Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº112    Junho 2007

Entrevista

MARIA FILOMENA MÓNICA, HISTORIADORA

"Sistema educativo entrou em roda livre"

Autora de um dos livros mais vendidos dos últimos anos, «Bilhete de Identidade», Maria Filomena Mónica diz que a Educação atravessa um momento dramático e que as reformas não se fazem por falta de vontade dos governantes. A investigadora qualifica os deputados de «incultos e preguiçosos», afirma que a «corrupção é um fenómeno endémico» e considera inadmissível que um país que levou a cabo uma revolução socialista, em 1974, seja o que mais desigualdades apresenta a nível europeu.
 

Em 2005, escreveu «Bilhete de Identidade – (Memórias 1943-1976)» que obteve um sucesso quase equivalente à polémica gerada. No livro, escrito na primeira pessoa, expôs sem preconceitos os seus relacionamentos até aos 33 anos o que irritou alguns dos visados, nomeadamente Vasco Pulido Valente. Num país conservador como continua a ser o nosso, não eram previsíveis as reacções que a autobiografia suscitou?

Este livro foi um teste a mim própria, um exercício de estilo. Pretendia sair da escrita e da prosa académicas e avaliar se era capaz de escrever clara, lúcida e inteligentemente sobre a minha vida.

Descrevi o que pretendia, não pensando no país em que nascera, nem nos limites que isso causava à minha liberdade de expressão. Imaginei que estava nos Estados Unidos ou na Escandinávia, onde os públicos estão muito mais habituados a obras desta natureza. O facto de ter escrito praticamente todo o livro em Oxford, Inglaterra, permitiu-me abstrair das previsíveis reacções internas.
 

Dois anos depois do lançamento que balanço pode fazer? Foram mais os elogios ou as criticas que recebeu?

Estava à espera de uma reacção pior. A surpresa foi o livro ter vendido tanto (50 mil exemplares, em números redondos), e ter havido uma reacção distinta segundo os sexos: as mulheres gostaram mais do que os homens. Finalmente, devo dizer que os insultos ficaram aquém da minha previsão.
 

Quer partilhar algum comentário mais desagradável?

Recebi e-mails de pessoas a louvar o livro, mas também fui “brindada” com mensagens de ódio, os chamados «hate mails». Mas estes foram poucos. Mesmo na rua ninguém me incomodou. Portugal está mais evoluído do que eu pensava.

A surpresa foi o livro ter vendido tanto (50 mil exemplares, em números redondos), e ter havido uma reacção distinta segundo os sexos: as mulheres gostaram mais do que os homens. Finalmente, devo dizer que os insultos ficaram aquém da minha previsão.
 

A cultura anglo-saxónica interiorizada quando estudou no estrangeiro, onde memórias desta natureza são banais, foi um factor decisivo de motivação para redigir a obra?

Eu sabia que lá fora a publicação deste tipo de obras era normal; vários escritores revelaram a sua vida privada com mais detalhes do que eu. Eu não queria que este fosse um livro de exposição desnecessária, mas que contasse o essencial da minha vida até aos 33 anos. Obviamente que tenho a noção que o factor «voyeurístico» pesou na venda do livro.
 

No seu último livro, «Confissões de uma liberal», revela que escreve um diário desde os 14 anos. O que regista nos seus apontamentos?

Não é um diário contínuo. Eu escrevo com muitos hiatos e sempre em momentos trágicos. Escrevi entre os 14 e os 18 anos, entre os 28 e os 30 e entre os 52 e os 63 anos, coincidindo o fim do diário com a morte da minha mãe.

Quando comecei a redigir o que viria a ser o «Bilhete de Identidade», não tinha em mente qualquer aspecto catártico: não sentia que precisava de expulsar demónios, mas devo reconhecer que alguns fantasmas que existiam na minha alma foram, de facto, eliminados. Já os diários revelam nitidamente uma tendência catártica.

Invariavelmente, quando tenho um problema, aproximo-me do papel e escrevo o que me vai na alma.
 

Estudou de forma exaustiva a obra de Eça de Queiroz, tendo sido responsável pela reedição de «As Farpas», em 2004. Faz sentido dizer que o Portugal de hoje tem demasiadas semelhanças com o país retratado pelo escritor no século XIX?

Não. Lamentavelmente esse é um mito quase indestrutível. O Portugal de Eça é completamente diferente do Portugal de hoje, para começar no sentido sociológico do termo: nesse tempo, havia 90 por cento de camponeses, hoje há 10 por cento. Hoje, o país é urbano e o sector de serviços domina a economia, enquanto no século XIX era o sector agrícola a deter a hegemonia – as pessoas viviam nos campos e a classe média era muito reduzida. Para além disso, o Portugal que Eça «criou» não era o Portugal que existia. O país de Eça, que era realmente o do senhor Fontes, foi fabricado pela sua imaginação, pese embora não estar longe da realidade. Mas, na sua essência, era uma visão satírica; ora, todos os escritores satíricos são moralistas. Como Eça queria mudar Portugal, dava, dele, uma imagem distorcida, o que não invalida que a construção dos seus livros fosse quase perfeita. Talvez por esse motivo as pessoas, ainda hoje, se revêem na sua obra.
 

Mas as mensagens das personagens de Eça, por exemplo, «O país é uma choldra», em «Os Maias», não se enquadram na lógica negativa e de autocomiseração que caracteriza, ainda hoje, muitos dos nossos compatriotas?

Há factores atemporais: Portugal é, sempre foi, pobre, pequeno e periférico. No século XIX, éramos o país mais atrasado da Europa e também o mais dependente do Estado, portanto não é de estranhar que as mensagens do Eça, do género, «os políticos são todos uns safados», permaneçam actuais.

Também da sua autoria é o «Dicionário Biográfico Parlamentar», um trabalho exaustivo sobre todos os deputados portugueses...

Foi a minha obra mais custosa e a menos gratificante em termos intelectuais, mas provavelmente será a única que ficará depois de eu morrer.
 

Como caracteriza a classe política?

Os deputados que temos são incultos e preguiçosos. Para além de serem eleitos de forma aberrante. Não é possível continuar a manter o actual sistema em que são os secretários-gerais/presidentes dos partidos a elaborarem as listas. Se eles decidem quem querem ver no hemiciclo e depois nós temos de nos limitar a votar nos nomes definidos por eles, acabamos por não escolher. No fundo, votamos em personalidades que nos são impostas. Os dados estão viciados à partida.
 

O que defende para ultrapassar este sistema?

Eu gostaria de ter um círculo eleitoral (pequeno) e poder escolher uma pessoa, independentemente do que decide o líder do partido. Ambos os sistemas têm contras, mas eu sou defensora de um sistema de círculos uninominais em detrimento do sistema eleitoral de listas. O status quo aumenta exponencialmente o poder dos partidos.
 

Os partidos são máquinas com um poder quase discricionário?

Os partidos em Portugal têm força demais, em parte porque a sociedade também é fraca demais. É uma espécie de jogo de soma zero. Como existem poucas fortunas e a classe média depende do poder político, os partidos acabam por distribuir grande parte da riqueza que a nação gera. Não há vozes independentes capazes de criticar os governos e, quando existem, são penalizadas.
 

Qual é a a reforma mais importante por efectuar?

A reforma do sistema eleitoral, na medida que afecta o coração do sistema político.
 

Considera que existe uma democracia representativa plena?

Sim. Acredito neste sistema. O que repudio é a forma como está montado – não gosto destes andaimes – ou seja, trata-se de um sistema que favorece os líderes partidários. Num sistema de círculos uninominais os cidadãos teriam mais poder. Vou dar-lhe um exemplo: mantenho um contencioso com as 15 bibliotecas públicas, pagas pelo Estado, que estão abertas das 9 às 16 horas, período em que as minhas netas estão na escola. Se o deputado do círculo das minhas netas não levantasse a questão, eu não votaria nele. No actual sistema de listas nunca sei quem é o político que me representa e, pior do que isso, os deputados estão sempre a ser substituídos, acabando por nunca sofrer penalizações, caso não correspondam às expectativas dos eleitores. Mais do que eleger, numa democracia é essencial o cidadão conseguir punir. Isso tornaria melhores e mais úteis os indivíduos que desempenham cargos públicos. Os políticos são maus por causa da falta de estímulos e da ausência de vigilância por parte dos eleitores.
 

Concorda com a redução dos 220 deputados actuais para metade?

Eu digo a brincar que com o actual sistema bastavam 5 deputados. Veja como é que eles votam em São Bento: levantam-se e sentam-se sempre da mesma maneira. Têm medo de ser excluídos das próximas listas. Os deputados não são particularmente bem pagos, mas ganham mais do que um qualquer professor catedrático e têm benesses, despesas representação, reformas absurdas, etc. O que me choca é que não possa sequer existir a concorrência por parte de deputados independentes. Até acho natural que os que lá estão no hemiciclo adormeçam...
 

Deputados mal pagos e de pouca qualidade são mais permeáveis a casos de corrupção?

Pode haver bons deputados e serem susceptíveis de corrupção. Reconheço que a corrupção aumentou muito em Portugal e neste momento é um mal endémico. Penetrou em todas as camadas sociais. E pode ir de umas «luvas» de meia dúzia de contos até 500 mil contos. Dou-lhe um exemplo: fiz umas obras em minha casa que demoraram tempo demasiado e entretanto fui incentivada por amigos a dar uma «gratificação» ao fiscal da CML que me visitou. Por princípio, considerei que não o deveria fazer. Resultado: as obras arrastaram-se por 2 anos, quando em condições normais deviam ter durado 6 meses. Isto é a pequena corrupção que encontramos todos os dias. Se tivesse desembolsado meia dúzia de contos provavelmente os trabalhos teriam sido acelerados e eu teria tido mais tempo para escrever livros...
 

Que quota parte de responsabilidades têm os políticos no estado do ensino?

A situação do sector educativo em Portugal é dramática. Creio que a reforma do ensino poderia ser uma realidade, se tivéssemos deputados que lutassem por ela a sério.
 

O que é que falha quando passam dezenas de ministros pela cadeira do poder da Avenida 5 de Outubro e as políticas são inconsequentes?

Falha tudo. Historicamente, em Portugal, os camponeses não precisavam de mandar os filhos à escola. No século XIX, que é o período que estudo, apesar de se terem promulgado leis relativas à escolaridade obrigatória, os portugueses não sentiam necessidade de mandar os filhos às aulas. Havia escolas, mas faltavam alunos. O salazarismo não tinha especial motivação para educar o povo, pelo contrário: os seus adeptos declaravam que o povo não precisava de saber ler nem escrever. No 25 de Abril fez-se uma reforma de ensino que abriu as portas das universidades demasiado depressa, quando não havia recursos humanos preparados para leccionar.

Começaram a entrar centenas de alunos a mais. A massificação demasiado rápida do ensino superior revelou-se nefasta. Eu percebo que a classe média estava a empurrar a porta, mas o poder político devia ter argumentado que não havia pessoal docente disponível para tanta procura. A consequência está diante dos nossos olhos: as universidades são hoje fábricas de diplomados para o desemprego. É uma tragédia porque se defraudaram as expectativas legítimas de muitos pais, alguns deles pobres, que mandaram os filhos para as universidades públicas/privadas, com a esperança de que teriam uma vida melhor do que a sua. A ilusão esboroou-se.
 

Depois dos escândalos na Moderna e na Lusófona, a Independente foi a cereja no topo do bolo do descrédito das privadas. Esta sucessão de acontecimentos não torna o ensino privado algo muito próximo de um negócio cego para encher os bolsos de alguns oportunistas?

É um negócio e uma aldrabice. Ou o Estado lavava dali as suas mãos e não legitimava estas instituições ou então fiscalizava-as, de modo atento. Sempre leccionei no ensino público, mas sabia que nas universidades privadas não havia um número de doutorados suficiente como não havia bibliotecas decentes. Eu, que não sou inspectora, percebi logo que estávamos perante uma fraude. A maioria das universidades não tinha condições para funcionar e o Estado, de forma irresponsável, permitiu tal facto, acreditando-as e não realizando fiscalizações eficazes. O poder político deu «luz verde» a faculdades sem qualquer dignidade académica. Muitas delas não passam de armazéns de alunos, com uns professores de pára-quedas, muitos deles ligados à política (o que é patético), que se sujeitaram à triste figura de dar aulas em «barracões».
 

O caso da licenciatura do Primeiro-Ministro é um «fait-divers» tendo em conta a dimensão do descrédito das faculdades privadas?

Tratou-se de um caso patético. O interessante não foi o caso per se, o eng. Sócrates até podia ter a quarta classe e ser um óptimo governante, mas demonstrou, de forma exemplar, o que é a universidade privada: uma aldrabice.
 

Em entrevista ao «Expresso» o ano passado disse que «o Ministério da Educação é a raiz do mal». Quer concretizar?

O mal reside na organização do sistema. A filosofia subjacente aos programas escolares é uma aberração. Infelizmente, aquela acaba por se reflectir nos manuais escolares. E quem faz os programas? O Ministério. Para além disso, creio que as escolas deviam ter um gestor, não eleito, que desse a cara pelas instituições a que presidem.
 

Concorda que os erros ortográficos cometidos pelos alunos nas provas de aferição não tivessem sido penalizados?

Tive que ler a notícia três vezes antes de acreditar. A minha neta, que está no sexto ano, ficou furiosa porque queria ser avaliada. Ela quer ser repórter fotográfica, quer ter sucesso na vida e este «sistema», pensa ela, com razão, só desmotiva os alunos que querem estudar a sério. Os alunos têm o direito a ser avaliados. Conheço pessoalmente a ministra: até achei que ela entrara com o pé direito, mas está a enveredar por caminhos estranhos. Já bastam os SMS e outras ortografias bizarras que vêm aí. Tenho alunos de mestrado que, em cada palavra, dão um erro. Isto é normal?
 

Continua por implementar uma cultura de exigência?

Sem dúvida. O Ministério da Educação teme que se perceba que os alunos ainda são mais analfabetos do que parecem. O sistema entrou em roda livre; está sem controlo. Os professores estão desmotivados e muitos têm sido atacados sem justificação. Há docentes absolutamente exemplares. Mas que estão sem motivação.
 

Está desencantada com a faculdade?

No último ano em que dei aulas, os meus alunos recusaram-se a ler um único livro, isto num semestre inteiro, o que me deixou frustrada.
 

A fuga de «cérebros» vai continuar?

Os melhores alunos vão continuar a sair porque o país não lhes oferece oportunidades. Terão que medir forças com os asiáticos, que estão no topo da exportação de «cérebros», o que só lhes faz bem. Se eu tivesse 20 anos, também procuraria ir para o estrangeiro, onde as condições de investigação são infinitamente melhores do que em Portugal.
 

Bolonha vai aproximar-nos dos restantes países europeus?

Devo advertir que conheço mal o sistema, desde que me afastei da Universidade, mas desconfio de qualquer sistema de homogeneização das instituições. Creio que Bolonha vai uniformizar por baixo, os diplomas vão ser inflacionados, as licenciaturas vão valer menos, idem mestrados, idem doutoramentos. Acho que todos vão ter diplomas... O traço distintivo será a qualidade das universidades frequentadas. Devo esclarecer que não penso que o ensino superior sirva apenas para formar autómatos para o mercado de trabalho. Deve formar pessoas cultas, melhor conhecedoras da natureza humana e capazes de analisar o mundo que as rodeia. A cultura geral é um bem que não deve ser desprezado.
 

Perante uma perfomance educativa tão fraca, Portugal é um país viável?

Politicamente continuaremos a existir. Apesar de tudo, temos oito séculos de História. Depois, e para ser franca, ninguém nos quer. Quem é que quer tomar conta dos portugueses, a nação mais pobre da Europa? A Espanha? Eles preferem dominar-nos economicamente, sem ter a maçada de nos obrigar a comportar decentemente.
 

Como avalia as referências do nosso país além-fronteiras?

Quando estou em círculos estrangeiros, citam-me sempre três nomes: Cristiano Ronaldo, José Mourinho e Paula Rego. Não vejo futebol, mas considero Mourinho um homem bonito. E Ronaldo tem uma alegria instintiva que me conquista. Tenho pena que não nos consigamos afirmar noutros domínios culturais.
 

Os portugueses são ciclotímicos?

Somos mais depressivos que alegres. Somos melancólicos e tristes. O que não nos deve admirar. A população portuguesa está a braços com problemas graves. Li no jornal de hoje que os caldos «Knorr» são dos produtos mais roubados nos hiper-mercados. Isto é revelador da pobreza existente. Há pessoas que roubam porque têm fome. O desemprego está a atingir as classes médias e os licenciados procuram desesperadamente os centros de emprego. Portugal é a nação europeia com mais desigualdades, o que é inadmissível num país que fez uma revolução socialista em 1974.
 

É dos que acha que valeu a pena fazer o 25 de Abril?

Não subestimo esse dia, pelo contrário. Muitas pessoas podem ter esquecido o momento e o seu significado, mas eu não. Vivi 31 anos sob um sistema político horrendo. A liberdade é o maior valor que uma pessoa pode ter. Sem ela, nada vale a pena.

Nuno Dias da Silva (texto)
José Ventura/Expresso
(foto)

 

 

 

Literal e polémica

Maria Filomena Mónica nasceu em Lisboa, em 1943. Licenciada em Filosofia pela Universidade de Lisboa, 1969. Doutorada em Sociologia pela Universidade de Oxford, 1978. É investigadora-coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Colabora regularmente na imprensa e, neste momento, é comentadora semanal no Rádio Clube Português.

Publicou, entre outros, os seguintes livros: «Educação e sociedade no Portugal de Salazar» (1978), «Visitas ao Poder (1993), «Os filhos de Rousseau» (1997), «Fontes Pereira de Melo» (1999), «Eça de Queiroz» (2001), «As farpas» (2004), «Bilhete de Identidade (2005) e «Confissões de uma liberal» (2007). Está a trabalhar numa biografia de Cesário Verde. Académica, escritora e historiadora, é das maiores estudiosas do sistema politico português no século XIX. Casada com o sociólogo António Barreto, revelou ao “Ensino Magazine” que «Bilhete de Identidade» não terá sequela, até porque, «a vida depois dos 33 anos torna-se menos interessante».

 


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