JOSÉ BARATA MOURA,
EX-REITOR DA UNIVERSIDADE DE LISBOA
Querem apagar e
reescrever a história
Homem de canções que encantaram gerações e de outras que incendiaram a chama do período revolucionário, Barata-Moura confessa a “dor” de não pegar numa viola, apesar de «matar» saudades nas brincadeiras caseiras com os quatro netos. Apreensivo com a “Europa que nos querem impingir” e com as “tentativas de branquear a História de Portugal”, o filósofo afirma que “falta dinheiro” e “projecto” ao ensino superior e que as universidades não podem ser “linhas de montagem para o fabrico de licenciados”. Sobre a escola, em sentido lato, diz que está “desorientada”.
Foi Reitor da Universidade de Lisboa durante 8 anos, professor universitário, filósofo e deputado ao Parlamento Europeu, mas é a sua vertente de cantor-autor de músicas para os mais novos nos anos 60 e 70 que ainda se mantém na memória de várias gerações que cresceram a ouvir as suas composições. Como surgiram essas canções?
É preciso recuar até 1966 ou 1967, na altura em que eu namorava a minha mulher, que faz parte de uma família numerosa, e havia o problema de como ocupar 30 crianças entre o regresso da praia, tomar banho e jantar. De forma improvisada, comecei a construir umas histórias e nasceram as primeiras canções que seriam depois compiladas no álbum «Olha a Bola Manel».
“Joana come a papa”, foi uma das músicas de maior sucesso, e é uma expressão que, ainda hoje, se ouve amiúde, 40 anos depois. Essa Joana existe mesmo ou é ficção?
A Joana existe mesmo. Na altura, ela era a mais nova do grupo. Eu e a minha mulher ficávamos com vários miúdos da família em casa durante o fim de semana e sinceramente não era tarefa fácil fazer com que a Joana comesse a papa. Esse foi o mote para a canção.
Como é que se sente quando hoje ouve “Joana come a papa”?
Os meus sentimentos são mistos e contraditórios. Naturalmente que fico emocionado com aquilo que as pessoas me dizem, especialmente os que são hoje mais velhos e que passaram por essas cantigas, mas não esqueço as reacções dos mais pequenos que travaram conhecimento com as minhas músicas através dos CD’s que recentemente foram editados. Há outro aspecto não tão positivo que é o facto de eu não ter resolvido comigo mesmo o abandono das lides musicais, enquanto cantor e compositor. Sempre tive demasiadas ocupações em simultâneo e, enquanto jovem, durante 20 ou 30 anos, consegui conciliar todas as actividades. Mas confesso que é para mim doloroso não pegar numa viola.
Não tem pegado na viola nem para tocar para a família?
É muito raro. Não me dá especial prazer em reproduzir ou revisitar coisas que eu já fiz há algumas dezenas de anos. Criar e inovar é o que me motiva. Especialmente cantar para os amigos mais pequenos requer uma disponibilidade e uma gestão de tempo que permita entregar-me à brincadeira. Infelizmente, os anos
pesam... mesmo com os meus netos isso já se torna difícil.
Canta para eles?
Às vezes. Eles geralmente escolhem o que querem ouvir e fazemos uma pequena brincadeira.
Nenhum deles se chama Joana ou Manuel?
Não. Tenho quatro netos, com idades compreendidas entre os 2 e os 3 anos. Há uma Madalena, um Francisco, uma Teresa e um Gonçalo.
O célebre aforismo dos revolucionários, “a canção é uma arma”, ainda se mantém actual?
O espaço da canção política de intervenção permanece intacto e é fundamental preservar, já que através do canto de intervenção podemos contribuir para a descoberta do mundo, trilhando itinerários conjuntos de transformação da realidade. Uma vez que a História continua, o olhar critico sobre ela deve prosseguir. Logo, as formas estéticas (podem ser musicais ou poéticas) conservam a sua validade.
Abordando agora a sua vertente como filósofo. Como homem de reflexão, de que modo observa o Portugal de hoje à luz da dimensão dos valores?
Portugal é e será sempre aquilo que os portugueses, nas condições determinadas do próprio processo histórico, forem capazes de realizar. A construção de um projecto colectivo de sociedade faz-se através do esforço e do trabalho. Vivemos num mundo contemporâneo em que as apreensões se avolumam. Paradoxalmente dispomos de uma panóplia de instrumentos que nos permite tornar a Humanidade mais enriquecida, mas o que acontece é que somos quotidianamente confrontados com misérias, injustiças e assimetrias. Portugal não é diferente da realidade que se vive à escala mundial.
Temos um projecto colectivo?
Quando uma comunidade empenha as suas forças na realização de um projecto colectivo é essa atitude que faz a afirmação de um povo. A questão da soberania, por exemplo, não deve ser vista como a contemplação do umbigo, mas como uma participação activa na criação de grandes espaços. É preciso haver uma participação activa num diálogo de soberanias, designadamente no quadro da União Europeia. Nesse contexto, Portugal não pode abdicar da sua afirmação e identidade como povo, da história e da cultura.
O projecto europeu, rumo a um modelo federalista, pode perigar a soberana política portuguesa?
O mundo, tal como o temos neste momento, carece do diálogo dos povos, das culturas e das soberanias. Deve prevalecer a perspectiva de cooperação e construção conjunta e não de dissolução e submissão aos modelos hegemónicos dominantes. É nessa perspectiva que se joga a força, a qualidade e a capacidade estratégica das colectividades.
A ratificação de um Tratado Constitucional seria um passo em frente para a Europa?
Seria um erro estratégico. A força da Europa, desde há muitos séculos, sempre adveio da capacidade de promover, em termos culturais, sociais e políticos, o diálogo das
multiplicidades. Uma solução de tipo estadual/federalista vai seguramente, no imediato e a prazo, criar obstáculos à promoção de uma Comunidade Europeia dos Povos.
É um “eurocéptico”?
Não. Recuso a dicotomia entre os parolos do deslumbramento e os “eurocépticos”. O problema, neste momento, está em saber qual é a Europa que nos querem impingir...
Esteve como eurodeputado durante dois anos, no início da década 90. Como classifica essa experiência?
Foi bastante enriquecedora e permitiu-me somar um conjunto de experiências relacionadas com instituições, pessoas e problemas, que eu considero tiveram um papel decisivo, inclusive na minha própria formação.
“Os problemas do ensino superior não se resumem à falta de dinheiro, mas radicam igualmente na qualidade e no rumo do projecto delineado”.
Passaram 33 anos sobre a revolução de Abril e há poucas semanas voltou a questionar-se a vitalidade das comemorações de datas históricas e de simbolismo nacional. É da opinião que o espírito da revolução murchou?
Um processo revolucionário não acontece num só dia ou num determinado momento. É uma alavanca de uma determinada etapa histórica na vida das sociedades. É inegável que o 25 de Abril não resolveu nem apagou parte das contradições que cruzavam a sociedade portuguesa, mas também é verdade que posicionou a sociedade portuguesa num campo de desenvolvimento completamente diferente. É com alguma tristeza que vejo que querem apagar e reescrever completamente a História. Até parece que entre o tempo de Salazar e o tempo actual não subsistem diferenças, até de natureza estrutural. Não podemos é escamotear que muitos problemas persistem e outros, entretanto, emergiram, o que nos deve levar a fazer um uso esclarecido e firme da liberdade que, felizmente, desfrutamos.
Pensa que há tentativas para reescrever a História?
Completamente. Não se trata de um fenómeno exclusivamente português. Este processo tem origem no final da II Guerra Mundial, através de tentativas mais ou menos assistidas de promover branqueamentos vários do fascismo.
A polémica em torno do concurso “Os Grandes Portugueses”, que concluiu com a vitória de Salazar, é um exemplo do que está a denunciar?
Para começar, foi um macaqueamento de um formato que nem sequer foi inventado em Portugal. No que diz respeito à vitalidade criativa de um canal de televisão público, esta importação do tipo “chave na mão”, é algo bastante confrangedor. Para além disso, nem a História é feita de uma sucessão de grandes homens, nem este conceito tem uma extensão tão universal como aquela, que de forma ligeira e precipitada, se quis passar ao grande público. A concepção que sustenta e lança este concurso é bem mais grave do que o seu resultado final.
Falemos agora sobre outras referências nacionais. Portugal tem como referências indiscutíveis na cena mundial duas pessoas ligadas ao futebol, Cristiano Ronaldo e José Mourinho. É um bom, é mau ou é um sinal dos tempos?
É precipitado e abusivo dizer ou pensar que em termos globais são estas as duas referências do futebol que projectam a nossa imagem no exterior.
Trata-se de uma construção mediática?
O problema não se coloca dessa maneira, mas é evidente que os meios de comunicação social têm alguma responsabilidade. Seria grave pretender reconduzir a imagem colectiva de Portugal áquilo que é uma manifestação transitória num domínio particular, neste caso o futebol, mas podia ser a música, a economia ou a jardinagem...
Quando se refere às responsabilidades dos “media”, admite que o hoje denominado “quarto poder” tem uma extraordinária capacidade de persuadir as massas?
O principal “pecado” dos meios de comunicação social não está naquilo que dizem, transmitem ou publicam, mas sim, porventura, de modo mais subtil, na maneira como expõem os problemas, como definem as agendas e controlam de forma férrea os intervalos de variação que são admitidos. O busílis da questão reside neste ponto.
O debate foi relançado nos últimos meses a propósito da licenciatura do Primeiro-Ministro. Pensa que os “media” podem ser “domesticados” pelo poder político?
Independentemente de saber se determinado artigo foi encomendado por A ou B, importa realçar que os “media” fazem parte de um dispositivo de aparelhos ideológicos e, nesse sentido, a gestão da difusão de opiniões e perspectivas é uma matéria central na luta ideológica. Atente no seguinte: hoje procura passar-se a mensagem do esbatimento das ideologias, por esta ser uma das componentes de uma determinada maneira de travar a batalha ideológica, desvalorizando e apagando coisas tão fundamentais como as ideias, os pensamentos e os projectos de transformação, etc..
Um dos temas recorrentes é a qualidade dos políticos que nos governam. Concorda que a lógica dos aparelhos partidários evita que os melhores cheguem e se mantenham na política?
Não considero justas certas observações ao desempenho dos partidos. Há críticas que visam atirar pela borda fora a possibilidade de os cidadãos livremente se organizarem e actuarem no quadro de um associativismo em que possam integrar os partidos. Dispenso-me de comentar os “fait-divers” e se fulano é competente ou aldrabão, mas considero que numa democracia madura, informada e participada é extremamente importante uma actividade política com profissionalidade, mas que seja
também assumida, por pessoas que tenham experiência, enraizamento e compromisso com os diversos sectores da vida social.
Defende então os profissionais da política?
Acho que a política não deve ser exercida com amadorismo, mas haverá mais consistência se a função da tarefa política for sendo desenvolvida e protagonizada pelos que integram a própria colectividade. A política é demasiado séria para ser deixada nas mãos de políticos cujo horizonte de vida não transcende o exercício dessas funções. De uma vez por todas, a democracia deve ser vivida, praticada e conduzida por cidadãos e não por “soi-disant” especialistas.
Numa das raras entrevistas que deu, ao “Expresso”, em 2005, afirmou, enquanto Reitor da UL, que «temos dinheiro a menos há anos». Havendo dinheiro para tantos projectos nacionais, sejam eles de âmbito desportivo, aeroportuário ou turístico, entende que o poder político secundariza o ensino superior?
É preciso perspectivar o debate a partir deste princípio basilar: compreender o ensino superior público e contribuir para promover uma formação qualificada dos membros que integram a colectividade politicamente organizada, é uma responsabilidade do Estado.
Mas é sabido que “não se fazem omeletas sem ovos”...
Efectivamente os problemas do ensino superior não se resumem à falta de dinheiro, mas radicam igualmente na qualidade e no rumo do projecto delineado. As instituições são demasiado grandes e têm responsabilidades tais no domínio do ensino, investigação e irradiação cultural. Como tal, é preciso criar orçamentos de base plurianual, em função das prioridades do Governo em funções. Estamos a assistir a uma debilitação da base material, e por arrastamento dos recursos humanos, em termos do funcionamento de instituições com uma insubstituível missão e responsabilidade social.
As universidades privadas foram sacudidas recentemente pelo escândalo da Independente. O caso em concreto revela que o Estado não tem zelado com o rigor exigível para o sector não público?
O sector privado tem que se reger por elevados padrões de exigência e qualidade e o Estado tem que ser capaz de intervir no sentido de assegurar que esses níveis são respeitados. Situações desagradáveis e lamentáveis como esta deviam servir para repensar de modo muito sério como é
possível promover a qualidade.
Chamar às universidades de um modo geral “fábrica de canudos” significa que o papel das instituições está desvirtuado?
Uma universidade não é uma fábrica de “encher chouriços”, o mesmo é dizer uma linha de montagem para o fabrico de licenciados. A parte do ensino é importante, mas é preciso realçar que não há universidades sem investigação e irradiação cultural.
Em termos de investigação e desenvolvimento continuamos longe dos nossos parceiros europeus?
Há um caminho a percorrer. É um sector-chave, já que obriga a fazer dialogar, cooperar e trabalhar em conjunto, de forma estratégica e prospectiva, não apenas as universidades, mas também o conjunto da sociedade, o sector produtivo e a economia, incluídas.
As universidades continuam de “costas viradas” para o mercado de trabalho?
Isso não é objectivamente verdade, mas reconheço que há muito para fazer nessa área. É preciso ultrapassar o registo da proclamação das boas intenções e procurar as formas adequadas de operacionalizar e, sobretudo, realizar. O segredo da cooperação entre universidades e a comunidade reside na capacidade que houver para realizar e arquitectar de forma projectada e estratégica os objectivos gizados.
Segundo um estudo recente, os portugueses com o 12.º ano ou qualificações superiores não chegam a milhão e meio. Continuamos a ser um país desigual e com um défice crónico de qualificados?
Uma das consequências do Liberalismo grassante que nos últimos 30 anos se tem abatido sobre o nosso mundo e da própria Globalização, é o aumento das assimetrias, não só entre Estados, mas, sobretudo, no interior dos
próprios Estados. É algo que devia fazer pensar as pessoas com o intuito de atalhar caminhos e procurar respostas.
Encerramento de escolas, violência, abandono escolar e manifestações de professores, são sintomas do sistema educativo. Concorda que conceito tradicional de escola está em crise?
A escola está em crise, mas não devemos colocar a questão de forma a alarmar e paralisar a opinião pública, convencendo-a de que é impossível discernir caminhos no meio da “selva”.
Mas há que reconhecer que o problema da crise é complicado quando se vive durante bastante tempo um clima geral de desorientação. Para as instituições a crise não é má que ocorra, até porque associada a esta está a categoria da crítica, por vezes, fundamental para dar resposta a contingências difíceis.
Tenho a esperança que as coisas se resolvam, mas este valor (da esperança trabalhada), não tem a ver com espera ou resignação, valores que alguns parecem ter interesse que perdurem. A paciência de nos entregarmos ao combate e integrarmos um processo de transformação da realidade é o caminho a
seguir.
Nuno Dias da Silva
PERFIL
Retrato de um doce
revolucionário
José Adriano Rodrigues Barata-Moura, nasceu em Lisboa, a 26 de Junho de 1948. A Universidade de Lisboa (UL) foi a sua «casa» desde sempre. Depois de lá se ter doutorado em Filosofia, ter sido professor Catedrático da Faculdade de Letras e presidente do conselho científico, acaba por aceitar o desafio que lhe é feito e vence a corrida à reitoria da maior universidade de Lisboa, a UL, em 1998. Ocupou o cargo ao longo de 8 anos, ou seja, dois mandatos reitorais. Foi ainda representante do Conselho de Reitores no
CNAVES.
É um dos nomes mais conhecidos do pensamento filosófico nacional. Tem inúmeras obras publicadas no âmbito da filosofia.
Mas a sua grande paixão, como confessa na entrevista, foi sempre a música. Compôs e interpretou com a sua inseparável viola canções ao longo de duas décadas, tanto de cariz político/revolucionário como infantil, tendo estas últimas feito parte do processo de crescimento e descoberta do mundo de várias gerações de portugueses. “Olha a bola Manel”, “Joana come a papa” ou “O fungagá da bicharada”, foram os “hits” mais famosos de Barata-Moura, tendo este último dado origem a um programa infantil na TV, apresentado por Júlio Isidro, que alcançou um enorme sucesso.
Editou cerca de 20 discos, o último dos quais em 2005 com o melhor da sua “obra infantil completa”, e várias obras de literatura infantil, tendo igualmente participado em programas
televisivos para crianças. No campo da política, intitula-se um “militante anónimo” do Partido Comunista. Em 1993 e 1994, esteve como deputado ao Parlamento
Europeu.
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