CRÓNICA
O tique Socialista
É uma pena a intolerância deste governo.
Gente tão bem parecida e culta… É estranha a razão por que afinam,
quando lhes chamam mentirosos. Brutos, porque levam tudo a peito.
Vingativos, porque esmagam, pelo poder que têm, os adversários que não
querem ser subservientes ou solidários, que para o efeito é a mesma
coisa.
Seria mais complicado se reprimissem movimentos sindicais, acções
reivindicativas ou outras manifestações colectivas de descontentamento
pelas políticas levadas a cabo na Saúde, no Ensino, na Administração
Pública, na Agricultura e, enfim, no campo económico-financeiro, nos
salários e preços, no emprego, etc.
Nesta área, a orientação é para controlar, conter, vigiar, nem que para
tal seja necessário restaurar as satrapias de novo tipo, sendo que os
modernos olhos e ouvidos são informatizados, para maior eficácia, sem
descurar a matriz de bufo nacional.
De onde virá este tique? Será remorso? Recalcamento? Falta de confiança?
Origens mal definidas? Ou trata-se apenas daquele falar alto, próprio de
quem tem medo ao entrar em quartos escuros? A História elucida-nos
acerca destes comportamentos excrescentes, mas não é aqui o local certo
para falarmos deles. Certamente, adeptos serôdios do pensamento de Eugen
Duhring, constroem teorias onde apenas cabem as brilhantes conclusões
dos seus neurónios e estranham quando importunados no macio dos cetins
da maioria absoluta, não querendo acreditar que há mais vida além da
própria massa cinzenta.
Inventaram agora a moda da confiança política e do dever de lealdade
para justificarem o afastamento de indesejados adversários políticos,
que por acaso até facilitam… Dito de outra forma, tipos que se fartam de
fazer asneira mas têm um péssimo sentido de humor.
À falta de melhor, esta espécie de oposição – que era poder antes de
cair em desgraça – utiliza a anedota como arma de arremesso político,
cujo efeito é nulo em termos de eficácia e ainda por cima dá o flanco
àqueles que se chateiam com estas coisas, excepto se a maledicência se
remeter ao próprio lar ou à esquina deserta dum qualquer café.
Houve um tempo em que a anedota política tinha sabor clandestino e era
contada primeiro em círculos restritos e, sem que aparentemente alguém a
fizesse circular, emergia em galhofa nacional. Do acervo sobre o ditador
de Santa Comba, esta é, para mim, a jóia da coroa:
A altas horas da noite, três bêbados discutiam o que fazer se naquele
momento ficassem ricos. Preterindo o ouro e o poder desejado pelos dois
primeiros, o terceiro manifestou a intenção de comprar o Salazar.
Evidentemente que foi preso. No dia seguinte, na esquadra, já refeito da
farra da véspera, quis saber que delito o levara à prisão.
- Ai, então não sabe? – Ironizava o polícia, como que a tirar nabos da
púcara – Pois o senhor disse que se fosse rico comprava S. Exª. O Senhor
Presidente do Conselho.
O homem ainda de ressaca, confuso com toda aquela situação, chegou-se
mais ao guarda e confidenciou-lhe em jeito de justificação:
- As porcarias que uma pessoa compra quando está bêbado!...
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
No quintal do vizinho
da frente
A dona da bicicleta vermelha, uma
bicicleta com duas rodinhas na roda traseira na qual me estreei a descer
até ao forno, as pernas estendidas e os pés no ar sem conseguirem
acompanhar a velocidade dos pedais, e a ver chegar-se a banca da matança
coroada a alguidares de barro, cesta de ovos e taleigo de farina - os
preparos para as amassaduras da festa, a dona, dizia, dessa bicicleta
vermelha foi todo mês de agosto para a praia da Figueira e a bicicleta
ficou dependurada num caibo do telheiro, isto passou-se no quintal do
vizinho da frente.
Catrapiscava-a de longe, via-a da rua e aos pombos poisados no guiador,
a dois metros do chão, donde desceu a pedido do meu pai, Só consegues
aprender a andar de bicicleta no alcatrão para isso pedi emprestada ao
ti’ Simão a bicicleta da Fatinha. E lá fomos. O meu pai na pasteleira
preta comprada no tempo das manobras a um ciclista amador dos Escalos, a
minha irmã na sua nova bicicleta azul reluzente - um guarda saias de
elástico decorado a margaridas de plástico protegia-lhe a saia plissada
dos raios.
Arrastei-me atrás deles com a bicicleta à mão até à paragem das
camionetas na taberna do Rebocador, onde acabava o dormente dos
paralelos e começava o piso liso, um pouco a subir, da estrada
alcatroada encetando a empreitada sem conseguir pedalar a direito,
embaraçado num arraial de ziguezagues ouvi lá detrás meio fulo, Firmeza
nesses braços ! e a descompostura resultou. As rodas ajudavam ao
equilíbrio e com a força que fazia fui acertando, a suar em bica e a
impar até à primeira estação na garagem de madeira do Dauphine do
professor Hormigo, aí contabilizaram, Já andaste um quilómetro.
Hoje sei que não é tanta a distância mas pronto, na altura animavam-me.
Na sombra rala de umas azinheiras que ali havia – cortaram-nas para o
infantário, o meu pai tirou as ferramentas da bolsa de cabedal presa ao
selim, desmontou as duas rodinhas arrumou-as no bolso e disse, Firmeza
nos braços e força nas pernas vais passar a pedalar sem esta zambalharia.
Recomecei a andaina mais desempenado e, um quilómetro bem medido mais
adiante, em frente à outra paragem da Setubalense na taberna da Mananas
virámos para o Monte Igreja. Mandaram-me passar para a frente e foi um
prazer desmarcado ultrapassá-los diante da carpintaria do Valério e
poder seguir na frente isolado do pelotão. Senti-me a tampa da laranjada
Bussaco, a carica do camisola amarela a cortar a meta na pista riscada a
giz no terraço, e ao verem-me assomar na curva o entusiasmo dos vizinhos
foi precioso, eu também era um pouco vizinho pela casa da Nazaré.
Dormia sestas junto ao tear de pau empeirado de branco, via amassar as
broas de açúcar, éramos quase todos iguais na idade, eles só eram mais
altos, por isso lhes chamavam Belhanous, rótulo que ainda conservam,
desde esse tempo em que ia com eles aos figos.
A rua estava cheia de gente e turgia, havia gente à janela e cadeiras
baixas espalhadas a eito atravancavam a calçada, vi pessoas
encostarem-se à parede levando as cadeiras enfiadas no braço
brindando-me largueza para passar, aplaudiam.
O poder que sentia por dominar a máquina cegava-me, sentia-me capaz de
pedalar até ao céu, voar já eu sabia que voava graças à bicicleta
vermelha. E numa gincana incrível, os olhos pregados na roda dianteira,
fintando cadeiras e roupa a corar, passei por eles na esgalha a pedalar
em direcção ao adro, quando ouvi rosnar, Ele mata-se na parede da
igreja.
Levantei os olhos e o olhar reprovador dos mil olhos de pedra olhavam-me
mais que medonhos.
Numa fracção de segundos guinei o guiador, evitei dar de caras com o
estorvo de xisto e não fiquei pregado no muro. Não sei como foi, a
manobra saiu ao calha, não me matei nem matar me matava, houve um santo
que me protegeu mas um santo daquele altar não foi. A igreja não tinha
altar, nem telhado tinha quanto mais porque nunca foi concluída, mas se
houve ali mão de santo da minha afeição seria do meu santo padroeiro.
Acabadas as férias grandes a bicicleta vermelha seguiu encaixotada no
porão de um navio para Moçambique, restou-me praticar de pé na bicicleta
azul com quadro de mulher, ou de lado na bicicleta preta e passado tempo
- já lia nas letras pequenas, sentado no selim alcancei finalmente os
pedais.
A bicicleta vermelha, a primeira bicicleta à minha medida, ainda hoje a
vi - dependurada num caibo do telheiro escangalhado e aos pombos
poisados no guiador.
No quintal do vizinho da frente.
António Luís Caramona
paudegiz@gmail.com
CONTRABAIXO
Vianna da Motta
José Vianna da Motta (1868-1948) é uma
das personalidades mais importantes da nossa história da música. Para
além da notável carreira como pianista e compositor dedicou-se de forma
incansável à pedagogia, chegando a dirigir o Conservatório Nacional.
Vianna da Motta ainda não mereceu atenção suficiente que resulte na
publicação de um trabalho semelhante ao que recentemente foi editado
sobre Luís de Freitas de Branco. Este último foi objecto de uma
publicação de maior fôlego coordenada por Alexandre Delgado e com a
colaboração de Ana Telles e Nuno Bettencourt Mendes que entra
directamente para a lista de obras de leitura obrigatória de qualquer
pessoa interessada em conhecer melhor a fascinante personalidade de
Freitas Branco e a nossa vida cultural na primeira metade do século XX.
Mas Vianna da Motta aguarda a sua oportunidade. É sintomática esta falta
de atenção ao nosso próprio património.
Só que nem tudo está esquecido. O propósito desta crónica é lembrar o
Concurso Internacional Vianna da Motta que, quando este escrito for
publicado, terá assinalado os seus 50 anos de existência, com a XVI
edição que entretanto terá terminado. Este projecto dirigido, desde a
primeira edição, por Sequeira Costa, um dos alunos do mestre, é
considerado por muitos como uma das mais exigentes competições
internacionais e conta entre os seus laureados intérpretes tão
importantes como Naum Starkman, Nelson Freire, Vladimir Krainev, Artur
Pizarro, Sérgio Varela Cid e Pedro Burmester. Nem sempre o primeiro
prémio é atribuído e tal não é assumido como um capricho, mas como um
reflexo do padrão de elevada exigência que enforma este concurso. Outro
dos pormenores que transforma o Vianna da Motta num momento especial é a
constituição do júri, normalmente numeroso e com a participação de
músicos de indiscutível qualidade e nem sempre pianistas. Elisso
Virsaladze, Paul Badura-Skoda, Aldo Ciccolini, Nadia Boulanger, entre
muitos outros, fizeram parte do júri ao longo das várias edições que,
com uma periodicidade algo errática, tiveram lugar nos mais diversos
locais, um pouco ao sabor dos apoios e das oportunidades que surgiam.
Ouvi, em diversas ocasiões, Sequeira Costa referir que nunca sabia muito
bem como e onde iria fazer o próximo Concurso. Parece-me inaceitável que
uma organização devotada a perpetuar o legado de Vianna da Motta não
consiga encontrar um quadro de estabilidade mínima que lhe permita
funcionar com a dignidade exigível. No caso deste ano, numa edição com
um júri de luxo que para além do próprio Sequeira Costa, conta com
António Saiote, Natália Gutman, Elisso Virsaladze, Fernando Eldoro,
Liana Isakadze, Sergei Dorensky e Luís Pereira Leal, o Concurso decorreu
no Centro Cultural de Belém. Tive a oportunidade de assistir ao concerto
de abertura e antes do mesmo se iniciar dei conta dum certo desalento do
director do Concurso, ao verificar que a plateia estava muito despida.
Em boa verdade, a grande maioria dos potenciais interessados passou ao
lado desta edição e não foram muitas as referências na imprensa escrita
e na televisão, com a honrosa excepção da Antena 2. Por exemplo, se
alguém tentasse obter o programa da competição através da Internet teria
muita dificuldade em encontrar informação, como pude verificar
pessoalmente.
E assim se compreende por que Artur Pizarro, quando confrontado com a
afirmação de Sequeira Costa de que seria o seu sucessor natural à frente
do Vianna da Motta, respondeu que só aceitaria se estivessem reunidas
uma série de condições um pouco nos antípodas da realidade actual. É
compreensível. E mais que justo.
Carlos Semedo
carlossemedo@gmail.com
ENTREVISTA
A senhora dos Açores
A escritora Romana Petri nasceu em Roma,
onde vive e trabalha, em 1955. Doutorada em Literatura Francesa, é
professora, tradutora e crítica literária nos jornais L‘Unitá e Il
Messaggero di Roma. Em entrevista ao Ensino Magazine fala da sua
passagem pelos Açores, do amor e da morte.
Aclamada pela crítica como uma das vozes mais interessantes da Itália
contemporânea, em Portugal, com a chancela da editora Cavalo de Ferro,
tem publicados os livros A Senhora dos Açores (Prémio Grinzane Cavour
2002); Uma Guerra na Úmbria – Case Venie (Vencedor dos Prémios Rapallo
Carige, Palmi e finalista do Strega); Os pais dos Outros (Prémio Chiara
2000, Prémio Citta di Bari); e Regresso à Ilha.
Os seus livros A Senhora dos Açores
e o Regresso à Ilha passam-se ambos nos Açores. O que determinou a
escolha dos Açores como palco para os seus romances?
Fiz muitas viagens nos Açores, achei-o o lugar mais próximo de mim. Tive
sempre a impressão que aquilo poderia ter sido o lugar de uma outra
vida, já muito afastada, uma vida que lembro e não lembro, mas que
sinto.
O problema da migração seria sempre
tema de um dos seu romances ou esse tema surgiu com a realidade
Açoriana?
A migração nem sempre foi um tema central dos meus romances. Foi uma
escolha feita para a Senhora dos Açores. No inicio o livro deveria
chamar-se Emigrantes. O editor Italiano disse-me que era um título
demasiado triste, não sei, talvez a senhora dos Açores seja um titulo
mais forte. Acho que cada livro tem o seu tema e que um escritor tem que
deixar-se conduzir.
O pintor e escritor português Almada
Negreiros afirmou: «as pessoas que eu mais admiro são aquelas que nunca
acabam». João Freitas, personagem de A Senhora dos Açores e o Regresso à
Ilha é uma personagem que não acaba?
Posso dizer que não acabou muito cedo, que foi uma personagem muito
persistente. Mas agora já penso que não vou mais escrever um outro livro
sobre ele. Acho que chegou o momento de deixá-lo em paz.
Nos seus romances a vida e a morte
convivem muito de perto. Os vivos também são os fantasmas dos mortos ou
a relação é outra?
Os vivos e os mortos vivem juntos, talvez o que faça um pouco de
confusão é que de verdade ninguém sabe se estamos vivos ou mortos, se a
verdadeira vida é esta ou a outra. Talvez vivamos mortos para só nascer
depois, talvez a morte neste mundo seja o preço para depois viver.
O amor tem um excelente tratamento
na sua obra. O amor e a morte ainda são os grandes temas da literatura?
Acho que sim. O amor é uma forma de morte, nós morremos nos braços da
pessoa amada e depois a morte é de verdade uma maneira de morrem e viver
um pouco mais. São os temas mais fortes da literatura, são os temas da
nossa vida e os escritores escrevem sempre sobre o que conhecem. Morte e
amor são os dois grandes mistérios da vida de cada ser humano.
Pode falar-nos um pouco sobre o
trabalho de escrita que está a desenvolver neste momento?
Estou a trabalhar em um projecto muito grande, um livro que não sei
quando vai acabar. Da historia não quero falar porque estou no inicio e
o inicio é sempre muito complicado. Cada escritor tem medo de iniciar e
de não acabar.
Romana Petri já afirmou haver uma
forma portuguesa de estar no mundo e pensa que também lhe pertence um
pouco. Que “sentir” português é esse?
Sinto-me portuguesa porque gosto de calma, de sossego, de luz, de ver
muito céu duma janela, porque sou demasiado optimista e o pessimismo
português ajuda-me a não iludir-me demasiado. Sinto-me portuguesa porque
gosto da língua de Camões, porque é uma língua gutural e forte para
exprimir sentimentos importantes, uma língua onde uma palavra pode ser
para sempre, e não como a língua do meu pai, uma língua lindíssima e
musical, mas onde tudo parece uma brincadeira, uma coisa que dita hoje
amanhã, talvez, será esquecida.
Eugénia Sousa
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