CARLOS DO CARMO, FADISTA
"Portugal devia
fechar uma semana para balanço"
Carlos do Carmo diz que já não tem idade
para ser destrutivo, mas recusa calar-se perante o que os seus olhos
vêem. A referência maior do fado português aponta uma boa quota parte
das falhas do País às elites e aos políticos, afirma que a concentração
de riqueza está a ficar desumana e refere que não há professor que
resista à desagregação da instituição familiar e dos valores que esta
transmite. O fadista, que eternizou «Lisboa Menina e Moça» lamenta ainda
que os desígnios da felicidade moderna sejam canalizados para a
compulsão consumista, sublinhando que existe nesta sociedade «faz de
conta» em que vivemos, muita modernice a disfarçar a crueldade.
Aos 68 anos, e após 45 anos de
carreira, como reage quando é apontado como a maior referência viva do
fado em Portugal?
Fico grato pela generosidade, mas ao mesmo tempo assustado. Tenho
aprendido com a vida o que é o fio da navalha no que diz respeito à vã
glória pública. Algumas pessoas podem chamar-me coisas maravilhosas e
converter-me num ídolo, mas como sou humano, se cometer o mais pequeno
deslize, despromovem-me logo. Como tal, relativizo muito esse tipo de
apreciações que fazem de mim. Não me deixo endeusar.
Que legado é que deixa para as
gerações vindouras que receberão o seu testemunho?
A permanente inquietação de não tomar o fado como uma canção estática.
Essa tem sido uma preocupação dominante da minha carreira.
Por outro lado, desde o período em que estive entre a vida e a morte,
procurei fomentar o encontro da gente do fado com os académicos e em
conjunto deixarmos a matéria e as prateleiras organizadas para que as
gerações vindouras tenham referências e possibilidades de ter boa
informação, algo que a minha geração não teve.
Para além disso, sinto-me profundamente associado à criação do Museu do
Fado, que existe há 10 anos, ao filme «Fados» que o Carlos Saura
realizou e que anda a ser exibido pelo mundo inteiro, ao livro escrito
por Rui Vieira Nery, intitulado «Para uma história do Fado», algo que
não se fazia há 100 anos. Ainda este ano serei o narrador e apresentador
de uma série de 6 programas a exibir na RTP, escrita por Vieira Nery e
José Pracana, sobre a história do fado, que já se encontra vendida para
diversas televisões internacionais.
Conferiu-se, por assim dizer, o
cunho científico que o fado não tinha?
Tem existido uma arrumação que facilita a percepção e a informação do
público. Penso que para a visibilidade deste fenómeno ser completa
faltará oficializar a candidatura, provavelmente em 2009, do Fado a
Património da Humanidade da Unesco.
Mariza, Camané e Ana Moura são os
rostos mais reconhecidos da nova geração do fado. Como avalia o
desempenho destes protagonistas?
Devo dizer que com o Camané e a Mariza tenho uma relação de amizade,
enquanto que a Ana Moura é uma pessoa que estimo.
O Camané é um fadista da linha tradicional: esmerado, apurado e
rigoroso. Com a sobriedadade que os homens têm a cantar o fado.
A Mariza tem um franco sucesso além-fronteiras e traz dentro de si um
enorme dinamismo. O novo disco dela apresenta algumas rupturas, mas eu
tenho muito apreço pelas pessoas que arriscam.
Quanto à Ana Moura, tem uma boa imagem, trabalha bem. Gosto francamente
de ouvi-la.
Na sociedade meditática em que
vivemos a imagem é uma preocupação comum a todos eles?
No passado existiram duas pessoas com uma imagem muito vincada e
profunda: a Amália, que estava muito avançada no tempo face à forma como
se vestia, e o Marceneiro, com o lenço, o boné e o cigarro. As imagens
de ambos ganham um grande sentido de genuinidade e intemporalidade. A
Amália serve de referência à nova geração das mulheres.
O tempo em que vivemos baseia-se na imagem, é um facto. Não querendo ser
irónico, e respondendo à sua pergunta, gostava de dizer que sou
altamente apreciador dos conteúdos...
Teme que esta aparente pujança do
fado e dos seus intérpretes se possa tratar de um fenómeno passageiro e
de moda?
Nos anos 80 os jornalistas acabavam as entrevistas que me faziam com a
pergunta invariável: «Pensa que o fado pode estar próximo do fim?». O
que eu dizia, e essa resposta mantém actualidade, é que enquanto houver
quem o toque, quem o cante e quem o queira escutar, ele sigará o seu
caminho. O tempo mediático que vivemos faz porventura as pessoas
pensarem que estamos numa fase muito saudável do fado. Eu creio que
estamos num período de plantação. E estão a surgir homens e mulheres com
talento, mas a triagem será feita pelo tempo.
A sementeira parece de qualidade...
É francamente boa, mas deixe-me dizer que se não houver bons
guitarristas e violistas para acompanhar quem canta, dificilmente o fado
progride e se desenvolve. E também aqui a geração actual tem muita
categoria.
Consegue definir o que é a alma
fadista?
É difícil. Posso surpreendê-lo com o que vou dizer, mas algumas pessoas
que vão ouvir fado têm alma fadista. Tive domingo passado a cantar na
Casa da Pesca, em Oeiras, na que foi residência de verão do Marquês de
Pombal, e tinha uma pequena multidão a ouvir-me cantar com uma atitude
que provavelmente revela o que é a alma fadista. As sinergias têm de
funcionar entre quem canta, quem toca e quem ouve. O fado é muito
intenso e autêntico. Se um dos vértices do triângulo falhar, é muito
difícil que o fado aconteça.
Consegue escolher o palco da sua
vida?
Todos são importantes. O que aconteceu no Olympia de Paris, não
aconteceu na Opera de Frankfurt, o que aconteceu no Coliseu de Lisboa
não tem nada a ver com o Memorial da América Latina em S. Paulo, apenas
para citar alguns locais. Por exemplo, fiz nos anos 80 um concerto na
Aula Magna em Lisboa perfeitamente arrebatador e de empatia com o
público.
Um espectáculo que recorde por algum
motivo especial?
Sem querer melindrar a minha cidade, Lisboa, lembro-me de um concerto
que dei no Porto. Não sou amante de encores. Normalmente acabo os
espectáculos muito cansado. O público é generoso e pede 1 ou 2 encores,
mas como me conhece sabe até onde pedir. Há uns 2 anos, na Casa da
Música, enrouqueci no próprio dia do concerto e fiquei sem voz. Subi ao
palco, tentei falar ao público que enchia a sala para lhe pedir
desculpas pelo sucedido. O espectáculo foi remarcado para 1 ou 2 meses
depois. À tarde, quando me encontrava a ensaiar, um funcionário da Casa
da Música informou-me que da capacidade total da sala, apenas 6 pessoas
devolveram o bilhete do primeiro espectáculo. As restantes conservaram a
entrada. Entendi aquilo como uma prova de amor do público da cidade do
Porto. À noite, sensível a isso, fiz... 7 encores. Uma marca recorde na
minha carreira. Foi esgotante, mas altamente reconfortante e
inesquecível.
O filme «Fados» do espanhol Carlos
Saura é um sucesso, tendo sido exibido em dezenas de países por esse
mundo fora. Teve pena que não tivesse tido o cunho de um realizador
nacional?
O meu amigo Ivan Dias e eu tivemos muitas reuniões de trabalho na minha
casa e um dia sentimo-nos motivados para concretizar a ideia de falar
com o Saura depois de vermos o filme «Flamenco», da autoria do
realizador espanhol, quando ele também já tinha feito um trabalho
semelhante sobre o tango, não sendo ele de nacionalidade argentina. Eu
acho que acertámos em cheio. Chegam-me notícias de amigos meus que na
Bulgária e em Cuba o filme já foi exibido com um enorme sucesso. Imagine
o orgulho que eu sinto.
No final de 2007 recebeu o Prémio
Goya para Melhor Canção Original, com o «Fado da Saudade», canção que
faz parte da banda sonora do filme «Fados», que concorria à edição
daqueles que são considerados os «óscares» espanhóis. Ficou surpreso com
esta distinção?
Os espanhóis, pela sua natureza, não são muito dados a dar prémios a
estrangeiros. Fiquei esmagado pelo prémio e pelo telegrama, quase
imediato, que recebi do Primeiro-Ministro e da ministra da Cultura
espanhóis. Pensei: «esta gente não brinca em serviço». É a reacção de
uma elite que está habituada a tratar a cultura de forma exigente.
Os seus compatriotas foram tão
céleres em felicitar-lhe?
É normal que as mensagens não tivessem chegado logo, até porque o evento
realizou-se em Espanha, mas recebi telegramas de Eanes, Soares, Sampaio
e Cavaco, os quatro Presidentes da República depois do 25 de Abril, e
também de gente muito interessante oriunda de vários quadrantes, sem
esquecer o telefonema para minha casa do ministro da Cultura, Pinto
Ribeiro. Nunca disse em público, mas posteriormente fui jantar a convite
do Primeiro-Ministro a São Bento, como reconhecimento do meu trabalho.
Apesar disso, acha que em Portugal a
cultura é tratada como um parente pobre?
Já não tenho idade para ser destrutivo. Sei que em Espanha a cultura vai
a par da economia, é uma grande prioridade. Quem sabe se isso não é um
dos motivos para a afirmação espanhola e para a sua grande auto-estima.
Em Portugal há coisas muito boas, mas seria necessário articular
vontades.
Sente que existe qualidade, mas o
país está paralisado?
Vou dar-lhe (mais) um exemplo prático. No passado dia 25 de Abril actuei
na Guarda, num teatro de grande qualidade, com uma excelente acústica.
Estas coisas estão a acontecer. Mas é preciso programar teatros,
fidelizar públicos, a concertação dos agentes do sector, subordinando a
actuação a uma estratégia. A cultura é como o ar que respiramos. Os
portugueses durante muitos anos assistiram a espectáculos grátis, mas
hoje têm que compreender que esses eventos têm que ser pagos.
A maioria dos concertos esgota....
Que bom que isso é. O que é preciso é que nos reanimemos, reforcemos a
auto-estima e abandonemos a permanente depressão em que nos encontramos.
Já viajei tanto na minha vida e chego à conclusão que não é assim tão
mau ser português. Não é mesmo nada mau. É preciso interiorizar isto.
A que motivos de orgulho devemos
agarrar-nos?
Somos 15 milhões, dos quais 5 milhões vivem fora do espaço físico
português, como emigrantes, o que talvez converta Portugal num dos
países mais fracturados da Europa. Chega o verão e há uma festa
colectiva neste país quando os emigrantes retornam e que redonda numa
grande tristeza quando acaba o mês de Agosto. Quando se fala de
emigrantes as pessoas olham por cima do ombro quando eles são os grandes
heróis dos nossos dias. Foi comovente ver a lição de amor à pátria que
eles deram no Euro 2008. Devia haver um pouco mais de respeito pelos
portugueses que vivem fora de Portugal. Somos esbanjadores com as
riquezas que possuímos. Levei anos da minha vida a cantar para eles e
não os posso esquecer: foram eles que me projectaram para as grandes
salas.
Dados recentes indicam que um quarto
dos portugueses é pobre. Como vê o crescimento galopante das
desigualdades?
Há seis meses, na «Grande Entrevista» da Judite de Sousa, na RTP,
alertei para isso. Um artista lida com todo o tipo de pessoas: desde o
capitalista que o contrata para um espectáculo, até à pessoa mais
simples que o vai ouvir no sítio mais longínquo. São essas pessoas que
desabafam e essa «sondagem» que tenho feito pelo país real, permite-me,
de algum tempo a esta parte, perceber as dificuldades por que muitos
portugueses passam. Eu não fico indiferente a isto. Lamento
profundamente. Apetece-me usar uma frase, algo drástica, mas cada vez
mais verdadeira, do meu amigo José Saramago: «O homem não tem cura».
Fica revoltado ao assistir ao
aumento do fosso entre ricos e pobres?
A concentração de riqueza em Portugal está a ficar desumana. Depois as
pessoas ficam indiferentes ao sofrimento alheio. E, pior do que isso,
ficam respaldadas por esta globalização que me faz lembrar uma grande
vaga que traz água salgada muito boa, mas que vem carregada de detritos
que vão dar à costa e que fazem mossa. Tenho esperança que a potência
mundial que é os Estados Unidos, que é por onde passa tudo, a partir de
Novembro, com a nova liderança, mude o rumo do mundo. A degradação
financeira, energética e alimentar é muito feia e resultado, sobretudo,
da ganância.
É insuportável saber que cerca de cinco dezenas de famílias são
detentoras de aproximadamente 40 por cento da riqueza mundial. O Homem
tem que saber dar a volta à situação. Não é digno falar-se em
democracia, enquanto tanta gente morre à fome. A palavra democracia está
maltratada, em todo o mundo.
O exercício da democracia está a
atravessar uma crise?
Quando me falam em liberdade eu digo: «Liberdade em quê? Votar?». Sim,
mas não chega. É preciso reforçar o espírito de cidadania, ser mais
exigente com as elites, que falham muito. No fundo falhamos muito, em
todos os sectores. Portugal devia fechar uma semana para balanço.
Devíamos fazer alguma introspecção: o que somos capazes de fazer? O que
já fizemos de bom? E depois de reflectir, arregaçar as mangas e ao
trabalho. Nos somos capazes, Santo Deus. Cruzo-me diariamente com gente
muito competente e cruzo-me também com gente muito medíocre, mas o
problema é que são os medíocres que mandam...
Porque é que diz que Portugal é um
país que ainda está em amadurecimento democrático?
Não se esqueça que não há muito tempo Salazar ganhou um concurso
televisivo. Isto só é possível porque a democracia está carente. Há
muitos saudosos da fome, da guerra, da ignorância, da Pide, da censura e
das terras sem luz e água. É uma minoria, é certo, mas não deixa de ser
pouco lúcido. As pessoas esquecem-se que a democracia dá muito trabalho
e responsabiliza. Na ditadura há alguém que pensa por nós, enquanto na
democracia temos de pensar todos e nunca ver como inimigo os que não
pensam como nós. Infelizmente, nalguns casos, na sociedade actual, quem
decide são os «filhotes» do Salazar que ocupam lugares de decisão.
O sistema do Estado Novo não foi
completamente expurgado da nossa sociedade?
Não se expurgam 50 anos de ditadura em 33 anos de democracia. São três
gerações. As pessoas deviam ser intervenientes civicamente mas
instalou-se, de novo, o medo. Teme-se dar opiniões. Existe o temor de
represálias. Devemos todos fazer um esforço para tentar ser mais livres
e evitar transmitir rancores e mágoas aos nossos filhos. Nós somos
capazes. E prova disso é que quando nos metemos a sério em algo fazemos
bem. E insisto: o defeito está nas elites.
Porquê essa sua insistência?
Se o operário português é excepcional dirigido noutros países porque é
que ele não é excepcional em Portugal? O defeito não está no operário.
Que quota parte de responsabilidades
tem a classe política no país adiado que somos?
Com algumas excepções pontuais, os partido políticos falam para dentro
de si próprios. Deixaram de comunicar ou comunicam mal com a população.
Também deviam fechar um tempo para reflectir sobre isso. Não é possível
fazer democracia sem partidos políticos capazes.
Faltam líderes políticos com visão
estratégica?
Temos gente interessante em Portugal que recusou cargos políticos, uns
porque optam pelo dinheiro e outros porque não se querem incomodar. Há
políticos que têm o sentido de serviço público, mas o problema é que
ficam diluídos. Um amigo meu alemão que esteve a passar férias em
Portugal fez a seguinte análise: «vocês falam demasiado de vós
próprios». Ele fez, em poucas palavras, a descrição exacta.
Os profetas da desgraça que escrevem todos os dias nos jornais não
deixam pedra sobre pedra. Fica tudo no chão. Para eles, nada de bom aqui
acontece. O país está a duas velocidades, mas não estamos no quarto
mundo. Os acertos e as correcções não podem ser feitas lendo um jornal
com colunistas pessimistas que nos fazem encharcar um lenço de lágrimas.
Juntamente com a Justiça, o estado
da educação é responsável pelos bloqueios que o país sofre?
Subscrevo. Sou um homem de esquerda e gostaria que a esquerda
reconhecesse que em termos de educação cometeu grandes erros. Precisa
emendá-los. Na Justiça têm de ser feitos acertos. Há um sentimento de um
Estado dentro de outro Estado. Os portugueses sentem-se injustiçados,
começam a perder a esperança, porque se a Justiça não funciona o que é
que pode funcionar?
O sistema educativo tem estado
sujeito a convulsões várias, desde manifestações de professores,
violência escolar, etc. Esta instabilidade, aliada à escassa exigência,
permite formar jovens com valores?
Vou contar-lhe uma história com uma lição muito prática, que se passou
há pouco tempo, e que responde ao que me perguntou: fui almoçar com a
minha mulher e uns amigos a Sobral de Monte Agraço. Numa mesa próxima
estava um casal jovem, com muito bom aspecto, e duas crianças. Os
pequenos, pré-adolescentes, levantaram-se. Ao regressarem ao restaurante
quase chocaram com a minha mulher e uma amiga que tinham ido fumar à
rua. Nem uma palavra houve. A minha mulher deu-lhes uma leve e
pedagógica advertência pela acto. Fiquei atento à reacção dos pais e só
ouvi isto da boca deles para os miúdos: «não liguem!».
A família não deu o exemplo...
Não há professor que resista a isto. Toda a vida a educação começou em
casa. Não é a globalização que vai mudar isso. Porque estes mesmos pais
são bem capazes de ir à escola bater num professor.
Está apreensivo com a falta de
referências dos nossos estudantes?
Só espero que esta civilização não acabe com a função de os pais
educarem os filhos. A escola hoje é o espelho da violência doméstica,
que não é só exercida através do murro e do estalo, mas da coacção
psicológica e do modo como se relacionam as pessoas. Vivemos na era do
vazio. A televisão determina os relacionamentos familiares. Depois de um
dia de escola e de trabalho, o serão está condicionado por um jogo de
futebol, uma novela ou um telejornal. Os desígnios de felicidade foram
projectados para a compulsão do consumo de telemóveis, televisões e
automóveis, única e exclusivamente para impressionar amigos e vizinhos.
Vivemos uma situação de «faz de conta». Isso fará as pessoas felizes? O
que ganharão os seus filhos com isso?
Pensa que alguns pais, por falta de
apoio que dão aos filhos no dia-a-dia, se sentem na obrigação de
«comprar» os jovens?
Assistimos a isso. Vive-se naquele terror que se não lhes dermos o que
eles pedem, as crianças podem ficar mais debilitadas e expostas face a
situações sociais problemáticas. A família dá mostras de uma terrível
desagregação, o que me preocupa imenso. Eu não conseguia viver sem
família. Aliás, trocava 5 carreiras pela minha família.
Que impacto tem na educação uma
família em processo de desagregação?
Se a família não funciona na educação a escola vai receber esse impacto
brutal. Uma criança cujos pais saem de manhã e chegam à noite a casa,
ficando o dia todo no meio da rua, como é que ela se pode comportar na
escola? A sociedade em que vivemos é muito cruel e há muita modernice a
tapar a crueldade. Veja que foram todos a correr para o Rock in Rio, mas
falou-se pouco de música e mais de negócio. Ninguém se insurge por ter
vindo um brasileiro patrocinar um evento e chamar praticamente só
artistas estrangeiros, relegando os poucos portugueses para horas
impróprias. Não pode ser. Isto revela muito provincianismo. Com a idade
que tenho, não posso calar-me. Não me peçam para não ver. Está diante
dos olhos de todos.
Nuno Dias da Silva
Cara da notícia
Carlos do Carmo nasceu a 21 de Dezembro
1939, em Lisboa.
Aos 68 anos é a figura titular da canção nacional, reunindo o consenso
nos meios do fado, de puristas a progressistas.
Filho da fadista Lucília do Carmo, estudou hotelaria na Suíça, tendo
regressado a Portugal para gerir a casa de fados «O Faia», propriedade
dos pais.
Representou Portugal no XXI Festival Eurovisão da Canção em 1976, com o
tema Flor de Verde Pinho (baseado no poema de Manuel Alegre).
De entre muitas outras, as suas canções mais conhecidas são: Os Putos,
Um Homem na Cidade, Canoas do Tejo, Lisboa Menina e Moça, Duas Lágrimas
de Orvalho e Bairro Alto.
Visto como o «senador» do fado em Portugal, rapidamente ganhou projecção
internacional. Representou Portugal em inúmeras digressões por vários
países, passando pelo Olympia de Paris, pelas Óperas de Frankfurt, de
Wiesbaden, no Canecão do Rio de Janeiro, no Savoy de Helsínquia e por
outras cidades, como São Petersburgo, Copenhaga, São Paulo, entre
outras. A nível nacional destacam-se os concertos na Fundação
Gulbenkian, Mosteiro dos Jerónimos, Casino Estoril ou no CCB.
Pontifica também como pioneiro na nova discografia portuguesa devido ao
seu disco Um Homem no País, que foi o primeiro CD editado por um artista
em Portugal.
Em 2007, foi distinguido com o prémio Goya para a melhor canção
original, «O Fado da saudade», no filme «Fados», de Carlos Saura. No
mesmo ano, apresentou no dia 7 de Novembro no Museu do Fado, em Lisboa,
o seu último álbum, «À Noite», que já vendeu mais de 35 mil discos.
Contudo, a sua carreira teve vários contratempos físicos. A queda de um
palco em Bordéus, um aneurisma e problemas cardíacos já o deixaram entre
a vida e a morte. «Nasço todos os dias», confessou ao Ensino Magazine
o cantor que diz «gostar de gostar de pessoas».
LUÍS AFONSO EM ENTREVISTA
Um cartoon vale mais
que mil palavras
Com a escola confessa não ter tido uma
relação boa e chegou mesmo a ter negativas a desenho. Para a
Universidade foi atrás das cantigas dos melhores e o curso de Geografia
foi o visto de entrada na Faculdade de Letras onde José Afonso, Sérgio
Godinho e José Mário Branco iam cantar.
Luís Afonso é um dos melhores e mais carismáticos cartoonistas do país.
Em entrevista ao Ensino Magazine, fala da sua carreira, do ensino e do
país.
Os seus cartoons estão em
publicações como Público, A Bola, Sábado, Sol, Jornal de Negócios. Onde
procura inspiração para toda esta criatividade?
Como os cartoons em causa são praticamente todos sobre a actualidade, a
inspiração acaba por vir dessa mesma actualidade. O facto de serem
várias actualidades (política, sociedade, economia, futebol, etc.)
permite-me distribuir os temas pelas diversas publicações, o que me
facilita a vida. Ainda que às vezes os temas se misturem uns com os
outros, a política no futebol, o futebol na economia, a economia na
política...
O Bartoon, a tira do jornal do
Público tem 15 anos de existência, já passou para os livros e até para
uma peça de teatro. Como é que começa o Bartoon?
O Bartoon começa com o convite do Público para apresentar uma proposta
para substituir o Sam, o autor do Guarda Ricardo. Era admirador confesso
do Sam e senti uma enorme responsabilidade. O Guarda Ricardo era um
personagem muito forte e na altura tento criar uma situação sem ter um
personagem fixo. Imaginei o Bartoon, um bar onde passassem várias
personagens e onde nenhuma delas tivesse força para se manter. Se
tivesse feito um qualquer personagem, a primeira tentação das pessoas
seria fazer uma comparação directa com o Guarda Ricardo e obviamente
qualquer coisa que eu fizesse sairia a perder - até eu próprio votaria
contra. É com os anos que o barman consegue conquistar o seu espaço como
personagem.
Quais são as exigências colocadas ao
trabalho de um cartoonista?
Há uma grande diversidade a nível de trabalho no cartoon. Pode-se
trabalhar várias situações sem ter a ver com a actualidade, - às vezes
também o faço, apesar de não ser muito frequente - ai diria que as
únicas balizas que existirão será o bom gosto. Mas isso será um
denominador comum a qualquer arte.
Quando estamos a falar do cartoon no sentido de trabalhar sobre a
actualidade, factos - agora com o novo acordo ortográfico seriam "fatos"
- as exigências que há para o cartoonista são as mesmas que existem para
um jornalista, com um dado adicional que será introduzir uma componente
de humor, - ou não. Também se pode fazer um cartoon só para chocar,
levar as pessoas a pensar. Apesar de nos meus cartoons tentar introduzir
essa componente humorística, uma vez por outra não o faço por essa opção
de despertar alguma consciência, para abanar. E outras vezes não têm
humor porque não o consigo ter, também pode acontecer.
A personagem Mafalda, do argentino
Quino é mais famosa que o próprio autor. Não receia ser apagado por um
funcionário de bar com bigode, pelo dono de uma barbearia, ou pelo
Lopes, o tal repórter pós moderno?
Nesse aspecto até não me importava nada de ser apagado. Não faço
intenção de existir muito, quero existir um bocadinho. Não sou muito
afirmativo a esse nível. No meu dia-a-dia, na minha forma de estar,
pretendo encontrar-me fora do centro das coisas. Normalmente não vou a
lado nenhum, não apareço em nada, é raro verem-me em qualquer lado. Vivo
por opção em Serpa, que não é a minha terra, mas estou cá há vinte anos,
para estar um bocadinho à margem e porque gosto de estar aqui. Como não
tenho nenhuma sede de protagonismo, absolutamente zero, ou até talvez
menos de zero, a minha vontade é mesmo não aparecer. O facto de me
conhecerem as personagens e não me conhecerem a mim é bom, significa que
as personagens terão o impacto suficiente para as pessoas falarem delas
e eu consigo fazer o meu papel bem, ou seja , passar despercebido.
Eduardo Prado Coelho afirmou sobre
si: "Luís Afonso criou um universo próprio e um estilo de intervenção
que desde já faz parte da história da imprensa portuguesa em regime
democrático." É um autor comprometido com o mundo ou procura uma leitura
mais distante para poder criar?
Comprometidos com o mundo estamos sempre. A partir do momento que isso é
algo que não nos é dado escolher, nós nascemos e estamos cá, metidos
nisto, todos no mesmo barco. Tudo o que acontece no mundo, nós somos
parte integrante, causa e consequência. Com a globalização e a Internet
neste momento não há lugares periféricos. Há trinta, vinte anos - se
calhar nem tanto - olhávamos para o mundo e os pontinhos correspondentes
às principais cidades eram os pontos centrais, e algumas cidades seriam
periféricas em relação às outras. Ou seja, Lisboa era um centro, mas
seria periférico em relação a Paris, Nova Iorque. Com a globalização e
as novas tecnologias, não existem centros à escala da informação e do
trabalhar sobre ela, qualquer pessoa em qualquer ponto do mundo consegue
ser interveniente.
Não me sinto nada periférico em relação a Lisboa e não vejo que Lisboa
seja o centro de nada. As notícias que me chegam estando aqui ou noutra
parte do globo são iguais, consulto os mesmos jornais, a informação
chega-me da mesma maneira. Neste aspecto, a perspectiva física do estar
distante já não é uma situação que possa contar, tem de ser num plano
mental que nós nos afastamos dos acontecimentos.
Como se posiciona em relação ao seu
trabalho?
Se estivermos demasiado próximos do acontecimento não conseguimos ter
uma visão de conjunto. Há vários elementos de uma situação e se nos
envolvemos demasiado, alguns escapam.
Nos meus trabalhos tento o máximo possível afastar-me deles e até
utilizo uma das normas do jornalista. Em causa própria nunca devemos
intervir, não trabalhar sobre qualquer acontecimento em que sejamos
parte interessada. Mas há situações em que estamos envolvidos.
Acontecimentos políticos, quer nacionais quer internacionais e é a tal
história de que estamos comprometidos com o mundo. Somos cidadãos, somos
eleitores, e antes de ser cartoonista tenho as minhas opções. Agora o
que tento evitar é que as minhas escolhas preexistentes ao meu trabalho
me façam cegar e não me deixem ver outras perspectivas que lá estejam.
O tal provérbio inglês que diz, "Na
floresta não se vêem as árvores"?
No meu trabalho esforço-me por ser o mais cerebral possível e faço essa
gestão de uma forma muito simples, não mandar logo. Tento retardar o
máximo a fazer o cartoon, esticar o limite. Se posso enviar até
determinada hora vou usar essa prerrogativa mesmo até ao fim , para ter
mais tempo para amadurecer as ideais e para analisar o que se está a
passar.
Mesmo depois de fazer o cartoon, às vezes tento afastar-me esquecendo-me
que o fiz, leio e vejo se aquilo foi feito de uma perspectiva enviesada
ou não. E às vezes as primeiras coisas que faço não me agradam. Há
juízos de valor que são inaceitáveis, - sou muito crítico em relação ao
meu trabalho - e aí mudo, faço outras coisas. Não quero ser injusto e
quando antipatizo com uma pessoa - obviamente também tenho as minhas
antipatias pessoais, todos temos - tento ao máximo que isso não
transpareça. Em relação aos políticos, analiso só o que eles fazem, tudo
o que é derivado da sua acção, e nunca o que eles são em si. Eles
podem-me irritar muito, e há aí um que me irrita mesmo muito, - tem um
tom de voz impossível. Mas eu esqueço-me disso quando estou a fazer os
cartoons.
Trocou uma carreira de professor de
Geografia pelo Cartoon, os meridianos e os paralelos deram lugar às
tiras. E o objecto de estudo é ainda o planeta terra?
De uma certa forma sim. Se calhar tenho uma perspectiva mais geográfica
hoje, que faço cartoons, do que tinha quando fui estudante de Geografia
e talvez mesmo quando fui professor de Geografia. Quando andei a estudar
era objectivamente tonto, não fui com a atitude correcta para a
Faculdade, fui numa perspectiva completamente lúdica. Diverti-me imenso.
Nos seus tempos de Escola como eram
os bonecos e as histórias que desenhava?
Quando era miúdo só desenhava em casa, fazia histórias, bandas
desenhadas. Na escola fazia o pior possível, sempre tive uma relação um
bocado esquisita com a Escola, e normalmente até tinha negativas a
Desenho. Aquela história de desenhar as paisagens que supostamente devia
estimular muito as crianças, a mim não me estimulava nada. As paisagens
que toda a gente fazia, a casinha, um campo verde, e o céu, irritavam-me
imenso. Achava que era um trabalho parvo, estar ali a desenhar aquilo,
então fazia um risco, punha a casa e escrevia verde no sítio que era
para ser verde, escrevia azul no sítio do céu. Entregava assim e
obviamente o professor dava-me a negativa correspondente.
"Não sei por onde vou, sei que não vou por aí", como dizia o poeta José
Régio, foi algo que a Escola me ensinou. Ensinou-me tudo o que e não
queria. Como não encontrei o que faço na Escola, é o que sou. Em 2008
devíamos estar numa situação em que a escola fosse diferente. Se me
pusesse aqui a desfiar situações que não concordo, enchíamos aí dois ou
três jornais. Há muita coisa que não faz sentido. A matéria de Português
tende a destruir algum gosto que os alunos possam ter pela leitura, a
forma como está construída a matemática, sempre num plano abstracto,
nunca leva os alunos a entusiasmarem-se pela disciplina, e por aí
adiante.
Quando foi professor tentou ser um
professor diferente?
Sim, acho que fui melhor professor do que fui aluno. Tentei fazer as
coisas de uma forma diferente, e orgulho-me de ter conseguido isso em
certa medida. Alunos meus conseguiram ter dos melhores resultados - não
foram todos obviamente - mas tive alguns casos de excelentes resultados
a nível de Distrito, em exames nacionais. Consegui que alguns fossem
para carreiras que à partida não estariam destinados e que de alguma
forma os possa ter influenciado de forma positiva.
Porquê é que eu acho que fui um professor melhor do que fui aluno,
porque conheci o outro lado, a falta de interesse pela Escola. Tirei um
curso e era fatal que o tirasse. Cresci num meio em que a única
alternativa que tinha era um curso superior. E tirei-o sem qualquer
ruído. Hoje sinto-me mais ligado à geografia do que nos anos da
Faculdade, em que não estava minimamente desperto para aquilo.
O que é que levou a escolher um
curso de Geografia?
Não ligava muito à Escola, e na altura estava a acabar o 10º ano,
11ºano, que era científico e naturais - que dava para tudo e mais alguma
coisa. Uma amiga minha, mais velha do que eu, tinha entrado na
Universidade, estava na Faculdade de Letras e disse-me que aquilo era
impecável, havia greves, grandes confusões, e o Zeca Afonso, o Sérgio
Godinho e o José Mário Branco iam lá cantar. Eu pensei, isso é que me
interessa, ir para um sítio desses. Só que era a Faculdade de Letras e
eu estava em ciências. Andar para trás e escolher humanidades, iria
perder dois anos e era uma coisa quase impraticável. Até que ela um dia
me disse que havia lá um curso de ciências que funcionava em Letras,
Geografia. E quando chego à Universidade - por acaso até entrei com uma
nota bastante razoável - perguntaram-me quais as razões de ter escolhido
o curso e deviam estar à espera que lhes disse-se autores que me tinham
influenciado mas quando lhes respondi "ouvi dizer que o Zeca Afonso, o
Sérgio Godinho, e o José Mário Branco vinham cá cantar", olharam para
mim e pareciam que estavam a olhar para um alien, um maluco. Este é o
quadro mental através do qual entro na Universidade. Fiz o curso nos 4
anos, acabei sem problema nenhum, mas andei lá a levitar, "na boa".
Os nossos políticos dão bons
cartoons?
Nos cartoons procura-se aquilo que não funciona, as situações que estão
mal são o que temos para pegar. O que está bem normalmente não é
caricaturável, é muito mais difícil satirizar qualquer coisa que seja
perfeita. Nesta perspectiva o nosso país e o mundo são óptimos para
trabalhar, porque são extremamente imperfeitos e nada disto funciona.
Aquilo que me interessa como cidadão não é propriamente o que me
interessa como cartoonista. Como cidadão interessa-me que o país e o
mundo funcione, por outro lado, e ironicamente, o meu trabalho como
cartoonista fica facilitado quando isso não acontece.
Eugénia Sousa
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