Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano XI    Nº122    Abril 2008

Entrevista

DIOGO INFANTE, DIRECTOR ARTÍSTICO DO TEATRO MARIA MATOS

Transformação social exige mais participação

Não basta apontar o dedo, é preciso agir. É este o repto que Diogo Infante deixa aos cidadãos. O actor acrescenta que somos, ao mesmo tempo, vítimas e cúmplices das atitudes e medidas levianas dos políticos e que é preciso mudar mentalidades na raiz. Infante defende ainda que se estimule desde tenra idade a interiorização de valores culturais e que o progresso de Portugal depende da capacidade de sonhar e agarrar oportunidades. O director artístico do Teatro Maria Matos, em Lisboa, estreia em Setembro o musical «Cabaret», um projecto para o qual procura desesperadamente a Sally Bowles portuguesa.
 

O “Biography Channel” transmitiu recentemente um trabalho sobre os seus 20 anos de carreira. Que balanço faz do trajecto de um actor que é dos mais reconhecidos pelo público?

Estou muito satisfeito por ter investido numa profissão pela qual nutro uma profunda paixão. Sinto-me realizado, independentemente do sucesso alcançado. Penso, aliás, que o sucesso é uma medida dos tempos que correm devido à lógica mediática que orienta a nossa sociedade. Creio que não nos devemos deixar embarcar em ilusões.
 

Um boato levou a que a sua vida pessoal fosse alvo de enorme exposição. Pensa que a mediatização tem um lado cruel?

Absolutamente. A mediatização é um pau de dois bicos que tem o poder de nos promover e de destruir. Por um lado, permite que cheguemos ao público, mostrando o nosso trabalho. Noutra perspectiva, invade a nossa esfera privada e expõe de forma intrusiva o nosso lado mais íntimo. É difícil, por vezes, balizar esses limites.
 

Desempenha as funções de director artístico do Teatro Maria Matos (TMM) há quase 2 anos. Está satisfeito por este espaço se ter tornado uma referência cultural de Lisboa, com peças de teatro, concertos, exposições, música ao vivo e um café/bar?

Procurou-se criar uma identidade artística capaz de seduzir e chamar a atenção sobre si, assente na qualidade dos projectos, amplidão e frescura do espaço que é este «novo» Maria Matos, baseado numa espécie de sofisticação urbana. O objectivo de devolver aos lisboetas as expectativas que eles têm relativamente à gestão dos seus recursos – afinal de contas estamos num teatro municipal –, parece-me alcançado.
 

O facto de gerir um teatro municipal impede-o de trabalhar a pensar numa elite?

Nunca teria essa ambição porque não sou elitista nas opções que faço como actor e como director teria dificuldade em trabalhar para essa franja. É preciso ir ao encontro dos gostos do público comum, sem contudo, fazer qualquer tipo de concessão ao padrão de qualidade, que deve ser preservado.
 

O público português está mais disposto a investir dinheiro num bilhete para ir ver um evento cultural?

Penso que sim. Há uma maior abertura e disponibilidade para questões culturais. Claro que existem alguns segmentos que permanecem inacessíveis, mas isso tem tudo a ver com uma formação de base. Gostaria de ver desenvolvido a nível nacional um projecto educativo que promovesse a arte, desde tenra idade. Se se estimular a necessidade de consumir arte precocemente, certamente a cultura será entendida como algo mais natural.
 

É urgente mudar de paradigma e educar para os valores culturais?

Sem dúvida. Defendo uma educação pela arte e em que as disciplinas artísticas deveriam ter um peso curricular mais forte. Porque acredito que, independentemente das áreas que as pessoas possam vir a desenvolver ao longo da vida em função das suas vocações, não há razão para que um matemático não possa ter uma sensibilidade artística grande. A sensibilidade, a imaginação e a criatividade são características essenciais ao desenvolvimento da natureza humana em todas as suas vertentes. Por isso, ao estimulá-las precocemente, será mais natural ouvir uma peça musical da mesma forma que gostamos de ver um filme. É preciso insistir nos hábitos menos fáceis de interiorizar.
 

Como gestor cultural, acha que a subsidiodependência é uma condição para ter projectos de qualidade?

A subsidiodependência não é exclusiva do nosso País. Há determinado tipo de projectos, nomeadamente no teatro, que não teriam capacidade de subsistir sem apoio. Por outro lado, acho para que o Estado se possa desresponsabilizar desse papel, tem que criar alternativas. A única hipótese, na minha perspectiva, passa por criar um sistema fiscal apelativo para que as empresas promovam uma aposta maior na arte e na cultura em geral. O Estado não tem sido amigo da cultura, porque tem preferido outras prioridades.
 

A par de uma nova atitude do Estado é preciso maior empreendedorismo das empresas?

Essa é uma das faces do problema. As marcas associam-se com facilidade a eventos de massas, como é o caso do futebol, a concertos rock, mas pouco mais se aventuram. Percebo que existe uma relação de causa-efeito e o impacto será diferente se estiver associado a um evento de grande magnitude. Tenho projectado para este ano um projecto de grande envergadura, chamado «Cabaret». Infelizmente, os meus esforços para angariar patrocínios não têm sido fáceis. Ainda não consegui seduzir uma empresa para patrocinar um evento que previsivelmente vai chamar muito público.
 

O busílis da questão reside na resistente mentalidade vigente?

É uma mentalidade cultural, económica e financeiramente resistente a projectos que escapam ao padrão normal dos seus investimentos. No fundo, a atitude das empresas acaba por reflectir a atitude do País perante os desafios e os problemas. Padecemos de um crescimento débil, de um mercado exíguo, e estamos sempre a trabalhar, inevitavelmente para um universo limitado. No Brasil, que é um país incomparavelmente maior, com 150 milhões de habitantes, a maioria das companhias de teatro sobrevive com apoios das empresas porque usam caras conhecidas das novelas, o que se torna um chamariz.
 

Descentralizar e levar o TMM a outras cidades de Portugal tem sido a política seguida. Recentemente esteve em Viseu e Guimarães com a peça «A Dúvida», na companhia de Eunice Muñoz. Qual é a sensação de representar para um público que reside em locais onde a oferta cultural é manifestamente escassa?

É uma sensação maravilhosa. A receptividade e o entusiasmo são muito grandes, mas a exigência também. Trata-se de um público ávido de ter acesso a um determinado tipo de espectáculo e dotado de mais preparação e educação cultural, e, como tal, também já «não come gato por lebre». A rede de auditórios e de teatros do País melhorou muito nos últimos anos e a digressão destas peças é, também, uma forma de rentabilizar os investimentos avultados.
 

Contracenar com Eunice Muñoz em «A Dúvida» foi um sonho tornado realidade?
 

Absolutamente. É-me difícil expressar em palavras aquilo que senti. A Eunice é um mito vivo e o expoente máximo da minha profissão. Sendo uma espécie de bênção, eu tento beber cada momento e cada minuto que passo com ela em palco. Desfruto ao máximo.
 

Disse que «Hamlet», que levou a cena no TMM, «consumiu-me a alma» e fala mesmo em experiência quase inumana. O lado mítico da peça confere-lhe esse carácter extraordinário?

É a dimensão avassaladoramente tortuosa que o personagem tem que de alguma forma condensa as múltiplas facetas e dúvidas da condição humana. A abrangência da personalidade do «Hamlet» constitui, invariavelmente, um desafio a qualquer actor. Foi como se estivesse fora da minha pele. Algo quase destrutivo. Exigiu de mim uma entrega por inteiro e a superação em termos profissionais. Dou-lhe um exemplo: imagine que ia cantar e tinha de interpretar a canção desde os muitos graves aos muito agudos. O resultado final foi recompensador, mas bastante desgastante.
 

Que espectáculo lhe falta trazer ao TMM?

Neste momento tenho as minhas energias concentradas no próximo projecto. Só vejo, oiço e penso no «Cabaret».
 

«Cabaret» vai ser a grande produção em 2008. Quer explicar o processo de recrutamento de novos talentos?

Vai ser transmitido um programa de televisão na RTP que nos vai ajudar a encontrar a protagonista, a Sally Bowles portuguesa, dentro de um leque de candidatos que podem ser profissionais ou amadores. Posteriormente, a produção do Maria Matos será autónoma. É uma enorme responsabilidade visto tratar-se em termos qualitativos de um dos maiores musicais de sempre, com um universo musical tão rico e eternizado pela maravilhosa interpretação de Liza Minnellli no cinema. Estamos a desbravar um território que não nos é muito familiar, mas, ainda assim, estou optimista.
 

Filipe La Féria tem sido o grande impulsionador destes musicais...

Com essa honrosa excepção, um musical é algo que não é muito feito por cá, o que nos confere margem de manobra para trabalhar e para encontrar o modelo que melhor se adequa ao nosso público.
 

Portugal é um viveiro de talentos ocultos que só emergem a espaços com programas ou espectáculos como «Chuva de Estrelas» ou «Operação Triunfo»?

É tudo uma questão de proporção. Repare que nos Jogos Olímpicos conseguimos, em média, 2 a 3 medalhas, e já é um feito. Nas próximas Olimpíadas em Pequim os mais fortes candidatos são a Vanessa Fernandes e o Nélson Évora, no futebol, temos o Figo, o Ronaldo e o Mourinho. No espectáculo, tivemos uma Amália, agora temos uma Mariza. Ou seja, ciclicamente, temos pessoas que se destacam, mas na proporção da nossa dimensão enquanto País. No caso particular do teatro penso que existem muitos talentos. No «Cabaret», o grau de exigência será maior porque procuramos alguém que não só saiba cantar, mas que consiga encantar, demonstrando o potencial de uma estrela, capaz de representar e protagonizar um musical ao vivo para uma plateia de 500 pessoas, todas as noites. Esta vertente profissional é inédita em Portugal e creio que é a grande mais-valia deste espectáculo.
 

Quanto tempo vai estar «Cabaret» em cena?

Durante quatro meses aqui no Maria Matos, com início previsto para Setembro. Não excluo a hipótese de o espectáculo percorrer posteriormente algumas cidades do País, mas é um caso a pensar devido à logística envolvida.
 

Falemos agora de cinema. Participou em «Tentação», um do maiores êxitos de sempre de bilheteira. Recentemente, «Corrupção» e «Call Girl» tiveram uma adesão massiva do público. Pensa que a receita de sucesso se baseia em argumentos mais ou menos baseados na realidade, com pitadas de sensualidade e sexo à mistura?

Não me choca nada que estas temáticas sejam matérias de carácter dramatúrgico para o cinema. Vejo com naturalidade. Só fico surpreendo por este filão não ter sido explorado mais cedo. Há muito que o cinema americano encontrou na sensualidade, na sexualidade e noutros temas apetecíveis, matéria-prima para trazer ao cinema. O essencial está em saber se se faz com bom ou mau gosto, melhor ou menor talento. No fundo, termos capacidade para olhar para a nossa corrupção, a nossa sexualidade e a nossa existência, são sempre mais valias.
 

Significa isso que os portugueses estão menos conservadores?

Também. E que há outro tipo de preocupações a emergir no cinema. Incomodava-me muito mais quando antigamente havia determinado tipo de cinema cujos autores assumidamente diziam que não estavam interessados no público. A arte e a comunicação, como formas de expressão, só fazem sentido se forem pensadas para os espectadores. Os quadros e os filmes têm de ser vistos, os livros têm de ser lidos, etc. Admito que dos filmes que existem surjam exemplos menos felizes, mas da quantidade também surge, proporcionalmente, a qualidade.
 

Foi o rosto de uma campanha de sensibilização sobre os malefícios do tabaco, em que contou através do seu testemunho real o processo para deixar de fumar. Acredita na eficácia destas campanhas?

As figuras públicas conseguem veicular uma mensagem de forma mais eficaz e se a campanha for bem projectada é provável que o público capte o essencial e de forma clara, sobre o que se quer transmitir.
 

Agora como não fumador, como encara a nova Lei do Tabaco?

Com naturalidade. Há uns anos também se dramatizou a obrigatoriedade do uso de cinto de segurança e hoje em dia já ninguém questiona. Também aqui o processo de adaptação terá de se fazer. Dentro de 1 ou 2 anos ninguém falará desta lei. Na Europa, a generalidade dos países tinha há uns anos uma lei de natureza restritiva. Agora que deixei de fumar devo confessar que é muito agradável estar em ambientes livres de tabaco. Mas como em tudo na vida é uma questão de bom senso. Não pode haver excessos. Fico preocupado porque a Lei do Tabaco não prevê uma excepção para os espectáculos. Estou na expectativa para ver como se vai tornear esta questão. No estrangeiro isso está previsto, aqui em Portugal ninguém pensou no assunto e, a solução imediata, é proibir. Continuamos a oscilar demasiado entre o 8 e o 80.
 

Apresentou na RTP um programa chamado «Cuidado com a Língua». Acha que tratamos mal o nosso idioma?

Não falamos bem, mas em termos comparativos com os ingleses ou os espanhóis, não sei se estes tratam igualmente de forma correcta a sua língua. Apesar de tudo estamos sensibilizados para preservar um património imenso que é o legado do que é a quinta língua mais falada em todo o mundo. A língua evolui, sofre mutações, há que aceitar os estrangeirismos e seguramente o acordo ortográfico vai manter a questão acesa e actual.
 

Diz-se que a Educação e o ensino são o espelho da nação no que ela tem de mais negativo, na ineficácia, no desperdício e no mau desempenho. Quais as motivações na base deste fracasso que a todos penaliza?

Confesso que não sei precisar se existem mais responsabilidades neste sector nos 33 anos que levamos de democracia ou nos 50 anos anteriores de ditadura. Somos o resultado de uma evolução, mas também de determinados contextos históricos, políticos e sociais. Agora, integrados na União Europeia, estamos numa fase de abertura, modernismo e vanguardismo e sinto que somos cada vez mais europeus.
 

Ainda assim com desempenhos que nos deixam na cauda da Europa...

Não tenho a capacidade para identificar os problemas do sector. Mas penso que devíamos ter uma educação mais assente nos valores, no fundo, mais estruturada e mais pensada. Acho que se tomam medidas com alguma dose de leviandade, quando está em causa a formação, a educação e o futuro de gerações inteiras.
 

Aponta-se o dedo à classe política pelo que fez ou deixou de fazer. Que responsabilidades lhes imputa?

Eles são culpados, mas nós também não podemos fugir da responsabilidade que é sempre eleger políticos e colocá-los nos lugares de decisão. Porventura, somos mais cúmplices do que vítimas. Temos é o direito a reivindicar uma melhor educação para nós e para os nossos filhos. Pede-se um papel mais activo e participativo nas transformações sociais. Se não estamos contentes, temos de exigir.
 

Carlos do Carmo disse que Portugal está em processo de «amadurecimento democrático». Concorda?

Sem dúvida. Esse é um processo lento que se relaciona com a questão da cidadania, uma matéria para a qual não estamos suficientemente despertos ou atentos. Por isso, os direitos e os deveres tardam em ser cumpridos como deviam ser. Os exemplos são múltiplos: não podemos exigir uma cidade limpa se continuamos a atirar beatas e detritos para o meio da rua. Há lógicas e mentalidades que têm de ser alteradas na raiz.
 

O conceito tradicional de escola está em crise?

Existe uma crise com génese na transformação e há outra crise com origem na ineficácia da própria estrutura, sendo esta última particularmente grave. Quando as condições para as pessoas potenciarem as suas capacidades são deficitárias, há muita coisa em jogo que fica em xeque e é sinal de que algo não está bem. Não basta apontar o dedo e dizer que está mal, o contributo tem de ser colectivo, com cada um de nós a assumir a nossa quota parte de responsabilidades. Não esquecer que a educação começa em casa, por isso não basta exigir unicamente da escola.
 

Os dados do INE revelados em Fevereiro indicam 66 mil licenciados desempregados no último trimestre de 2007, o que representa mais nove mil do que em igual período de 2006. Como resolver este problema?

Quando me formei há 18 anos essa questão já se colocava. O fenómeno tem-se acentuado, com a preferência dos alunos a ir para profissões mais apetecíveis, relacionadas com os cursos de lápis e papel. Por outro lado, há profissões com um elevado défice na oferta. É preciso fazer ajustes. Na generalidade das pessoas nota-se que, num mundo global e profissional, profundamente competitivo, tenta-se, meramente, sobreviver. O mercado de trabalho é cruel, o período de maior produtividade é curto e as pessoas são descartadas muito cedo se não rendem. A resposta depende do grau de preparação, sacrifício e investimento pessoal de cada um, nas suas respectivas áreas.
 

É assim também no meio artístico?

No meio artístico não são forçosamente os mais talentosos que vingam, mas os mais perseverantes. E esta forma de estar é extensível a outras profissões.
 

Perante um cenário cheio de nuvens ameaçadoras pensa que este País tem futuro?

Claro que tem. Gosto muito de ser português. Podíamos estar bem pior ou bem melhor, mas aprendi a dar valor àquilo que tenho e a dar o meu contributo. Recuso-me a enveredar em fatalismos. As limitações do País deviam motivar-nos a trabalhar mais para suprir as lacunas existentes. Tudo depende da nossa capacidade de sonhar e de agarrar as oportunidades. Há 500 anos atrás fomos capazes. Porque não fazer agora? Só se conseguem resultados correndo riscos.

Nuno Dias da Silva


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