Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XI    Nº124    Junho 2008

Dossier

JOAQUINA CADETE, DIRECTORA DO PETI, FALA DA EXPLORAÇÃO DO TRABALHO INFANTIL

"É preciso fazer valer o direito das crianças"

O Programa para a Prevenção e Eliminação da Exploração do Trabalho Infantil (PETI) assinala, a 2 e 3 de Julho, os 10 anos da sua criação. Durante 2008, decorrerá um conjunto de iniciativas das quais destacamos a conferência que terá lugar nos dias 2 e 3 de Julho de 2008, no Centro de Congressos de Santa Maria da Feira e que contará com um conjunto de oradores que, ao longo destes dez anos, estudaram o fenómeno do trabalho infantil nas suas várias vertentes e acompanharam o trabalho do PETI.

Também participará nesta conferência um número significativo de jovens (300) representando o universo de intervenção do PETI, no âmbito da medida PIEF o que será o corolário de todo um trabalho dedicado à prevenção e ao encaminhamento dos/das vários/as jovens que nos foram sinalizados/as e para os/as quais se procuraram, em conjunto, as respostas educativas e formativas mais adequadas.

O Ensino Magazine associa-se à iniciativa com a publicação de uma entrevista à directora do Programa, Joaquina Cadete, e com a distribuição gratuita de jornais aos participantes.
 

Dez anos depois da constituição do PETI, qual o balanço que faz ao programa?

Um balanço claramente positivo. Do ponto de vista político, graças ao conjunto de profissionais que constituíram e constituem a equipa PEETI/PETI que, na sua maioria, estavam no auge da sua juventude, quando nela ingressaram, e a toda uma teia de parceiros governamentais e não governamentais, de âmbito internacional, nacional, regional ou local, o tema do trabalho infantil em Portugal saiu da agenda internacional, constituindo, hoje, o nosso País, através do PETI e da medida PIEF, um exemplo de boas práticas no contexto europeu e mundial.

Do ponto de vista de sensibilização da sociedade, embora ainda haja quem possa pensar que trabalhar não "lhes" faz mal, já não há coragem para verbalizar esta opinião na praça pública sobre a inserção precoce dos jovens no mundo do trabalho.

Pode-se pois afirmar que, apesar de algum consentimento social latente, a tolerância ao trabalho infantil é hoje menor.

Também na clarificação de conceitos, sendo cada vez menor o nº de "bem pensantes" ou de público anónimo que confunde trabalho de crianças e jovens enquanto factor de socialização (estudar, ajudar em tarefas adequadas à idade…) com exploração da sua força de trabalho.
 

Qual é a realidade portuguesa no que respeita à exploração do trabalho infantil?

A situação hoje é diferente da situação de há 10 anos atrás, e certamente da que então se anunciou (uma denúncia de uma ONG internacional estimava que em Portugal haveria 200 mil crianças a trabalhar). Os dados do inquérito do SIETI - Sistema de Informação Estatística sobre o Trabalho Infantil - em 2001 demonstraram que havia 49 mil menores a desenvolver qualquer tipo de actividade económica. Destes, 28 mil desenvolviam trabalhos leves. 7 mil desenvolviam trabalho regular (15 a 35 horas semanais) e 14 mil desenvolviam trabalhos perigosos (locais e tarefas perigosas e mais que 35 horas semanais). Estes números estavam bem longe dos apresentados. Progressivamente, fomos afastando a ideia de "flagelo nacional" e aproximando-nos das da realidade do trabalho de menores em Portugal.

Desde então e, apesar de não ter sido feito mais nenhum estudo quantitativo, cremos que a sociedade mudou e que os casos que ainda subsistem demonstram uma sociedade mais complexa em que o fenómeno tem outros contornos.

Os relatórios da Inspecção-geral do trabalho também corroboram esta nossa percepção. Segundo o Professor Doutor Manuel Sarmento, investigador da Universidade do Minho, "uma parte das crianças portuguesas continua a ser mão-de-obra acessível a uma economia assente num baixo nível de qualificação da sua força laboral e de exploração de um trabalho mal remunerado. Esse segmento da economia é aquele que continua a aproveitar o trabalho das crianças, em detrimento dos seus tempos livres, do convívio e do estudo e, até, em mais pequena parte, da frequência escolar. Isso ocorre nas explorações familiares de pequena dimensão, nas actividades sazonais da agricultura mobilizadora de força assalariada, nas actividades de restauração e da indústria turística no Verão, em alguns estaleiros da construção civil, nas actividades domiciliárias do têxtil e do calçado, nos pequenos comércios, de base familiar sobretudo, em algumas oficinas e fabriquetas de vão de escada ou de garagem, numa ou noutra empresa de média dimensão. Nada que se assemelhe ao que se passa nas "sweat-shops" do Paquistão, da Tailândia, ou de outras regiões localizadas sobretudo no hemisfério sul". Mas persistem ainda algumas situações de exploração!

A realidade tornou-se porém mais complexa, assumindo o trabalho infantil formas mais escondidas: dentro de casa (por conta de outrem) e um provável aumento das piores formas de exploração do trabalho infantil (definidas na Convenção n.º 182 da OIT, ratificada por Portugal). Destas podemos citar a mendicidade, a exploração sexual de menores e o tráfico de droga, que é preciso enfrentar, com base em instrumentos legais (protocolos, entre outros) e entidades comuns (como a polícia europeia) que decorrem da nossa pertença à Comunidade Europeia e ao Conselho da Europa.

Acreditamos, no entanto, que o caso português acompanha a realidade europeia, pois esta problemática social, como tantas outras, é cada vez mais global. O combate à exploração do trabalho infantil é, no fundo, cada vez mais uma questão de fazer valer os direitos das crianças.
 

Que razões estão associadas à exploração do trabalho infantil no nosso país?

O trabalho Infantil é uma problemática multicausal característica de muitas sociedades, independentemente do seu grau de desenvolvimento.

Alguns factores poderão ser a causa (isolada ou combinados) da entrada precoce no mundo do trabalho, entre os quais, destacamos os seguintes:

A pobreza, no sentido mais global do termo - fracos rendimentos, agregados familiares numerosos, baixo nível de escolarização, pouca qualificação profissional, baixas expectativas - é a principal causa de trabalho infantil.

Nos grupos sociais mais desfavorecidos, o trabalho das crianças poderá ser necessário para completar ou suprir as deficiências dos ganhos dos restantes membros da família, ou quando em economia de subsistência, para sustentarem a produção das unidades económicas que asseguram a sobrevivência dos colectivos familiares.

Outra causa importante é a desvalorização da escola e da educação escolar que resulta muitas vezes em abandono escolar. A baixa expectativa de ascensão social conjuga-se com o desejo de algum poder de consumo ou de afirmação pessoal (imediato) que comprometem as expectativas sociais e profissionais.

Outra causa que é normalmente indicada é a da procura de mão-de-obra barata por empresas subcontratadas ou familiares aumentando assim a sua competitividade mediante a prática de salários baixos e o menor rigor no cumprimento dos direitos dos menores enquanto trabalhadores. Nestas situações, não temos dúvida que toda a família ajuda, crianças incluída. É o que se entende por trabalho domiciliário, a que a ACT/IGT não consegue chegar, e que constitui trabalho em contexto doméstico (em casa) mas por conta de outrem.

Por fim, a globalização da economia tem vindo igualmente a contribuir para o aumento do trabalho infantil, principalmente nalgumas regiões do mundo. Neste caso, as oportunidades de exportação e o interesse em manter ou mesmo reduzir os custos de produção levam as empresas a recorrerem à mão-de-obra infantil para aumentarem os seus lucros.

Resumidamente, um dos principais problemas do trabalho infantil é o seu carácter cíclico da reprodução deste problema nas gerações futuras: as crianças trabalhadoras serão, em regra, adultos pouco escolarizados e trabalhadores mal qualificados e terão filhos que, pela mesma razão, vão alimentar a oferta de mão-de-obra infantil.

Há uma espécie de fatalismo sociológico que se tem revelado difícil de ultrapassar, mas que é forçoso quebrar. Também há algum desfasamento que persiste em subsistir entre a legislação que o País tem e de que nos orgulhamos quando a apresentamos em fóruns nacionais e internacionais e a sua aplicação que nos causa embaraço na hora de responder à pergunta sempre presente: "E funciona?" Pois é, nem sempre!

O trabalho desenvolvido pelo PETI envolve trabalho de campo. Existe a percepção por parte dos encarregados de educação das crianças em risco ou em situações de exploração, que a situação está a prejudicar as próprias crianças e que pode condicionar o seu futuro?
Por vezes. A situação que encontramos no terreno é muito diversificada. Poderemos dizer que cada vez mais o trabalho infantil é percepcionado com algo que prejudica e que poderá por em causa o futuro da criança ou do jovem. É neste ponto particular que a acção das equipas móveis multidisciplinares do PETI, pelo seu trabalho de proximidade fazem a diferença em relação a outras medidas governamentais do sistema de ensino.
 

E os empregadores que justificações apresentam?

Muitas vezes ouvimos dizer, no passado, que se contratavam um jovem, o faziam para ajudar a família, ou porque esta o pediu ou porque o jovem o pede. Mas, hoje em dia, esta já não é a realidade, até porque há sanções monetárias ou de outra ordem que não compensam o "crime".
 

Hoje pode dizer-se que a sociedade está menos indiferente a esse tipo de situações?

O consentimento social é difícil de combater, até porque as mentalidades não se mudam por decreto: "Antes trabalhar que fazer asneiras!"; "Nunca fez mal a ninguém!"; "Eu trabalhei e aqui estou de boa saúde!". Há efectivamente uma grande aceitação social do trabalho infantil quer do dito tradicional, quer de uma outra vertente pouco associada a trabalho que a própria legislação designa como participação em espectáculos, moda e publicidade e que contempla as actividades/ trabalho de jovens em telenovelas, etc. Neste caso falamos não apenas de aceitação social mas de grande competitividade entre os candidatos a "estrelas".

Mas acreditamos que se está a interiorizar o direito da criança a um tempo para crescer, estudar e brincar antes de assumir as rédeas do seu futuro profissional.
 

Um dos slogans dirigido aos jovens pelo vosso programa é "o nosso trabalho é estudar". No campo educativo que vitórias têm conseguido?

No momento em que há uma oferta abrangente do sistema educativo que pretende dar resposta a problemáticas variadas, nomeadamente a violência nas escolas, será lícito perguntar o que se passou e ainda passa para que o Ministério da Educação e o Ministério do Trabalho sentissem a necessidade de criar, em 1999 e manter até hoje, mais um programa de educação e formação? A nosso ver, prende-se com o desafio que o PIEF tem vindo a ganhar ao conseguir não só atrair este público concreto para a medida mas, e mais difícil, mantê-lo até obter certificação escolar ou/e profissional.

As razões principais prendem-se com a dupla vertente do programa (a educativa e formativa, mas também a de integração) e com os princípios em que a medida assenta, a saber: Individualização, acessibilidade e flexibilidade porque a ela podem aceder ou conclui-la, em qualquer momento do ano lectivo, o que não acontece com outras medidas, permanecendo o tempo necessário para adquirir as competências que tiverem sido definidas para que cada jovem atinja determinado certificado escolar ou profissional. Há casos de jovens que frequentam um PIEF seis meses, porque já tinham adquirido muitas das competências essenciais do respectivo nível de escolaridade, e outros que podem permanecer períodos mais prolongados (quatro e cinco anos) nesta medida, como acontece nos poucos casos, felizmente, de jovens que nunca haviam frequentado a escola, apresentando grandes défices a vários níveis. Nestes casos, ficam assegurados a continuidade e o faseamento da execução até à conclusão do 2º ou 3º ciclos. O factor celeridade também é uma das marcas do PIEF já que permite concluir, em condições normais, o 2º ciclo num ano e o 3º em dois anos.
 

O Programa Integrado de Educação e Formação (PIEF) tem contribuído essas vitórias?

Sem dúvida. A medida PIEF é a mais emblemática do nosso trabalho e tem permitido "agarrar as franjas de uma população que ou já abandonou a escola e não quer voltar ou está em vias de o fazer sem que a mesma escola consiga retê-los.

"O PIEF representa, pois, uma resposta com grande potencialidade e resultados na melhoria do desempenho docente, por incluir na sua estratégia organizativa três conceitos essenciais, conotados com o sucesso em todas as situações de ensino bem sucedido documentadas na investigação educacional:

- o trabalho docente colaborativo,

- a liderança pedagógica das equipas técnico pedagógicas;

- a diferenciação curricular

Predominância do enfoque na competencialização social, sendo as suas vertentes, a escolar e pré-profissional percepcionadas pelos actores no terreno sobretudo como instrumentais para a integração social dos alunos. Contudo a certificação escolar conseguida é significativa e representa uma mais valia considerável face a alunos já perdidos pelo sistema e em risco no plano social, e o encaminhamento para a via da certificação pré-profissionalizante foi desenvolvida com sucesso na maioria das situações PIEF. A ideia mais forte da cultura PIEF - que foi possível identificar como uma cultura de trabalho própria - traduziu-se na preocupação de tornar estes jovens, lançados precocemente para processos vários de exclusão, escolar e social, pessoas e cidadãos capazes de se reinserir nas dinâmicas sociais ".(Roldão et al - 2008).

Para cada um dos jovens integrado em grupos turma PIEF, é elaborado um plano Individual de educação e formação, um PEF, porque cada um tem uma história de vida diferente, constituindo este plano individual, uma das especificidades da medida PIEF. Para garantir que estes PEF são efectivamente cumpridos, aliamos aos recursos humanos já citados um elemento que as outras medidas não têm e que designamos por técnico de intervenção local ou monitor. Este elemento, que não encontramos em nenhuma das outras medidas que estão no terreno, ao acompanhar apenas uma ou duas turmas contribui para uma regulação próxima, apanágio do PIEF.

A existência de equipas móveis multidisciplinares permite um apoio e acompanhamento único, no nosso sistema educativo, aos jovens e respectivas famílias, trabalhando todas as vertentes do indivíduo, a saber: formação escolar e profissional, social, económica, cultural e não menos importante a da saúde! Estes apoios são conseguidos coordenando e envolvendo todos os parceiros sociais na concretização do PEF, consolidando redes locais de parceiros. Este papel é particularmente visível quando há cenários de violência no interior ou no exterior da escola pois a regulação próxima exercida funciona como factor dissuasor da escalada desta mesma violência.
 

Os baixos índices de escolaridade, o desemprego vivido, a desestruturação familiar e a precaridade social, podem criar um contexto de risco para crianças e jovens, levando-os a abandonar muito precocemente a escola, lançando-os no mercado de trabalho ou não. A desocupação dos jovens é outro factor que importa combater? De que forma?

Este é um dado relativamente novo que emerge na nossa experiência. Além dos vários factores já apontados para a exclusão escolar, verificamos que há cada vez mais um número crescente de jovens que estão no que eu tenho chamado de ócio criativo e que, não raras vezes, conduz a situações que resvalam para a marginalidade.
 

Uma mão contra a exclusão é um dos desafios que está a envolver alunos do PIEF por todo o país e que já tem testemunhos de diversas personalidades. A batalha contra a exclusão está a ser ganha?

No combate à exclusão perdem-se algumas batalhas mas ganham-se também muitas outras. No que diz concretamente respeito a esta actividade, no âmbito da comemoração dos dez anos do PETI, a actividade que estamos a levar a cabo com o apoio técnico da ARISCO tem-se revelado um motor imparável de discussão do fenómeno da exclusão e de como o combater dentro e fora da medida PIEF.
 

No início de Julho são assinalados, em Santa Maria da Feira, os 10 anos do PETI. Que novos desafios tem o programa pela frente?

Neste momento, está já em marcha o arranque, em Setembro, de novos grupos turma PIEF, uns para conclusão do trabalho iniciado em 2007/08, outros que integram novos jovens cujos diagnósticos foram sendo completados, ao longo deste ano lectivo pela EMM em conjunto com os vários parceiros locais. Outros desafios estão em fase de decisão política e em moldes a anunciar brevemente.


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