Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº109    Março 2007

Opinião

CRÓNICA

Sanae Sem

O que mais me prendia na novela chamada OPA sobre a PT – independentemente da preocupante consequência a nível económico/financeiro para o país – era o futuro de milhares de trabalhadores, caso a Sonae vencesse, sem querer dizer com isso que, neste particular, a PT é um poço de virtudes.

Tal não aconteceu e eu posso sossegar durante mais alguns dias. Ao que parece, Belmiro não tinha tanto euro como se diz (ver condicionantes da sua última proposta) ou não quis pagar mais pelas acções. Porventura esperaria mais Telefónicas do que a propriamente dita.

E como a memória é prodigiosa! Do que eu me fui lembrar:

Em Castelo Branco, as Segundas-feiras são, desde que me lembro, dias de mercado.

No sítio apropriado levantam-se barracas, apregoa-se de tudo um pouco, vende-se barato e contrafeito, trata-se da vidinha.

Em boa verdade, também os comerciantes locais se preparam para receber um maior afluxo de clientes que, vindos das aldeias e vila vizinhas, estão mais dispostos a gastar os cada vez mais parcos proventos no dia de mercado.

Antigamente, Segunda-feira de fraco negócio pronunciava desde logo uma má semana ou um mau mês. No caso contrário, uma boa Segunda-feira, por si só, safava a semana inteira.

Nem todos precisavam de se evidenciar, mas a maioria do centro da cidade lavava previamente montras e vitrinas (Sábado à noite), punha fora de portas os seus artigos mais exclusivos, mais recentes ou, como dizia o meu pai, os que estavam mais em conta, que era eufemismo de mais barato.

Havia também os que não tinham necessidade de fazer grande alarde da mercadoria posta à venda. Eram casas de referência e clientela fidelizada, que não carecia de propaganda para comprar ali o que lhe aprouvesse.

Nesta categoria estava uma conhecida ourivesaria, outrora farta, escola de ourives e relojoeiros que, como quase tudo na vida, vivia já uma fase de negligência, pois o proprietário raramente aparecia no estabelecimento, devido às maleitas da idade e o filho, pouco dado às coisas do comércio, comportava-se de forma às vezes bizarra e tinha pouca pachorra para aturar os clientes menos decididos.

Num certo certo dia de mercado, o nosso homem já farto de responder ao quanto custa e ao faça lá um desconto, deparou-se com uma idosa, vestida à moda da aldeia, interessada na compra de um par de brincos. A mulher viu e reviu, colocou-se frente ao espelho para apreciar o efeito dos pendentes que melhor iam com a imagem que de si queria fazer e, por fim, perguntou:

- Quanto custam estes?

O seu interlocutor, em vez de responder como lhe competia, com certeza sem vontade de se deslocar para confirmar o preço, farto da loja, da velha e sabe-se lá mais do quê, atirou-lhe cinicamente:

- Ó mulher, vá-se embora, você não tem dinheiro para isso!

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

A tua boneca, a minha baioneta

Ao abrir uma caixa que cabia na arca vi a tua boneca, e vi como dantes a boneca de pernas abertas em cima da tua cama, os olhos esbugalhados virada para a janela, no quarto da frente.

Vi o sol derramado na colcha de entremeios cor de rosa desmaiado, e vi a amostrar do colchão uma ponta felpuda em xadrez rosa e branco no direito, liso pelo avesso no mesmo rosa, embainhada com uma fita noutro tom de rosa a condizer. 

Vi tudo sem estar a sonhar. 

Por mera coincidência, ganhando poeira pelo pouco uso, no fundo da arca jazia enterrado um cobertor cor de mel. Um cobertor fabricado com os retalhos das camisas tv, no saco de plástico da embalagem original os sinais da inconfundível marca Cober.

Durante muitos anos pensei, o Cober deve ser o único cobertor que existe no mundo, logo a seguir ao capote do meu avô Sapateiro enforcado num prego aos pés da cama, e às mantas vermelhas de lã que picam na cara e nas mãos, aonde me embrulhavam para curar do sarampo e livrar das bexigas.

Tendo as memórias encaixotadas, umas resguardadas em formol outras em naftalina, a memória que vejo aos saltos na arca é a memória dos primórdios da fábrica, muito antes da fábrica vir a ser a fábrica das mantas famosas que foi. 

Dos ferros retorcidos calcinados pelo fogo, empilhados a um canto. De noutro canto da fábrica ardida, de num casebre, da forja do Domingos Ferrugem. 

Das manchas de sombra das paredes de pedra caiadas, mascarradas de fumo. Do sol a projectar no chão buracos de luz rectangulares, desenhados de onde tinham sido as janelas e dos cambiantes do piso degradado, coberto de nódoas de óleo muito antigas.

De onde aramávamos as brincadeiras com os espalha-brasas que vinham da escola, em direcção à Fonte do Seixo, e das sacolas deles de pano a tiracolo. 

De entre os salvados e os montes do entulho, do colector de escape do motor a gás pobre, do motor que tocou a linha mestra das fiações da Romãozinho & Ferreira ou da Matos & Romãozinho, ou seria da primeira fábrica de todas, a da Barôa, como chamavam à fábrica do Barão, que o pai e os tios compraram com dinheiro emprestado.

De por ali andar em correrias a discorrer resguardados dos perigos da Corga e do Poço da Bomba por um portão feito em rede de capoeira, e da rede acertar pregada em três costaneiras. A empurrar o arco guiado pelo travão feito no arame grosso dos fardos prensados, importados de Inglaterra, os fardos dos desperdícios das malhas de lã. 

De apartar por cores os desperdícios, na mesa de ripas, e de meia distância de encestá-los para dentro das sacas junto à Trutzschler. 

De o ti’ António Neves Maneta, guarda e o tratador do Cata Agulhas, a ensacar os retalhos esfarrapados com o coto e com a mão, e dele a fechar as sacas com uns grampos de aço aguçados, ou de rematar a boca das sacas com dois nós de tecelão, usando a agulha de enfardar enfiada a sisal, só com uma mão. Da sua grande destreza. 

De junto à esfarrapadeira desses fardos enormes camuflarem surpresas, das ceroulas de lã a estrear, em modelos defeituosos e tamanhos descomunais, dos retalhos escoceses em padrões originais, e do alfaiate, com as aparas dos tecidos nunca vistos, a tirar-me as medidas para uma camurcine e dois pares de calças pinantes.

De certa vez encontrar a imagem pesada de um santo zarolho e sem pés, um santo aleijado que ninguém conhecia.

Doutra vez achei uma baioneta do tempo da guerra, e do entusiasmo a mostrá-la, Olhem a minha espada, pertenceu a um soldado português na batalha de La Lys, de lamentar, Afinal não é de lá. 

De fazer fé na confirmação de um antigo combatente, regressado a casa fraco da cachimónia por ter sido gazeado nessa batalha. Do homem a esquecer-se da devolver quando a pediu para examinar em casa com mais vagar. Do melro a guardá-la dentro de alguma arca para sempre, com toda a certeza.

Ao abrir uma caixa que cabia na arca vi a tua boneca, a minha baioneta nunca mais vi.

António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com

 

 

 

OPINIÃO

De Manchester a Silicon Valley

Foi criada recentemente a Parkurbis Gene, uma estrutura que junta dez empresas brasileiras produtoras de programas informáticos. A partir do Parkurbis, local onde a actividade vai ser sedeada, estas empresas brasileiras pretendem lançar-se no mercado europeu, procurando alcançar um sucesso semelhante ao que algumas delas já têm no mercado sul-americano.

São boas notícias para a região porque este conjunto de empresas poderá funcionar como âncora para outros investimentos. Nesta, como noutras áreas, a dimensão é importante e a instalação de várias empresas do ramo poderá facilitar a criação de um cluster na área das novas tecnologias. 

Mas também são boas notícias para os estudantes da UBI ligados à área das novas tecnologias, como Engenharia Informática, Design Multimédia ou Ciências da Comunicação. Desde logo, pelos empregos que possam surgir, mas sobretudo pela criação de um ambiente que incentiva os licenciados da UBI a lançarem as suas próprias empresas nas áreas do software e dos conteúdos.

Curiosamente, na semana em que nasceu a Parkurbis Gene foi também anunciada a criação de um clube de Business Angels na nossa região. Este clube é um grupo de investidores privados que, em nome individual, se disponibilizam para apoiar financeiramente projectos empresariais com potencial, mas que têm dificuldade em conseguir os financiamentos tradicionais. 

Se juntarmos a tudo isto os cursos de Empreendedorismo e a investigação desenvolvida na UBI, o apoio à elaboração de projectos disponibilizado pelo CIEBI, os espaços para instalação de empresas oferecido pelo Parkurbis e os apoios nacionais e europeus para as empresas ligadas a esta área, podemos dizer que estão criadas todas as condições para que brevemente a região possa ser um importante pólo de investigação e desenvolvimento de novas tecnologias. Com uma qualidade de vida apreciável e boas ligações rodoviárias aos grandes centros urbanos da Península Ibérica, a Covilhã reúne todas as condições para substituir o velho e ultrapassado epíteto de Manchester portuguesa pelo mais apropriado Silicon Valley português. Usando uma máxima do futebol pode dizer-se que agora só dependemos de nós próprios.

João Canavilhas

 

 

 

CONTRABAIXO

Bem haja Pinamonti

Nunca tive o prazer de conhecer Paolo Pinamonti. Quando chegou, há seis anos, para dirigir o Teatro de S. Carlos, único Teatro de Ópera em Portugal, não fiquei indiferente a um passado com momentos brilhantes, admirei a sua formação notável, mas acabei por seguir o seu percurso em Portugal a uma certa distância. Neste prelúdio, convém esclarecer que nos últimos dez anos fui apenas três vezes ao S. Carlos, a última das quais já na vigência da direcção de Pinamonti, há dois anos. Não sou, claramente, um espectador assíduo, mas segui sempre com muita atenção tanto a programação operática como todas as actividades complementares do Teatro. 

A primeira sensação relativamente ao quase ex-director foi extremamente positiva. Um homem que transpirava Mediterrâneo por todos os lados, uma mente reflexiva, pouco dada ao impulso fácil, e um conhecedor profundo do meio do teatro de ópera. 

A forma como foi programando, ao longo dos anos, o grande repertório com obras menos conhecidas e valorizando algumas óperas portuguesas mostrou-me que a primeira avaliação, tantas vezes errónea, era acertada. 

Mas será que o público respondeu a esta programação? Será que o Teatro se fechou sobre si mesmo? Porventura ignorou os cantores portugueses? Será que Pinamonti se instalou como um corpo estranho a Portugal? A estas perguntas só a primeira terá resposta positiva, pois todas as outras merecem um rotundo não. O quase ex-director parece ter sido uma escolha de alta precisão, honra seja feita a José Sasportes. Soube adaptar-se com extrema facilidade ao nosso burgo, muito dado às confusões, e transformou muitos problemas em fontes de criação, sempre com um elevado padrão de exigência. 

O que resulta é uma unanimidade crítica notável, pela positiva, numa área de enorme complexidade como esta, a da Ópera. Não só conseguiu montar sucessivas temporadas, com muitos pontos de interesse, como cativou o interesse de encenadores, cantores e críticos internacionais, fazendo com que o nome de S. Carlos voltasse a interessar o mundo musical. Tudo isto, pasme-se, com orçamentos que não subiam. 

Ainda por cima, Paolo revelava em muitas situações uma paixão e um gosto pelo nosso país, pelas suas paisagens e cultura que desarmava mesmo os mais cépticos. Para o meu ingénuo senso comum, com este conjunto de características e com as provas dadas, nunca este homem seria colocado em causa, pois a qualidade do serviço público que prestava aliado à forma como compreendeu e se adaptou ao país, teriam sempre primazia perante outros cenários. 

Mas não. Pinamonti vai embora. A história vai mostrar o quanto errada foi esta decisão do Ministério da Cultura. Sem ser necessário o crivo da história para ser avaliada, a forma como o mesmo foi informado da não continuidade na direcção do Teatro foi, no mínimo, indigna tendo em conta o seu desempenho, que a própria tutela reconheceu.

Por isso não me ocorre outra coisa que não seja o nosso tradicional Bem Haja, Paolo e volte sempre
.

Carlos Semedo 
carlossemedo@gmail.com 

 


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