JOAQUINA CADETE,
DIRECTORA DO PETI, FALA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL
"É preciso fazer valer
o direito das crianças"

O Programa para a Prevenção e Eliminação
da Exploração do Trabalho Infantil (PETI) assinala, a 2 e 3 de Julho, os
10 anos da sua criação. Durante 2008, decorrerá um conjunto de
iniciativas das quais destacamos a conferência que terá lugar nos dias 2
e 3 de Julho de 2008, no Centro de Congressos de Santa Maria da Feira e
que contará com um conjunto de oradores que, ao longo destes dez anos,
estudaram o fenómeno do trabalho infantil nas suas várias vertentes e
acompanharam o trabalho do PETI.
Também participará nesta conferência um número significativo de jovens
(300) representando o universo de intervenção do PETI, no âmbito da
medida PIEF o que será o corolário de todo um trabalho dedicado à
prevenção e ao encaminhamento dos/das vários/as jovens que nos foram
sinalizados/as e para os/as quais se procuraram, em conjunto, as
respostas educativas e formativas mais adequadas.
O Ensino Magazine associa-se à iniciativa com a publicação de uma
entrevista à directora do Programa, Joaquina Cadete, e com a
distribuição gratuita de jornais aos participantes.
Dez anos depois da constituição do
PETI, qual o balanço que faz ao programa?
Um balanço claramente positivo. Do ponto de vista político, graças ao
conjunto de profissionais que constituíram e constituem a equipa PEETI/PETI
que, na sua maioria, estavam no auge da sua juventude, quando nela
ingressaram, e a toda uma teia de parceiros governamentais e não
governamentais, de âmbito internacional, nacional, regional ou local, o
tema do trabalho infantil em Portugal saiu da agenda internacional,
constituindo, hoje, o nosso País, através do PETI e da medida PIEF, um
exemplo de boas práticas no contexto europeu e mundial.
Do ponto de vista de sensibilização da sociedade, embora ainda haja quem
possa pensar que trabalhar não "lhes" faz mal, já não há coragem para
verbalizar esta opinião na praça pública sobre a inserção precoce dos
jovens no mundo do trabalho.
Pode-se pois afirmar que, apesar de algum consentimento social latente,
a tolerância ao trabalho infantil é hoje menor.
Também na clarificação de conceitos, sendo cada vez menor o nº de "bem
pensantes" ou de público anónimo que confunde trabalho de crianças e
jovens enquanto factor de socialização (estudar, ajudar em tarefas
adequadas à idade…) com exploração da sua força de trabalho.
Qual é a realidade portuguesa no que
respeita à exploração do trabalho infantil?
A situação hoje é diferente da situação de há 10 anos atrás, e
certamente da que então se anunciou (uma denúncia de uma ONG
internacional estimava que em Portugal haveria 200 mil crianças a
trabalhar). Os dados do inquérito do SIETI - Sistema de Informação
Estatística sobre o Trabalho Infantil - em 2001 demonstraram que havia
49 mil menores a desenvolver qualquer tipo de actividade económica.
Destes, 28 mil desenvolviam trabalhos leves. 7 mil desenvolviam trabalho
regular (15 a 35 horas semanais) e 14 mil desenvolviam trabalhos
perigosos (locais e tarefas perigosas e mais que 35 horas semanais).
Estes números estavam bem longe dos apresentados. Progressivamente,
fomos afastando a ideia de "flagelo nacional" e aproximando-nos das da
realidade do trabalho de menores em Portugal.
Desde então e, apesar de não ter sido feito mais nenhum estudo
quantitativo, cremos que a sociedade mudou e que os casos que ainda
subsistem demonstram uma sociedade mais complexa em que o fenómeno tem
outros contornos.
Os relatórios da Inspecção-geral do trabalho também corroboram esta
nossa percepção. Segundo o Professor Doutor Manuel Sarmento,
investigador da Universidade do Minho, "uma parte das crianças
portuguesas continua a ser mão-de-obra acessível a uma economia assente
num baixo nível de qualificação da sua força laboral e de exploração de
um trabalho mal remunerado. Esse segmento da economia é aquele que
continua a aproveitar o trabalho das crianças, em detrimento dos seus
tempos livres, do convívio e do estudo e, até, em mais pequena parte, da
frequência escolar. Isso ocorre nas explorações familiares de pequena
dimensão, nas actividades sazonais da agricultura mobilizadora de força
assalariada, nas actividades de restauração e da indústria turística no
Verão, em alguns estaleiros da construção civil, nas actividades
domiciliárias do têxtil e do calçado, nos pequenos comércios, de base
familiar sobretudo, em algumas oficinas e fabriquetas de vão de escada
ou de garagem, numa ou noutra empresa de média dimensão. Nada que se
assemelhe ao que se passa nas "sweat-shops" do Paquistão, da Tailândia,
ou de outras regiões localizadas sobretudo no hemisfério sul". Mas
persistem ainda algumas situações de exploração!
A realidade tornou-se porém mais complexa, assumindo o trabalho infantil
formas mais escondidas: dentro de casa (por conta de outrem) e um
provável aumento das piores formas de exploração do trabalho infantil
(definidas na Convenção n.º 182 da OIT, ratificada por Portugal). Destas
podemos citar a mendicidade, a exploração sexual de menores e o tráfico
de droga, que é preciso enfrentar, com base em instrumentos legais
(protocolos, entre outros) e entidades comuns (como a polícia europeia)
que decorrem da nossa pertença à Comunidade Europeia e ao Conselho da
Europa.
Acreditamos, no entanto, que o caso português acompanha a realidade
europeia, pois esta problemática social, como tantas outras, é cada vez
mais global. O combate à exploração do trabalho infantil é, no fundo,
cada vez mais uma questão de fazer valer os direitos das crianças.
Que razões estão associadas à
exploração do trabalho infantil no nosso país?
O trabalho Infantil é uma problemática multicausal característica de
muitas sociedades, independentemente do seu grau de desenvolvimento.
Alguns factores poderão ser a causa (isolada ou combinados) da entrada
precoce no mundo do trabalho, entre os quais, destacamos os seguintes:
A pobreza, no sentido mais global do termo - fracos rendimentos,
agregados familiares numerosos, baixo nível de escolarização, pouca
qualificação profissional, baixas expectativas - é a principal causa de
trabalho infantil.
Nos grupos sociais mais desfavorecidos, o trabalho das crianças poderá
ser necessário para completar ou suprir as deficiências dos ganhos dos
restantes membros da família, ou quando em economia de subsistência,
para sustentarem a produção das unidades económicas que asseguram a
sobrevivência dos colectivos familiares.
Outra causa importante é a desvalorização da escola e da educação
escolar que resulta muitas vezes em abandono escolar. A baixa
expectativa de ascensão social conjuga-se com o desejo de algum poder de
consumo ou de afirmação pessoal (imediato) que comprometem as
expectativas sociais e profissionais.
Outra causa que é normalmente indicada é a da procura de mão-de-obra
barata por empresas subcontratadas ou familiares aumentando assim a sua
competitividade mediante a prática de salários baixos e o menor rigor no
cumprimento dos direitos dos menores enquanto trabalhadores. Nestas
situações, não temos dúvida que toda a família ajuda, crianças incluída.
É o que se entende por trabalho domiciliário, a que a ACT/IGT não
consegue chegar, e que constitui trabalho em contexto doméstico (em
casa) mas por conta de outrem.
Por fim, a globalização da economia tem vindo igualmente a contribuir
para o aumento do trabalho infantil, principalmente nalgumas regiões do
mundo. Neste caso, as oportunidades de exportação e o interesse em
manter ou mesmo reduzir os custos de produção levam as empresas a
recorrerem à mão-de-obra infantil para aumentarem os seus lucros.
Resumidamente, um dos principais problemas do trabalho infantil é o seu
carácter cíclico da reprodução deste problema nas gerações futuras: as
crianças trabalhadoras serão, em regra, adultos pouco escolarizados e
trabalhadores mal qualificados e terão filhos que, pela mesma razão, vão
alimentar a oferta de mão-de-obra infantil.
Há uma espécie de fatalismo sociológico que se tem revelado difícil de
ultrapassar, mas que é forçoso quebrar. Também há algum desfasamento que
persiste em subsistir entre a legislação que o País tem e de que nos
orgulhamos quando a apresentamos em fóruns nacionais e internacionais e
a sua aplicação que nos causa embaraço na hora de responder à pergunta
sempre presente: "E funciona?" Pois é, nem sempre!
O trabalho desenvolvido pelo PETI envolve trabalho de campo. Existe a
percepção por parte dos encarregados de educação das crianças em risco
ou em situações de exploração, que a situação está a prejudicar as
próprias crianças e que pode condicionar o seu futuro?
Por vezes. A situação que encontramos no terreno é muito diversificada.
Poderemos dizer que cada vez mais o trabalho infantil é percepcionado
com algo que prejudica e que poderá por em causa o futuro da criança ou
do jovem. É neste ponto particular que a acção das equipas móveis
multidisciplinares do PETI, pelo seu trabalho de proximidade fazem a
diferença em relação a outras medidas governamentais do sistema de
ensino.
E os empregadores que justificações
apresentam?
Muitas vezes ouvimos dizer, no passado, que se contratavam um jovem, o
faziam para ajudar a família, ou porque esta o pediu ou porque o jovem o
pede. Mas, hoje em dia, esta já não é a realidade, até porque há sanções
monetárias ou de outra ordem que não compensam o "crime".
Hoje pode dizer-se que a sociedade
está menos indiferente a esse tipo de situações?
O consentimento social é difícil de combater, até porque as mentalidades
não se mudam por decreto: "Antes trabalhar que fazer asneiras!"; "Nunca
fez mal a ninguém!"; "Eu trabalhei e aqui estou de boa saúde!". Há
efectivamente uma grande aceitação social do trabalho infantil quer do
dito tradicional, quer de uma outra vertente pouco associada a trabalho
que a própria legislação designa como participação em espectáculos, moda
e publicidade e que contempla as actividades/ trabalho de jovens em
telenovelas, etc. Neste caso falamos não apenas de aceitação social mas
de grande competitividade entre os candidatos a "estrelas".
Mas acreditamos que se está a interiorizar o direito da criança a um
tempo para crescer, estudar e brincar antes de assumir as rédeas do seu
futuro profissional.
Um dos slogans dirigido aos jovens
pelo vosso programa é "o nosso trabalho é estudar". No campo educativo
que vitórias têm conseguido?
No momento em que há uma oferta abrangente do sistema educativo que
pretende dar resposta a problemáticas variadas, nomeadamente a violência
nas escolas, será lícito perguntar o que se passou e ainda passa para
que o Ministério da Educação e o Ministério do Trabalho sentissem a
necessidade de criar, em 1999 e manter até hoje, mais um programa de
educação e formação? A nosso ver, prende-se com o desafio que o PIEF tem
vindo a ganhar ao conseguir não só atrair este público concreto para a
medida mas, e mais difícil, mantê-lo até obter certificação escolar ou/e
profissional.
As razões principais prendem-se com a dupla vertente do programa (a
educativa e formativa, mas também a de integração) e com os princípios
em que a medida assenta, a saber: Individualização, acessibilidade e
flexibilidade porque a ela podem aceder ou conclui-la, em qualquer
momento do ano lectivo, o que não acontece com outras medidas,
permanecendo o tempo necessário para adquirir as competências que
tiverem sido definidas para que cada jovem atinja determinado
certificado escolar ou profissional. Há casos de jovens que frequentam
um PIEF seis meses, porque já tinham adquirido muitas das competências
essenciais do respectivo nível de escolaridade, e outros que podem
permanecer períodos mais prolongados (quatro e cinco anos) nesta medida,
como acontece nos poucos casos, felizmente, de jovens que nunca haviam
frequentado a escola, apresentando grandes défices a vários níveis.
Nestes casos, ficam assegurados a continuidade e o faseamento da
execução até à conclusão do 2º ou 3º ciclos. O factor celeridade também
é uma das marcas do PIEF já que permite concluir, em condições normais,
o 2º ciclo num ano e o 3º em dois anos.
O Programa Integrado de Educação e
Formação (PIEF) tem contribuído essas vitórias?
Sem dúvida. A medida PIEF é a mais emblemática do nosso trabalho e tem
permitido "agarrar as franjas de uma população que ou já abandonou a
escola e não quer voltar ou está em vias de o fazer sem que a mesma
escola consiga retê-los.
"O PIEF representa, pois, uma resposta com grande potencialidade e
resultados na melhoria do desempenho docente, por incluir na sua
estratégia organizativa três conceitos essenciais, conotados com o
sucesso em todas as situações de ensino bem sucedido documentadas na
investigação educacional:
- o trabalho docente colaborativo,
- a liderança pedagógica das equipas técnico pedagógicas;
- a diferenciação curricular
Predominância do enfoque na competencialização social, sendo as suas
vertentes, a escolar e pré-profissional percepcionadas pelos actores no
terreno sobretudo como instrumentais para a integração social dos
alunos. Contudo a certificação escolar conseguida é significativa e
representa uma mais valia considerável face a alunos já perdidos pelo
sistema e em risco no plano social, e o encaminhamento para a via da
certificação pré-profissionalizante foi desenvolvida com sucesso na
maioria das situações PIEF. A ideia mais forte da cultura PIEF - que foi
possível identificar como uma cultura de trabalho própria - traduziu-se
na preocupação de tornar estes jovens, lançados precocemente para
processos vários de exclusão, escolar e social, pessoas e cidadãos
capazes de se reinserir nas dinâmicas sociais ".(Roldão et al - 2008).
Para cada um dos jovens integrado em grupos turma PIEF, é elaborado um
plano Individual de educação e formação, um PEF, porque cada um tem uma
história de vida diferente, constituindo este plano individual, uma das
especificidades da medida PIEF. Para garantir que estes PEF são
efectivamente cumpridos, aliamos aos recursos humanos já citados um
elemento que as outras medidas não têm e que designamos por técnico de
intervenção local ou monitor. Este elemento, que não encontramos em
nenhuma das outras medidas que estão no terreno, ao acompanhar apenas
uma ou duas turmas contribui para uma regulação próxima, apanágio do
PIEF.
A existência de equipas móveis multidisciplinares permite um apoio e
acompanhamento único, no nosso sistema educativo, aos jovens e
respectivas famílias, trabalhando todas as vertentes do indivíduo, a
saber: formação escolar e profissional, social, económica, cultural e
não menos importante a da saúde! Estes apoios são conseguidos
coordenando e envolvendo todos os parceiros sociais na concretização do
PEF, consolidando redes locais de parceiros. Este papel é
particularmente visível quando há cenários de violência no interior ou
no exterior da escola pois a regulação próxima exercida funciona como
factor dissuasor da escalada desta mesma violência.
Os baixos índices de escolaridade, o
desemprego vivido, a desestruturação familiar e a precaridade social,
podem criar um contexto de risco para crianças e jovens, levando-os a
abandonar muito precocemente a escola, lançando-os no mercado de
trabalho ou não. A desocupação dos jovens é outro factor que importa
combater? De que forma?
Este é um dado relativamente novo que emerge na nossa experiência. Além
dos vários factores já apontados para a exclusão escolar, verificamos
que há cada vez mais um número crescente de jovens que estão no que eu
tenho chamado de ócio criativo e que, não raras vezes, conduz a
situações que resvalam para a marginalidade.
Uma mão contra a exclusão é um dos
desafios que está a envolver alunos do PIEF por todo o país e que já tem
testemunhos de diversas personalidades. A batalha contra a exclusão está
a ser ganha?
No combate à exclusão perdem-se algumas batalhas mas ganham-se também
muitas outras. No que diz concretamente respeito a esta actividade, no
âmbito da comemoração dos dez anos do PETI, a actividade que estamos a
levar a cabo com o apoio técnico da ARISCO tem-se revelado um motor
imparável de discussão do fenómeno da exclusão e de como o combater
dentro e fora da medida PIEF.
No início de Julho são assinalados,
em Santa Maria da Feira, os 10 anos do PETI. Que novos desafios tem o
programa pela frente?
Neste momento, está já em marcha o arranque, em Setembro, de novos
grupos turma PIEF, uns para conclusão do trabalho iniciado em 2007/08,
outros que integram novos jovens cujos diagnósticos foram sendo
completados, ao longo deste ano lectivo pela EMM em conjunto com os
vários parceiros locais. Outros desafios estão em fase de decisão
política e em moldes a anunciar brevemente.
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