OPINIÃO
Era para não ser
assim

Era para não ser assim. Caminhámos horas sem conto, de dia e de noite, desconhecendo completamente o itinerário, povoação, relevo ou sebe que fosse.
A temperatura era apropriada para meados de Agosto, e por isso todo o corpo fermentava dentro da farda e demais parafernália própria destas marchas espúrias.
Com os pés, melhor dizendo, com as botas já ninguém podia, pareciam blocos de argamassa, por um lado custosos de movimentar e por outro de fraca consistência para um corpo em permanente desafio à gravidade.
Tinham-nos prometido sofrimento, estofo, capacidade de resistência e pagaram com bolhas de água, dores de costas, desidratação e micoses. Digamos que, à sua maneira, cumpriram.
Era para não ser assim. As mulheres carpiam as nossas feridas e condição. Juntavam-se na berma da estrada e mesmo sem percebermos o que diziam, sentíamos o seu carinho e a condenação daquele calvário imposto a centenas de jovens, alguns imberbes e de rostos tão pueris, que dava dó. De vez em quando, havia uma espécie de tolerância e a marcha abrandava um pouco bebíamos dos cantis e compúnhamos as alças dos arreios, que descaíam para um lado ou para outro, conforme os vícios do corpo. Sei que muitos pensavam ser aquele um caminho sem regresso, mas era evidentemente uma ideia exagerada. A maior parte pensava apenas quanto caminho faltava ainda para poder aliviar a tralha e espojar-se num chão qualquer.
Era, para não ser assim. As vozes de comando de ordem unida funcionavam como ladainha de novena vespertina: não curavam feridas, não matavam a fome, mas corrigiam a alma e o passo.
Como o suor ensopava as sobrancelhas e alagava as pálpebras, quase não víamos a cinco palmos de distância, porque os olhos ardiam e era difícil mantê-los completamente abertos.
Parecendo que não, esta era a situação menos negativa: afinal de contas, todos nós desejávamos não ter qualquer recordação daquelas paragens e, como se diz, olhos que não
vêem, coração que não sente. Havia, porém, quem inventasse jogos paliativos como contar os passos entre dois pontos determinados ou fazer rimas com os desabafos dos companheiros. Tudo menos interiorizar a missão, para a qual, diga-se a verdade, nunca fomos vistos nem achados, e o importante era acabar depressa o que nunca se desejou começar.
Era para não ser assim. Mas mentia se negasse que meia dúzia ia de vontade. Talvez vissem na sombra projectada o herói sonhado um dia, agora com o seu esforço e o seu perfil talvez vocação ou honra insensata por se julgarem maiores ou, então, simplesmente a estultícia dos que não sabem para onde vão, mas logo se vê.
Ao amanhecer, meio objectivo estava prestes a ser atingido. Misturavam-se então os cheiros de muitos suores com a maresia filtrada pelo pinhal que nos separava da beira-mar. Não sei descrever este cheiro, mas não sei se seria capaz de o reconhecer ainda hoje. O mar era a barreira por enquanto intransponível. Era-nos dado, por assim dizer a cheirar, para não o estranharmos na próxima vez. Quando ali voltássemos, haveríamos de o galgar, tivéssemos ou não ganas para tal.
Podia entender-se desta forma, que estava completa a preparação de um mancebo para a vida. Era para não ser assim, mas
foi.
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
sobre A mesa
Vai daí lembrei-me duma noite que já lá vai, em que estivemos os dois esparramados no sofá, a olhá-la sintonizada num canal só de cinema, até às tantas.
Por olhá-la agora desligada (como é meu hábito), lembrei-me que tudo começou pela mudança de sítio da mesa de tampo oval, uma mesa envernizada, de pernas arqueadas como um jogador de futebol retirado, entretanto desaparecida, para te poder mostrar como ela era.
A mesa derivou do canto da sala de jantar para outro canto na sala de estar, e um electricista diplomado poisou sobre ela, com todo o cuidado e ciência, uma caixa em madeira lustrosa, de feições arredondadas que mais parecia um aquário, pelo vidro que tinha na frente.
Ligou a caixa à corrente, puxou um mamilo da caixa para fora e estacou de atalaia com olhar entendedor.
Seriam de esperar peixes a amostrar no vidro grosso mas, em vez de peixes arrebentaram mas foi, numa contradança danada, umas quantas mãos-cheias de areia grossa e ouviu-se uma chusma de melgas a zunir.
E nós à roda da mesa, a olhar feitos basbaques, suspensos na patavina granulada que se estava ali a passar. Esteve-se assim um bocado, sem nada de especial.
Foi então que o técnico se apurou, e para orientar a antena teve mesmo que se esmerar. Subiu duas vezes à chaminé, empregando a escada da azeitona, aos gritos lá de cima, Então e agora vê-se?
Por magia, ou por um pé-de-vento qualquer que tenha dado nas pontas do cornicho, o granulado desmanchou-se em imagens.
Na imagem de um fidalgo de cabelo empastado e boquilha na mão, a declamar poesia, e a falar de folclore.
Poisada em cima da mesa oval a nossa Phillips não era excepção, os modelos pouco variavam.
Já era assim tipo aquário, a primeira televisão pública no salão do Sindicato com a assistência alarpadada nos bancos corridos das bodas, os mais pequenos pendurados nas janelas como podiam, todos a olhar na mesma direcção.
E no café Moderno, o aparelhómetro acantonado por cima do contador da luz, para deleite da clientela e da miudagem de pescoço no ar, com o Gerente a enxotar a malta, se a canalha enxameava as mesas e ocupava as cadeiras sem facturar.
Nessas noite que já lá vão (vivia-se no purgatório) era tudo acanhado e austero, as paisagens de luto e de cera, as vistas curtas (devido à miopia) e nessa cegueira quadrada deslizavam sobre a terra (dura como calhaus e ruim de lavrar) as ondas da televisão terrestre. Com os seus locutores muito simpáticos, e diga-se, É certo.
No geral os programas eram maçadores, salvo o Quem Sabe, Sabe um concurso que oferecia electrodomésticos a troco da erudição do concorrente conseguir acertar, sei lá, nas cores do equipamento do Vitória de Setúbal, e noutras respostas assim.
Nunca atinei muito em frente à televisão, fora os tais concursos, onde aparecia gente conhecida a ganhar frigoríficos, achava tudo muito chato e comprido e nas casas por onde saltitei, enquanto estudante, não tínhamos televisão e nunca me avezei.
Para me afreguesar não era fácil, como só vinha a casa pelas férias, só tinha televisão pelo Natal quando atravancavam a sala o estrado, a braseira a carvão e a manta de lã para albergar as pernas. Na Páscoa, o tempo mimoso já convidava a laurear, e nas férias grandes a demora com a televisão não era vista nem achada, era tempo mal empregue.
Comparado com espiolhar os primeiros fundos das garrafas, surripilhar petiscos nas capoeiras desamparadas, filosofar na Pedrinha, namoriscar em conformidade (com as fases da lua) ou aquartelar à mesa do clube, para uma cartada, ouvindo as últimas da Rádio Luxemburgo no quineta fanhoso.
Se as emissões desmotivavam também falhavam bastante, e nessas ocasiões a rtp obsequiava os espectadores pagantes de uma taxa anual, com imagens em câmara fixa.
E, por tempos esquecidos, ali ficava tudo a olhar o mar. Apenas o mar batendo nas rochas e uma legenda a dizer, Interlúdio. Era raro mas às vezes pediam, Desculpa por esta interrupção o programa segue dentro de momentos.
Ao final da tarde e aos fins de semana, ainda vá com o Bonanza, os Três Estarolas, a Lassie uma collie mais esperta que a dona, o índio Tonto e o Mascarilha, o Robin Hood a sua Milady e o resto do bando, o sargento gorducho da Highway Patrol, e o melhor de todos, o Mr. Ed um cavalo que falava, dizia larachas e falava tão bem que metia impressão, nem tu imaginas.
A olhá-la agora desligada (como é meu hábito) e vendo a questão friamente: a caixa mudou o mundo.
E numa noite que já lá vai, depois da sobremesa (e apadrinhados pelo sofá) a caixa obrigou-me a mudar de sítio esta ideia fixa que tinha, e troquei de vez a mesa por uma lembrança tua, mais macia de
lavrar.
António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com
CONTRABAIXO
Desafios
Existe hoje, em Portugal, uma rede de infra-estruturas culturais importante, sobretudo se comparada com a realidade dos anos oitenta. Ao longo do processo ainda não terminado de construção e recuperação de teatros,
cine-teatros, centros de cultura ou centros de artes do espectáculo, muito se tem falado sobre a pertinência e proporcionalidade dos investimentos feitos. Por um lado, há quem critique a dimensão de algumas salas em regiões com tendências demográficas negativas; numa outra perspectiva, muitos são os que referem os gastos elevados de manutenção, com o pessoal especializado e a programação.
Estamos, na minha opinião, perante uma revolução notável. Atente-se na rede de teatros da faixa interior do continente, desde Bragança a Beja, com o Pax Julia, passando pela Guarda, com o seu Teatro Municipal, o Cine-Teatro Avenida de Castelo Branco, o Centro Cultural Raiano, em Idanha-a-Nova, o Centro de Artes do Espectáculo de Portalegre, o Garcia de Resende de Évora, até ao Teatro Municipal de Faro. Esta inventariação não é exaustiva mas mostra claramente que há uma cobertura homogénea deste território. Se alguma dúvida persistir, podemos falar no Teatro de Vila Real, do Viriato, em Viseu ou na rede de salas que integra a ARTEMREDE, com pelo menos 16 salas na região de Lisboa e Vale do Tejo. A dimensão desta qualificação é fruto de uma focalização na infra-estrutura e no “fazer obra”, sendo fundamental para qualidade de vida das populações, desde que devidamente aproveitada.
E é aqui que as coisas se começam a complicar. Sem aprofundar os problemas acústicos e de equipamento que alguns teatros apresentam, gostaria de lembrar o óbvio: um teatro, para funcionar convenientemente, precisa de pessoas com um grau de especialização muito importante. Um teatro tem de ser enquadrado numa estratégia, ter um financiamento adequado, um corpo técnico qualificado, uma programação construída a partir do conhecimento dos públicos e ser impulsionador do crescimento dos mesmos, no amplo espectro qualitativo mas, também, no plano quantitativo.
Esta realidade cruza-se com uma outra, igualmente importante. Os últimos vinte anos foram sinónimos de um crescimento muito importante no que diz respeito à formação artística, sobretudo ao nível do ensino superior, mas também na rede do básico e secundário, no subsistema de ensino artístico. Nunca houve tantos jovens a acreditar num futuro ligado às indústrias culturais, às artes do espectáculo e à preservação do património. Nunca tantos foram estudar e trabalhar no estrangeiro para lidarem com outras realidades e com outras possibilidades de formação, regressando muitos posteriormente a Portugal. O resultado é, numa das faces, um incremento assinalável na oferta cultural, tanto em termos de diversidade como de quantidade, que se verifica um pouco por todo o país.
Infere-se que a partir de um cenário muito interessante ao nível das infra-estruturas e de uma melhoria assinalável ao nível da formação, é urgente encarar o sector cultural como um possível motor económico, gerador de emprego e riqueza. Para além das indústrias culturais que já produzem mais riqueza do que muitas outras que tão protegidas são pelo poder político e pela opinião pública, há uma percepção de que o investimento numa boa programação, bem articulada com a realidade local mas de horizontes largos, é um factor de distinção e qualificação das cidades e vilas. Mais uma vez, serão aqueles que demonstrarem possuir uma verdadeira visão que conseguirão apostar nesta área, conseguindo retornos directos e indirectos que embora mais palpáveis no médio prazo, têm consequências imediatas ao nível do bem-estar e da qualidade de vida das populações.
Não vou dar exemplos concretos para não ser injusto com alguns dos projectos, mas é hoje visível que algumas autarquias e privados apostaram claramente neste sector com objectivos precisos e com uma determinação que os coloca na vanguarda. Esta visão garante-lhes vantagens estratégicas relativamente à desertificação crescente de muitas regiões e aproveita um contexto que, embora de crise, tem condições de partida muito interessantes: as infra-estruturas e as pessoas.
Não desbaratar o investimento feito na requalificação e construção de salas. Não menosprezar a aposta na formação feita por tantos jovens e que não deverão ver as suas expectativas defraudadas.
São estes alguns dos desafios mais importantes que temos pela frente.
Carlos Semedo
carlossemedo@gmail.com
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