento dos estudantes. Deveriam escutá-los para saberem o que eles
já sabem e respeitar as suas opiniões, ao mesmo tempo que procuram
incrementar o conhecimento dos alunos. Por isso, os professores têm de
estar preparados sobre os média, conhecer a investigação desenvolvida em
relação aos média, tal como acontece com um professor de História em
relação à História. Isto sem esquecer a perspectiva pedagógica. E isso
tem de ser feito ao nível da formação inicial de professores, na
Universidade.
E é possível preparar os professores
para trabalharem numa escola com alunos muito diferentes entre si?
Essa é a outra questão. Vivemos numa sociedade diversificada, em que os
jovens têm cada vez mais acesso aos média. Mas nem todos preferem os
mesmos média e nem todos estarão preparados para desenvolver gostos
especializados. Pensemos, por exemplo, em relação à área dos jogos de
computador, que é verdadeiramente importante para muitos estudantes,
enquanto outros odeiam esses jogos. Há uma questão de género, pois os
rapazes gostam mais dos jogos do que as raparigas, mas há raparigas que
gostam. Por outro lado, eu não conheço muitos professores que joguem
jogos de computador, embora existam alguns. Há portanto aqui uma questão
por resolver. É preciso ensinar nesta área, mas essa tarefa não é fácil,
seja pela diversidade das opções dos alunos nesta matéria, seja pela
falta de preparação dos professores.
A Comissão Europeia quer ver
definidos os critérios que um cidadão deve cumprir para poder ser
considerado literato em média. Na sua opinião, quais poderão ser alguns
desses critérios?
Esta é uma questão muito difícil. Como é que medimos a Literacia dos
Média? Na Grã-Bretanha, a entidade reguladora Ofcom tentou fazer essa
medição. Têm uma iniciativa chamada Media Literacy Audit, através da
qual tentam avaliar o nível de literacia de diferentes grupos da
população e não apenas entre as crianças. A entidade reguladora está
também preocupada com a falta de literacia dos média entre os mais
idosos. No questionário perguntaram às pessoas se sabiam usar um comando
a distância ou se sabiam usar um browser ou se tinham colocado algo na
Internet. Ora, o que eles foram capazes de medir foram sobretudo
capacidades técnicas.
Então o que foi medido no Reino
Unido não foi o nível de literacia aos média…
Para a Ofcom, a Literacia dos Média assenta em três aspectos: aceder,
compreender e criar. Acesso significa se sabem usar os média numa
perspectiva meramente funcional. Compreender significa compreensão
crítica, fazer juízos acerca de como os média representam o mundo,
perceber a sua linguagem. Criar implica, obviamente, fazer média. O
problema é que só se consegue medir o acesso, a percentagem de pessoas
que usam computador, ou que têm acesso à Internet, a percentagem de
pessoas que comunica por SMS ou que consegue fazer uma fotografia com o
telemóvel. O que é difícil de medir é a compreensão e a criatividade, os
quais são pelo menos tão importantes como o acesso. Frequentemente,
quando falamos em Literacia dos Média em contexto educacional, não
estamos a falar tanto em capacidades técnicas, mas sim de compreensão
crítica e de criatividade. Há assim um problema aqui. Quer a Ofcom quer
a Comissão querem ser capazes de dizer qual é o nível de literacia dos
média de uma dada população num dado momento. Querem ser capazes de
dizer que, ao promoverem a Educação para os Média, esse nível subiu para
determinado nível. Mas o perigo que correm é estarem a medir algo
trivial, algo que não é realmente importante.
Mas será possível medir o nível de
literacia dos média da população, ou não?
A pergunta é realmente muito boa. Nós precisamos de saber se a Educação
para os Média faz alguma diferença. Eu acredito que faz. Defendo há
muito tempo que é importante que as crianças possam e devam aprender
acerca deste assunto. As pessoas podem perguntar-me se eu tenho provas
de que aquilo que as crianças aprendem sobre média, na sala de aula,
influi no modo como se relacionam com os média fora da sala de aula. De
momento, considero que não temos uma resposta. Temos uma fé, o que faz a
diferença. Mas não temos uma prova. E para termos provas, necessitamos
de encontrar uma maneira de medir níveis ou critérios de literacia dos
média. O desafio é medir estas coisas de uma forma sofisticada e não de
uma forma simples.
De acordo com a Convenção dos
Direitos da Criança, os mais jovens têm direito a ser ouvidos e a
expressarem-se através dos média. Mas a investigação tem mostrado que
tal não acontece, como se verificou recentemente através do projecto da
professora Cristina Ponte, em Portugal. Considera que há forma de
alterar esta situação? O que podem fazer, por exemplo, os jornalistas?
Há aqui duas questões. Uma acerca de como os adultos representam os
jovens e outra acerca de como os jovens se representam a si mesmos. Em
primeiro lugar os jornalistas devem perguntar a si próprios de que forma
representam os jovens. Quando olhamos para os estudos em vários países,
incluindo Portugal, fica claro que os jovens são frequentemente
marginalizados, são invisíveis, mesmo quando se abordam assuntos que
lhes dizem directamente respeito. Por exemplo, em peças jornalísticas
acerca de educação, os jornalistas falam com adultos, mas não falam com
crianças. As crianças aparecem sobretudo em peças acerca de jovens
especiais, que atingiram objectivos impressionantes em termos
educativos, desportivos ou nas artes, ou então sobre crianças e jovens
que criam problemas na sociedade. Estamos perante uma espécie de anjos e
diabos, mas a maioria dos jovens não são nem diabos nem anjos. A este
respeito considero que a ANDI está a fazer um trabalho fantástico no
Brasil, pois ajuda as pessoas a monitorizar o conteúdo dos média e
parecem bastante efectivos a fazer pressão sobre os média, no sentido de
fazerem uma representação mais diversificada e correcta dos jovens. Em
segundo lugar, considero que os média e as suas organizações devem criar
condições para que os jovens possam representar-se a si mesmos. E isto
hoje mais fácil através dos novos média. Os jovens podem produzir vídeos
e outras mensagens para falarem uns com outros, mas também com os
adultos, com todas as audiências.
Considera que já existem exemplos de
média que estão a proporcionar aos jovens esse contacto com as
audiências?
De momento não vemos ainda muitos. Mas há exemplos em que os jovens têm
um controle editorial, em que definem as peças jornalísticas, em que
fazem as entrevistas, editam as peças e escrevem o comentário. Na
realidade há muitos jovens, incluindo alguns mais novos, que são capazes
de fazer este trabalho, com apoio, com treino de jornalistas
profissionais. Por isso é necessário dar-lhes espaço, não apenas na
Internet, mas nos média mais consumidos, como a televisão.
E em relação aos jornais?
O grande problema aqui é que a maioria dos jovens não lê jornais. Existe
aqui um círculo vicioso. Os jovens não se vêem representados nos
jornais, não têm a possibilidade de escreverem para aparecer nos
jornais, pelo que não estão interessados. A continuar assim, podem
concluir que os jornais não são dirigidos a jovens, mas sim a adultos. E
é por isso que eles não lêem jornais. Se pensássemos de forma diferente,
se tivéssemos, por exemplo, secções ou suplementos especificamente
dirigidos a jovens, onde eles pudessem definir os conteúdos, talvez
estivessem mais dispostos a ler jornais. Um dos problemas dos editores
de jornais é que os seus leitores estão a ficar velhos. Naturalmente
irão morrer e os jornais podem vir a desaparecer.
O Programa Media Smart, relativo à
literacia dos média na área da publicidade, está a ser desenvolvido em
Portugal de acordo com a experiência britânica e com o apoio do
professor Buckingham. Que vantagens vê neste programa?
Existe uma suspeita em relação ao Media Smart que eu penso não ser
injustificada. Temos anunciantes a financiar um programa de Literacia
dos Média. Se formos injustos podemos afirmar que o fazem por uma
questão de imagem, para mostrarem que não estão a explorar as crianças e
que são altamente responsáveis. Na minha opinião em relação à
Grã-Bretanha, o Media Smart foi uma oportunidade, sobretudo para
trabalharmos com crianças mais jovens. Já temos uma Educação para os
Média implementada para crianças mais velhas, nas escolas secundárias.
Mas fizemos muito pouco em relação a crianças mais jovens, nas escolas
do 1º Ciclo. A minha experiência é que, em Portugal, recorreram a
pessoas muito experientes ao nível da produção dos materiais e ouviram
também educadores. Haveria certamente um problema se tudo tivesse sido
feito no mundo dos anunciantes. Mas a colaboração foi muito boa, além de
que foram testados em escolas. Outra questão importante está na grande
flexibilidade dos materiais educativos, o que permite que os professores
os adaptem aos conteúdos que estão a leccionar e aos alunos a quem estão
a leccionar.
Podemos assim considerar que foi
ultrapassado o facto dos anunciantes estarem a pagar para que as
crianças possam desenvolver capacidades que lhes permitam analisar
criticamente os anúncios…
Um dos problemas nesta discussão é que as pessoas pensam que o objectivo
da Educação para os Média é de enfraquecer o efeito da publicidade, como
se fosse uma espécie de inoculação contra a publicidade. Na minha
opinião, as crianças, mesmo as mais jovens, já sabem muito acerca de
publicidade. Mas há coisas que eles não sabem e que era importante que
soubessem. E, com estes materiais, podem perceber como é que funciona a
indústria da publicidade, sobretudo áreas acerca das quais não teriam de
pensar necessariamente.
O Professor Buckingham vai iniciar
um novo projecto de investigação, precisamente relacionado com as
crianças mais novas. Em que consiste o projecto e quais são os
objectivos?
O projecto, a três anos, centra-se na questão da progressão na
aprendizagem ao nível da Educação para os Média. Na Grã-Bretanha, a
investigação centrou-se na Educação para os Média para crianças mais
velhas, com 14 ou mais anos. E as crianças com 11 ou mais anos têm
actividades nas aulas de Inglês. Mas há muito pouco em relação a
crianças mais novas. Uma das questões a que queremos responder é o que
as crianças necessitam de saber em diferentes idades. O que deve saber
uma criança de sete anos em relação aos média, o que consegue
compreender e aprender acerca de média. E depois o mesmo em relação a
uma criança de 11, 12 ou de 15 anos. A pouca experiência que temos com
crianças mais novas sugere que elas podem ser sofisticadas e que
compreendem muito. E muitas das coisas que estamos a ensinar a crianças
de 14 anos podem ser aprendidas por crianças de sete anos. A ideia não é
tanto definir idades ou estádios, mas enveredar pelo currículo em
espiral de Bruner. No Reino Unido, o currículo dos média está baseado
num quadro de conceitos como linguagem média, representação, produção e
audiência. Eu penso que muitos deles podem ser ensinados a crianças mais
novas. Temos de os ensinar de forma diferente, com diferentes materiais
e estratégias, mas deverá ser possível usar a abordagem em espiral, que
vamos construindo à medida que crescem. É que neste momento não sabemos
nada acerca disto. Mas imagino que uma crianças de 15 anos poderá fazer
um melhor trabalho ao nível do vídeo se tiver iniciado essa actividade
aos sete anos em vez de só o fazer aos 15 anos.
Vitor Tomé
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