MARIA FILOMENA MÓNICA,
HISTORIADORA
"Sistema educativo
entrou em roda livre"
Autora de um dos livros mais vendidos dos
últimos anos, «Bilhete de Identidade», Maria Filomena Mónica diz que a
Educação atravessa um momento dramático e que as reformas não se fazem
por falta de vontade dos governantes. A investigadora qualifica os
deputados de «incultos e preguiçosos», afirma que a «corrupção é um
fenómeno endémico» e considera inadmissível que um país que levou a cabo
uma revolução socialista, em 1974, seja o que mais desigualdades
apresenta a nível europeu.
Em 2005, escreveu «Bilhete de
Identidade – (Memórias 1943-1976)» que obteve um sucesso quase
equivalente à polémica gerada. No livro, escrito na primeira pessoa,
expôs sem preconceitos os seus relacionamentos até aos 33 anos o que
irritou alguns dos visados, nomeadamente Vasco Pulido Valente. Num país
conservador como continua a ser o nosso, não eram previsíveis as
reacções que a autobiografia suscitou?
Este livro foi um teste a mim própria, um exercício de estilo. Pretendia
sair da escrita e da prosa académicas e avaliar se era capaz de escrever
clara, lúcida e inteligentemente sobre a minha vida.
Descrevi o que pretendia, não pensando no país em que nascera, nem nos
limites que isso causava à minha liberdade de expressão. Imaginei que
estava nos Estados Unidos ou na Escandinávia, onde os públicos estão
muito mais habituados a obras desta natureza. O facto de ter escrito
praticamente todo o livro em Oxford, Inglaterra, permitiu-me abstrair
das previsíveis reacções internas.
Dois anos depois do lançamento que
balanço pode fazer? Foram mais os elogios ou as criticas que recebeu?
Estava à espera de uma reacção pior. A surpresa foi o livro ter vendido
tanto (50 mil exemplares, em números redondos), e ter havido uma reacção
distinta segundo os sexos: as mulheres gostaram mais do que os homens.
Finalmente, devo dizer que os insultos ficaram aquém da minha previsão.
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desagradável?
Recebi e-mails de pessoas a louvar o livro, mas também fui “brindada”
com mensagens de ódio, os chamados «hate mails». Mas estes foram poucos.
Mesmo na rua ninguém me incomodou. Portugal está mais evoluído do que eu
pensava.
A surpresa foi o livro ter vendido tanto (50 mil exemplares, em números
redondos), e ter havido uma reacção distinta segundo os sexos: as
mulheres gostaram mais do que os homens. Finalmente, devo dizer que os
insultos ficaram aquém da minha previsão.
A cultura anglo-saxónica
interiorizada quando estudou no estrangeiro, onde memórias desta
natureza são banais, foi um factor decisivo de motivação para redigir a
obra?
Eu sabia que lá fora a publicação deste tipo de obras era normal; vários
escritores revelaram a sua vida privada com mais detalhes do que eu. Eu
não queria que este fosse um livro de exposição desnecessária, mas que
contasse o essencial da minha vida até aos 33 anos. Obviamente que tenho
a noção que o factor «voyeurístico» pesou na venda do livro.
No seu último livro, «Confissões de
uma liberal», revela que escreve um diário desde os 14 anos. O que
regista nos seus apontamentos?
Não é um diário contínuo. Eu escrevo com muitos hiatos e sempre em
momentos trágicos. Escrevi entre os 14 e os 18 anos, entre os 28 e os 30
e entre os 52 e os 63 anos, coincidindo o fim do diário com a morte da
minha mãe.
Quando comecei a redigir o que viria a ser o «Bilhete de Identidade»,
não tinha em mente qualquer aspecto catártico: não sentia que precisava
de expulsar demónios, mas devo reconhecer que alguns fantasmas que
existiam na minha alma foram, de facto, eliminados. Já os diários
revelam nitidamente uma tendência catártica.
Invariavelmente, quando tenho um problema, aproximo-me do papel e
escrevo o que me vai na alma.
Estudou de forma exaustiva a obra de
Eça de Queiroz, tendo sido responsável pela reedição de «As Farpas», em
2004. Faz sentido dizer que o Portugal de hoje tem demasiadas
semelhanças com o país retratado pelo escritor no século XIX?
Não. Lamentavelmente esse é um mito quase indestrutível. O Portugal de
Eça é completamente diferente do Portugal de hoje, para começar no
sentido sociológico do termo: nesse tempo, havia 90 por cento de
camponeses, hoje há 10 por cento. Hoje, o país é urbano e o sector de
serviços domina a economia, enquanto no século XIX era o sector agrícola
a deter a hegemonia – as pessoas viviam nos campos e a classe média era
muito reduzida. Para além disso, o Portugal que Eça «criou» não era o
Portugal que existia. O país de Eça, que era realmente o do senhor
Fontes, foi fabricado pela sua imaginação, pese embora não estar longe
da realidade. Mas, na sua essência, era uma visão satírica; ora, todos
os escritores satíricos são moralistas. Como Eça queria mudar Portugal,
dava, dele, uma imagem distorcida, o que não invalida que a construção
dos seus livros fosse quase perfeita. Talvez por esse motivo as pessoas,
ainda hoje, se revêem na sua obra.
Mas as mensagens das personagens de
Eça, por exemplo, «O país é uma choldra», em «Os Maias», não se
enquadram na lógica negativa e de autocomiseração que caracteriza, ainda
hoje, muitos dos nossos compatriotas?
Há factores atemporais: Portugal é, sempre foi, pobre, pequeno e
periférico. No século XIX, éramos o país mais atrasado da Europa e
também o mais dependente do Estado, portanto não é de estranhar que as
mensagens do Eça, do género, «os políticos são todos uns safados»,
permaneçam actuais.
Também da sua autoria é o «Dicionário Biográfico Parlamentar», um
trabalho exaustivo sobre todos os deputados portugueses...
Foi a minha obra mais custosa e a menos gratificante em termos
intelectuais, mas provavelmente será a única que ficará depois de eu
morrer.
Como caracteriza a classe política?
Os deputados que temos são incultos e preguiçosos. Para além de serem
eleitos de forma aberrante. Não é possível continuar a manter o actual
sistema em que são os secretários-gerais/presidentes dos partidos a
elaborarem as listas. Se eles decidem quem querem ver no hemiciclo e
depois nós temos de nos limitar a votar nos nomes definidos por eles,
acabamos por não escolher. No fundo, votamos em personalidades que nos
são impostas. Os dados estão viciados à partida.
O que defende para ultrapassar este
sistema?
Eu gostaria de ter um círculo eleitoral (pequeno) e poder escolher uma
pessoa, independentemente do que decide o líder do partido. Ambos os
sistemas têm contras, mas eu sou defensora de um sistema de círculos
uninominais em detrimento do sistema eleitoral de listas. O status quo
aumenta exponencialmente o poder dos partidos.
Os partidos são máquinas com um
poder quase discricionário?
Os partidos em Portugal têm força demais, em parte porque a sociedade
também é fraca demais. É uma espécie de jogo de soma zero. Como existem
poucas fortunas e a classe média depende do poder político, os partidos
acabam por distribuir grande parte da riqueza que a nação gera. Não há
vozes independentes capazes de criticar os governos e, quando existem,
são penalizadas.
Qual é a a reforma mais importante
por efectuar?
A reforma do sistema eleitoral, na medida que afecta o coração do
sistema político.
Considera que existe uma democracia
representativa plena?
Sim. Acredito neste sistema. O que repudio é a forma como está montado –
não gosto destes andaimes – ou seja, trata-se de um sistema que favorece
os líderes partidários. Num sistema de círculos uninominais os cidadãos
teriam mais poder. Vou dar-lhe um exemplo: mantenho um contencioso com
as 15 bibliotecas públicas, pagas pelo Estado, que estão abertas das 9
às 16 horas, período em que as minhas netas estão na escola. Se o
deputado do círculo das minhas netas não levantasse a questão, eu não
votaria nele. No actual sistema de listas nunca sei quem é o político
que me representa e, pior do que isso, os deputados estão sempre a ser
substituídos, acabando por nunca sofrer penalizações, caso não
correspondam às expectativas dos eleitores. Mais do que eleger, numa
democracia é essencial o cidadão conseguir punir. Isso tornaria melhores
e mais úteis os indivíduos que desempenham cargos públicos. Os políticos
são maus por causa da falta de estímulos e da ausência de vigilância por
parte dos eleitores.
Concorda com a redução dos 220
deputados actuais para metade?
Eu digo a brincar que com o actual sistema bastavam 5 deputados. Veja
como é que eles votam em São Bento: levantam-se e sentam-se sempre da
mesma maneira. Têm medo de ser excluídos das próximas listas. Os
deputados não são particularmente bem pagos, mas ganham mais do que um
qualquer professor catedrático e têm benesses, despesas representação,
reformas absurdas, etc. O que me choca é que não possa sequer existir a
concorrência por parte de deputados independentes. Até acho natural que
os que lá estão no hemiciclo adormeçam...
Deputados mal pagos e de pouca
qualidade são mais permeáveis a casos de corrupção?
Pode haver bons deputados e serem susceptíveis de corrupção. Reconheço
que a corrupção aumentou muito em Portugal e neste momento é um mal
endémico. Penetrou em todas as camadas sociais. E pode ir de umas
«luvas» de meia dúzia de contos até 500 mil contos. Dou-lhe um exemplo:
fiz umas obras em minha casa que demoraram tempo demasiado e entretanto
fui incentivada por amigos a dar uma «gratificação» ao fiscal da CML que
me visitou. Por princípio, considerei que não o deveria fazer.
Resultado: as obras arrastaram-se por 2 anos, quando em condições
normais deviam ter durado 6 meses. Isto é a pequena corrupção que
encontramos todos os dias. Se tivesse desembolsado meia dúzia de contos
provavelmente os trabalhos teriam sido acelerados e eu teria tido mais
tempo para escrever livros...
Que quota parte de responsabilidades
têm os políticos no estado do ensino?
A situação do sector educativo em Portugal é dramática. Creio que a
reforma do ensino poderia ser uma realidade, se tivéssemos deputados que
lutassem por ela a sério.
O que é que falha quando passam
dezenas de ministros pela cadeira do poder da Avenida 5 de Outubro e as
políticas são inconsequentes?
Falha tudo. Historicamente, em Portugal, os camponeses não precisavam de
mandar os filhos à escola. No século XIX, que é o período que estudo,
apesar de se terem promulgado leis relativas à escolaridade obrigatória,
os portugueses não sentiam necessidade de mandar os filhos às aulas.
Havia escolas, mas faltavam alunos. O salazarismo não tinha especial
motivação para educar o povo, pelo contrário: os seus adeptos declaravam
que o povo não precisava de saber ler nem escrever. No 25 de Abril
fez-se uma reforma de ensino que abriu as portas das universidades
demasiado depressa, quando não havia recursos humanos preparados para
leccionar.
Começaram a entrar centenas de alunos a mais. A massificação demasiado
rápida do ensino superior revelou-se nefasta. Eu percebo que a classe
média estava a empurrar a porta, mas o poder político devia ter
argumentado que não havia pessoal docente disponível para tanta procura.
A consequência está diante dos nossos olhos: as universidades são hoje
fábricas de diplomados para o desemprego. É uma tragédia porque se
defraudaram as expectativas legítimas de muitos pais, alguns deles
pobres, que mandaram os filhos para as universidades públicas/privadas,
com a esperança de que teriam uma vida melhor do que a sua. A ilusão
esboroou-se.
Depois dos escândalos na Moderna e
na Lusófona, a Independente foi a cereja no topo do bolo do descrédito
das privadas. Esta sucessão de acontecimentos não torna o ensino privado
algo muito próximo de um negócio cego para encher os bolsos de alguns
oportunistas?
É um negócio e uma aldrabice. Ou o Estado lavava dali as suas mãos e não
legitimava estas instituições ou então fiscalizava-as, de modo atento.
Sempre leccionei no ensino público, mas sabia que nas universidades
privadas não havia um número de doutorados suficiente como não havia
bibliotecas decentes. Eu, que não sou inspectora, percebi logo que
estávamos perante uma fraude. A maioria das universidades não tinha
condições para funcionar e o Estado, de forma irresponsável, permitiu
tal facto, acreditando-as e não realizando fiscalizações eficazes. O
poder político deu «luz verde» a faculdades sem qualquer dignidade
académica. Muitas delas não passam de armazéns de alunos, com uns
professores de pára-quedas, muitos deles ligados à política (o que é
patético), que se sujeitaram à triste figura de dar aulas em
«barracões».
O caso da licenciatura do
Primeiro-Ministro é um «fait-divers» tendo em conta a dimensão do
descrédito das faculdades privadas?
Tratou-se de um caso patético. O interessante não foi o caso per se, o
eng. Sócrates até podia ter a quarta classe e ser um óptimo governante,
mas demonstrou, de forma exemplar, o que é a universidade privada: uma
aldrabice.
Em entrevista ao «Expresso» o ano
passado disse que «o Ministério da Educação é a raiz do mal». Quer
concretizar?
O mal reside na organização do sistema. A filosofia subjacente aos
programas escolares é uma aberração. Infelizmente, aquela acaba por se
reflectir nos manuais escolares. E quem faz os programas? O Ministério.
Para além disso, creio que as escolas deviam ter um gestor, não eleito,
que desse a cara pelas instituições a que presidem.
Concorda que os erros ortográficos
cometidos pelos alunos nas provas de aferição não tivessem sido
penalizados?
Tive que ler a notícia três vezes antes de acreditar. A minha neta, que
está no sexto ano, ficou furiosa porque queria ser avaliada. Ela quer
ser repórter fotográfica, quer ter sucesso na vida e este «sistema»,
pensa ela, com razão, só desmotiva os alunos que querem estudar a sério.
Os alunos têm o direito a ser avaliados. Conheço pessoalmente a
ministra: até achei que ela entrara com o pé direito, mas está a
enveredar por caminhos estranhos. Já bastam os SMS e outras ortografias
bizarras que vêm aí. Tenho alunos de mestrado que, em cada palavra, dão
um erro. Isto é normal?
Continua por implementar uma cultura
de exigência?
Sem dúvida. O Ministério da Educação teme que se perceba que os alunos
ainda são mais analfabetos do que parecem. O sistema entrou em roda
livre; está sem controlo. Os professores estão desmotivados e muitos têm
sido atacados sem justificação. Há docentes absolutamente exemplares.
Mas que estão sem motivação.
Está desencantada com a faculdade?
No último ano em que dei aulas, os meus alunos recusaram-se a ler um
único livro, isto num semestre inteiro, o que me deixou frustrada.
A fuga de «cérebros» vai continuar?
Os melhores alunos vão continuar a sair porque o país não lhes oferece
oportunidades. Terão que medir forças com os asiáticos, que estão no
topo da exportação de «cérebros», o que só lhes faz bem. Se eu tivesse
20 anos, também procuraria ir para o estrangeiro, onde as condições de
investigação são infinitamente melhores do que em Portugal.
Bolonha vai aproximar-nos dos
restantes países europeus?
Devo advertir que conheço mal o sistema, desde que me afastei da
Universidade, mas desconfio de qualquer sistema de homogeneização das
instituições. Creio que Bolonha vai uniformizar por baixo, os diplomas
vão ser inflacionados, as licenciaturas vão valer menos, idem mestrados,
idem doutoramentos. Acho que todos vão ter diplomas... O traço
distintivo será a qualidade das universidades frequentadas. Devo
esclarecer que não penso que o ensino superior sirva apenas para formar
autómatos para o mercado de trabalho. Deve formar pessoas cultas, melhor
conhecedoras da natureza humana e capazes de analisar o mundo que as
rodeia. A cultura geral é um bem que não deve ser desprezado.
Perante uma perfomance educativa tão
fraca, Portugal é um país viável?
Politicamente continuaremos a existir. Apesar de tudo, temos oito
séculos de História. Depois, e para ser franca, ninguém nos quer. Quem é
que quer tomar conta dos portugueses, a nação mais pobre da Europa? A
Espanha? Eles preferem dominar-nos economicamente, sem ter a maçada de
nos obrigar a comportar decentemente.
Como avalia as referências do nosso
país além-fronteiras?
Quando estou em círculos estrangeiros, citam-me sempre três nomes:
Cristiano Ronaldo, José Mourinho e Paula Rego. Não vejo futebol, mas
considero Mourinho um homem bonito. E Ronaldo tem uma alegria instintiva
que me conquista. Tenho pena que não nos consigamos afirmar noutros
domínios culturais.
Os portugueses são ciclotímicos?
Somos mais depressivos que alegres. Somos melancólicos e tristes. O que
não nos deve admirar. A população portuguesa está a braços com problemas
graves. Li no jornal de hoje que os caldos «Knorr» são dos produtos mais
roubados nos hiper-mercados. Isto é revelador da pobreza existente. Há
pessoas que roubam porque têm fome. O desemprego está a atingir as
classes médias e os licenciados procuram desesperadamente os centros de
emprego. Portugal é a nação europeia com mais desigualdades, o que é
inadmissível num país que fez uma revolução socialista em 1974.
É dos que acha que valeu a pena
fazer o 25 de Abril?
Não subestimo esse dia, pelo contrário. Muitas pessoas podem ter
esquecido o momento e o seu significado, mas eu não. Vivi 31 anos sob um
sistema político horrendo. A liberdade é o maior valor que uma pessoa
pode ter. Sem ela, nada vale a pena.
Nuno Dias da Silva (texto)
José Ventura/Expresso (foto)
Literal e polémica
Maria Filomena Mónica nasceu em Lisboa,
em 1943. Licenciada em Filosofia pela Universidade de Lisboa, 1969.
Doutorada em Sociologia pela Universidade de Oxford, 1978. É
investigadora-coordenadora do Instituto de Ciências Sociais da
Universidade de Lisboa. Colabora regularmente na imprensa e, neste
momento, é comentadora semanal no Rádio Clube Português.
Publicou, entre outros, os seguintes livros: «Educação e sociedade no
Portugal de Salazar» (1978), «Visitas ao Poder (1993), «Os filhos de
Rousseau» (1997), «Fontes Pereira de Melo» (1999), «Eça de Queiroz»
(2001), «As farpas» (2004), «Bilhete de Identidade (2005) e «Confissões
de uma liberal» (2007). Está a trabalhar numa biografia de Cesário
Verde. Académica, escritora e historiadora, é das maiores estudiosas do
sistema politico português no século XIX. Casada com o sociólogo António
Barreto, revelou ao “Ensino Magazine” que «Bilhete de Identidade» não
terá sequela, até porque, «a vida depois dos 33 anos torna-se menos
interessante».
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