Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº113    Julho 2007

Opinião

CRÓNICA

Alcunhas

Li no número sete (2º. trimestre de 2007) da Revista Alentejo Terra Mãe – por sinal, um excelente exemplo de publicação regional – um pequeno apontamento a propósito da edição do Tratado das Alcunhas Alentejanas, da autoria do Professor Francisco Martins Ramos, “a meias” com Carlos Alberto da Silva, também Professor na Universidade de Évora.

Apesar de ter deambulado um par de vezes pelo Tratado, este apontamento na Terra Mãe trouxe-me à lembrança alguns episódios que nesta matéria tive oportunidade de constatar após a minha vinda para o Alentejo.

A alcunha que mais me intrigou foi Buraco à Zorra, mas nunca tive do próprio explicação para a mesma. Depois julguei curiosas ou algo picantes, respectivamente, Pão Mole e Paitio, que, afinal, são apelidos.

Desde logo, a confusão entre alcunha e apelido é enorme. É que, normalmente aqui, uma ou outra designação são a mesma coisa, e até é mais comum definir-se como apelido o nome que é dado aos indivíduos por alcunha.

Mais do que em qualquer parte do país, estes cognomes têm expressão quase geral no Alentejo. O Professor Francisco Ramos, refere este fenómeno como um modo pronto e eficaz de identificação das pessoas e, também, derivado ao aguçado sentido crítico dos alentejanos, uma vez que as alcunhas comportamentais correspondem ao maior grupo, “com cerca de 32% dos falsos nomes alentejanos”.

Embora “recém-alentejano”, ou, se calhar, por isso mesmo, tenho também uma explicação para o facto: concordo com o sentido crítico, mas acrescentaria que com um modo muito próprio de encontrar defeitos no alheio (um misto de desconfiança e zombaria idiossincráticas) que terminam à porta de cada um.

Posso testemunhar que a Amareleja, se não é o epicentro desta singularidade, é pelo menos o centro mais conhecido, cultor desta prática. Na verdade, é naquela localidade, como não, que o maior promotor de alcunhas tem por… alcunha, Registo Civil.

Das inúmeras vezes que passei por aquelas bandas – Mourão, Granja, Amareleja – sempre me deram conta das estórias mais bizarras sobre alcunhas e alcunhados. Achei, no entanto, imensa graça àquela que agora vos conto:

É voz corrente que quem entra em Amareleja, sai com uma alcunha, por mais subtil que seja a sua passagem, por mais inócua que seja a sua presença.

Por isso, todos os forasteiros que são avisados, ou evitam dar nas vistas ou recusam a entrada na aldeia.

Certo vendedor, sabendo que se entrasse na Amareleja, mais dia, menos dia, saía de lá com uma alcunha, decidiu:

- A mim não me apanham lá, passo de lado e não vão ter essa oportunidade.

O problema é que o assunto chegou ao conhecimento dos amaralejenses… Razão pela qual hoje, o homem, de quem não se sabe nome ou apelido, é conhecido pelo… Passa à Roda.

Não deixaria de ser interessante que os nossos ministros colocassem a Amareleja nos seus itinerários. Estou certo de que não haveria surpresas, mas com certeza tornaria a vida política muito mais divertida e a casa de Gepeto mais próspera.

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

O prato de esmalte

A grande novidade foi saber de ti à hora de almoço e sabendo tais novas, saborear a família a crescer. Por por isso fiz contas de cabeça, Faltam-te umas trinta semanas há um prato de esmalte com o bambi estampado no fundo hei-de ensinar-te o sabor da farinha Amparo o prato de esmalte ainda lha guarda o sabor. Não sabes como sabe a farinha Amparo? Depois um dia eu explico-te, com o prato na frente.

Era um vez um conterrâneo nosso, e amigo, que enquanto não comprou televisão passava alguns serões lá em casa, e por morte do capitão Carreto convidaram-no para Presidente da Câmara. Foi assim que António Liberato de Oliveira, o professor Liberato, de alcunha Cachila, passou a acudir pelo nome de Senhor Presidente.

Chegava da cidade, no seu Fiat 6OO branco comprado sem ter carta para não ser acusado de usar o carro oficial nas deslocações particulares, com o chofer de boné que lhe desligava o motor nas descidas para poupar gasolina, o Sr. Afonso, muito cortês, a abrir-lhe a porta - uma porta que abria pela frente - e por ver os dois, como vi o prato de esmalte logo que soube de ti, lembro-me que eram um embaraço para as senhoras de saias as portas dos primeiros 600s. Não sabes qual é o carro que eu estou a dizer? Depois um dia eu explico-te, com o prato na frente.

Findo o jantar o Senhor Presidente subia das Bandas Pequenas, pela S. Domingos acima, não sendo homem de taberna se entrava no Zé Boleto era pelo tabaco, e com o maço no bolso do colete abria o portão e comparecia na sala, sem bater à porta, para o noticiário das oito. Sentava-se na cadeira de braços, de samarra vestida e a manta nas pernas, fumando os Paris que apagava no cinzeiro de loiça de Coimbra, aquele que tem a forma de um moliceiro.

Não sabes qual é o cinzeiro que eu estou a dizer? Depois um dia eu explico-te, com o prato na frente.

A preto e branco os telejornais eram à mesma manipulados, feitos de falatório e omissões e nas poucas imagens que ilustravam as notícias apareciam uns senhores, de fato escuro, usando chapéu mesmo que não fosse domingo.

O Senhor Presidente depois das notícias despedia-se logo, mas ficava um pouco mais se calhava aparecer, a seguir, um senhor de óculos apregoando palavras difíceis nas conversas em família. O homem de voz aflautada aparecia pouco, mal se via, e pelo tom da conversa até fazia de conta que era da nossa família. Em certos dias então parecia mesmo que era, todos lhes prestavam muita atenção. Quer fossem os da cor para lhe dizerem ámen, sim senhor, uma vénia. Quer fossem os do contra que por não engraçar com o cavalheiro lhe faziam um manguito, mandando-o depois a um sítio mas isso só depois de se deixar de ouvir o hino nacional, quando encerrava a emissão.

O Senhor Presidente redobrava a atenção se nos alvitres aparecia um manda-chuva vestido de marinheiro, a quem tratavam por excelência e entregavam uma tesoura, e ao lado dele umas pessoas muito sérias seguravam as pontas da fita que o respeitável acabara de cortar com a referida tesoura. Depois, o mareante depositava a tesoura numa bandeja de casquinha, segura nas mãos de umas raparigas, apegadas aos tais marmanjos usando chapéu mesmo que não fosse domingo. Coitadas das moças naquele alvoroço, nervosíssimas, muito atentas e venerandas como era obrigatório estarem todas as pessoas que estivessem perto do embarcadiço, ainda tão pequenas e já suportando nas trémulas mãozitas o peso da bandeja plaquê lapidado onde meio mundo, refastelado em casa à braseira, pousava o olhar.

Outras vezes, o gentil chefe do estado descansava delicadamente o alcatraz numa almofadinha de renda pirosa, pesada da mesma e que em nada as aliviava via-se na cara delas, os olhos pregados no bordado chibante, os lábios cerrados de aflição. Nos dias de hoje essas cachopinhas azadas são mulheres feitas, terão como eu netos ou netas algumas, outras devido à idade e achaques já nem se lembram que apareceram quando eram pequenas na televisão.

Na inauguração do mercado municipal, ou seja da praça, vimos o Senhor Presidente nas notícias. Todo bem posto, vestido de grave, de chapéu na cabeça sem ser ao domingo. Apareceu ao lado do honorário descendo as escadas e a passear maneiras pela 28 de Maio, em frente ao stand da Ford na garagem dos Valentes.

Professoral, explicou-me no écran, O marinheiro é o que mais manda.

Acrescentando, Mas o dos óculos aquele que tu dizes que aparece pouco e que quando aparece aparece a falar sozinho esse é quem manda nele.

Referia-se ao outro, ao tal, àquele que não era nosso parente.

Não fazes ideia do homem que eu estou a dizer? Depois um dia eu explico-te, com o prato na frente.

Oxalá eu lá chegue e a cabeça me ajude para poder contar-te destas e doutras timtim por timtim.

António Luís Caramona
paudegiz@gmail.com

 

 

 

OPINIÃO

Desafios de Bolonha

Ultimamente temos assistido a uma certa argumentação contra o processo de convergência para um espaço europeu de educação superior (particularmente o universitário), no que parecem convergir (peculiar redundância esta), alguns dos argumentos que, por uma razão ou outra, divisam em Bolonha uma aposta dissimulada para resolver os problemas que “padece” a nossa universidade. Ficamos com a sensação que este argumento tem por base, curiosamente, algumas das determinações do próprio processo, designadamente: a redefinição dos estudos de 2ºciclo, a formação baseada em competências, a abertura internacional, ou a empregabilidade. Esta argumentação, significativa e muito presente entre os estudantes, não deixa também de ser arremessada por um número expressivo de académicos, convertendo-se em formatações, do tipo: Bolonha pretende alienar-nos aos interesses dos grandes consórcios empresariais, Bolonha pretende que nos dobremos aos interesses do mercado e formemos apenas mão-de-obra não qualificada, perdendo assim a Universidade o seu papel fundamental como agente privilegiado do conhecimento e do progresso social.

Estamos em crer que esta argumentação não é assim tão consistente. Porquanto não faz sentido reputar que o processo de Bolonha é negativo porque apenas tem em vista formações gizadas em função das necessidades do mundo empresarial. E como as necessidades das empresas parece que não contemplam estudantes com a profunda bagagem de conhecimentos que caracterizam as nossas formações actuais, qualquer mudança nesta orientação suporá necessariamente um passo atrás. No entanto, nesta asserção está a confundir-se aceitação do mercado com aceitação social. O que Bolonha pretende é que as nossas formações sejam reconhecidas e aceites pela sociedade no seu conjunto, que os nossos estudantes, sejam quais forem os estudos realizados, tenham sempre presente a real capacitação dos cursos que estão a frequentar ou que acabam de terminar.

Um dos principais objectivos de Bolonha é sintonizar os estudos superiores com o mundo real e, ao mesmo tempo, que sejam perfeitamente reconhecíveis quanto às suas funções e perspectivas futuras. Ora, isto é perfeitamente compatível com uma formação bem fundamentada e de qualidade. Depreendemos de todo este processo que o objectivo não é adaptar as nossas formações/graduações às necessidades de empresas concretas, mas permitir uma integração racional dos nossos estudantes na sociedade, com perspectivas reais de iniciar (ou continuar) uma vida profissional independentemente da formação realizada, e com possibilidades tangíveis de aperfeiçoar essa formação inicial ou adquirir no futuro novas competências e capacidades profissionais, mas também pessoais e sociais.

Outro dos argumentos mais expostos é que a formação com base em competências perverte a função essencial da universidade. Nessa linha, tem-se afirmado que não é função da universidade desenvolver competências transversais, designadamente os métodos de trabalho e de estudo, a gestão do próprio tempo, a tomada de decisões em situações críticas, o tratamento da informação, ou a introdução do ensino de línguas em planos de estudos de cursos que não sejam os da área. Estas afirmações não têm em conta um facto fundamental: a universidade contribui para a formação integral da pessoa. É certo que muitas dessas competências transversais devem desenvolver-se desde as primeiras etapas formativas, ou inclusive no meio familiar. Todavia, Bolonha trouxe uma responsabilidade acrescida para a instituição universitária. O mesmo é dizer que a universidade não só contribui para a formação do indivíduo, como deve fazê-lo com um estilo característico próprio e tendo sempre presente que a aprendizagem é um processo ao longo da vida.

O que é que distingue então um universitário dos restantes indivíduos? Será apenas a “ementa” de conhecimentos? Por que é que nos preocupa tanto esse exercício de sistematização quanto ao desenvolvimento de competências em educação superior? Provavelmente, ao longo dos tempos, a universidade sempre contribuiu para o desenvolvimento de competências transversais. No fundo, o que está acontecer, por força de Bolonha, é que o dito “mundo universitário” está ainda com muitos receios em abandonar a prática de um “ensino magistral” e em “entrar” em novos ambientes de ensino-aprendizagem onde se privilegie a flexibilidade para inclusão de novos componentes, a possibilidade de ensino de vários domínios de conhecimento, um melhor processo de ajustamento do estudante e uma maior adaptação do ensino ao mesmo. O passo seguinte é entrar nesse processo de introspecção que nos permitirá identificar qual é exactamente o nosso papel na formação do estudante.

Em definitivo, neste momento de arranque de Bolonha, é importante ter presente os perigos que podem contribuir para perverter esta reforma, mas também não podemos converter o processo num exercício de resistência. Talvez devêssemos reflectir mais sobre que o é a universidade agora, sobre a nossa atitude como estudantes e professores, sobre as expectativas de uns e outros, ou ainda sobre o nosso papel como formadores ou pessoas inseridas num processo de formação superior. Passada a fase burocrática, não é já tempo de começar a preocupar-nos em relação à nossa maneira de ensinar, ou a preocupar-nos pela sintonia dos nossos ensinos com o nosso meio socioeconómico?

Domingos Alves Caeiro
Pró-reitor para o Processo de Bolonha
Universidade Aberta

 

 

 

CONTRABAIXO

Do passar do tempo

7h00 – Salto da cama e olhar nebuloso para perceber se o relógio tem razão; primeiro combate matutino num banho bem temperado; primeiros cumprimentos ou olhares que se cruzam;

7h30 – Cereais, fruta, leite, iogurte, pão, manteiga ou um festim já sem o pai que saiu de casa às 6h45; acertam-se os detalhes da logística do final de tarde, sempre complicada, com as três actividades que se têm de compatibilizar naquele dia;

7h50 – Mochila bem recheada de quilos de cadernos, livros e toda a pafernália necessária já nas costas e marcha rápida para a rua, pois o autocarro passa às 7h55 e o motorista não costuma ser tolerante com atrasos; tempo ainda para um beijo à mãe;

7h58 – Entrada no autocarro já com os auriculares colocados e o leitor de mp3 a debitar; depois de alguns encontrões à saída os primeiros colegas avistam-se à distância, mas não são os que interessam;

8h50 – Cartão magnético à entrada e mais uns encontrões porque o dito cujo não funciona e a paciência não abunda; Curta troca de palavras com alguns colegas antes de entrar na sala para a primeira aula;

9h00 – Tempo de aulas;

13h00 – Pausa para almoço;

14h00 – Mais tempo de aulas;

16h00 – “Explicação” de matemática e português a dez minutos da escola;

17h30 – A mãe da Filipa, nossa vizinha, passa junto à porta da explicadora e leva-nos até ao local onde decorrem as aulas de dança;

18h00- Aula de dança, depois de uma corrida para conseguir mudar a roupa a tempo;

18h50 – Saída a correr, para poder estar, com um ligeiro atraso, na casa do André, pois há um trabalho para entregar, no dia seguinte, na escola de inglês; durante a viagem, uma barrinha de chocolate ajuda a restabelecer energias;

19h07 – Sentados e a trabalhar; bem…gastamos uns minutinhos a actualizar a histórias do dia-a-dia, da nossa vidinha;

20h00 – A mãe da Filipa leva-nos de volta a casa, onde chego por volta das 20h35;

20h35 – O pai está sentado na mesa da cozinha e quase já acabou de jantar; a mãe ainda não chegou, pois hoje tem ginásio; o micro-ondas é uma invenção genial e passados três minutos estou a jantar; entretanto o pai já se levantou e vai sair rapidamente pois vai ao futebol; tem bilhete de época e é, aliás, a única actividade “cultural” a que assiste, se não considerar as minhas audições de piano, às quais assiste com muita ternura mas sem prazer algum;

21h00 – Ligo o computador e fico a conversar com amigos, no Messenger;

21h50 – A mãe chega, estafada; come uma salada e fruta; para bom entendedor estamos no final da Primavera e vem aí o tempo de praia. Pergunta-me se correu tudo bem na escola e claro que sim, o professor de português é um atrasado mental e o João também, já para não falar da Henriqueta que só à estalada e ao pontapé, mas prontos, está tudo bem.

22h00 – Volto ao Messenger já com um empurrãozinho da mãe no sentido de ir lavar os dentes e dormir; digo que já vou trinta vezes até que ela se chateia. É fácil porque ela fica a ver televisão e perde-se um pouco no tempo ou adormece. Entretanto teclei com uma data de pessoal.

22h45 – Agora é que é, o dia está a chegar ao fim. Já de pijama ainda vou ao Messenger dar umas beijocas ao pessoal e deixo o computador ligado, pois pode-me dar uma daquelas insónias que só se resolvem com longas conversas.

EPÍLOGO

No outro dia, para o jornal da escola, perguntaram-me se eu lia frequentemente. Respondi: Klaro k s. Quase todos os dias.

Carlos Semedo 
carlossemedo@gmail.com
 

 


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