Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano X    Nº110    Abril 2007

Opinião

CRÓNICA

Sanae Sem

Há assuntos que só maceram quem têm que macerar. Imaginem que me trazia desfeito em cogitações já quase a penderem para o lado da cabala – tal como a razão pela qual Jardim se mantém ainda onde está, mas esta percebo – por que carga d`alhos, em grande parte do Alentejo, a distancia que separa vilas e concelhos mais destacados se compreende entre os vinte e cinco e os trinta quilómetros.

Ao principio era apenas a anotação inconsequente da burlesca coincidência, depois já não era só de Évora a Montemor ou a Redondo ou a Reguengos ou a Viana. Também os caminhos mais antigos acusavam as mesmas distâncias. E de Viana a Portel e de Portel a Beja e de Beja a Aljustrel, e assim por diante. Enfim, um calvário que me obrigava instintivamente a conferir a viagem seguinte, a observar com atenção redobrada as placas toponímicas, a interrogar-me em silêncio, não fosse a extravagância pura ilusão minha, uma qualquer obsessão pelo método e pelo rigor das viagens ou pura e simplesmente um acaso fútil, arbitrário e sem explicação racional.

Roído pelo mal-estar que a situação acarretava, algumas vezes medir com o conta-quilómetros do carro, não fosse, por alguma conveniência rodoviária, as placas de informação mentirem. Mas não. Mais metro, menos metro, as contas estavam certas. Seria então uma especificidade alentejana? Um caprichoso e simétrico desenho feito com propósitos geométricos? Talvez um acaso sem a mínima utilidade, ao qual apenas eu atribui relevância? Ou então um...hei, hei, hei, onde é que isso já vai?

É claro que tudo isto (a falta de uma justificação razoável) me colocava a um passo para a conclusão estulta de que as coisas eram assim porque... eram assim.

Evidentemente que não eram!

E durou anos este martírio, até há bem pouco tempo.

Num recente sarau de poesia em que participei em Viana do Alentejo, alguém entre a assistência louvou o evento, também “por não se realizarem com maior frequência acções deste tipo a distância dos grandes centros e tal...”

Veio-me imediatamente à memória o assunto de que hoje falo. Como estávamos em maré de queixas, aproveitei, em ar de graça, para lançar a minha bisca:

Aqui não há esse problema: fica tudo à mesma distância...

E foi assim que o meu amigo Francisco Baião, alentejano, me explicou com a maior das simplicidades o mistério das distâncias idênticas. Trata-se afinal de contas do espaço ideal concebido para a permuta das bestas em antigos itinerários, e que hoje subsistem porque à volta dessas ancestrais estações se criaram aglomerados consistentes, mercê do comércio e respectiva fixação das pessoas.

Este espaço é ainda igual ao concebido para a jornada diária dum homem, de sol a sol. Pelo menos este peso já não o tenho às costas, o que não diminui o fardo do caminho que leva o país inteiro!

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

O casto velo do sócrates

Que me lembre de borregos, só tivemos certa vez um borrego.

O borrego chamava-se Sócrates, juro que assim se chamava o animalejo, e quando passou a carneiro já estava adestrado a marrar para poder vir a ser um touro de lide.

Era um animal lanzudo, de partes baixas imponentes, cara larga e armadura retorcida vez e meia, que de tanto marrar num pano aos quadrado, mesmo sem ter a capa na frente dos cornos que era, rectifico, uma camisa velha de flanela, marrava nas pessoas que lhe passassem à distância da corda que o prendia debaixo da figueira de S. João, enquanto ele pastava pachorrento no tremoço.

O manhoso, avezado como estava a marrar, tanto investia no trapo a bufar pelas ventas, como zangado avançava para o forcado na pega de caras, ou sorrateiro abalroava por detrás, à traição, o que era considerado politicamente incorrecto mas era muito divertido.

Numa dessas investidas desleais, o brincalhão virou de pantanas o ti’ Xico Tomba Lobos, uma pessoa muito sensível que tinha a virtude de encontrar as veias fundas da água debaixo da terra, usando apenas na mão a mão de um almofariz. Afiançar a abertura dos poços só pelo tremedoiro do mágico pilão amarelo atado na ponta de uma baraça, não era para qualquer um.

Com a cornada o homem ficou dorido nas pernas e bastante queixoso. Ficou mesmo ofendido connosco e, pela atrocidade do borrego, ouvimos um ralho inesperado do tamanho do Deus me livre. Mas o pior de tudo foi a publicação oficial de uma lei a proibir definitivamente as touradas e, ainda mais grave, no dia seguinte foi declarada ao borrego que lhe dessem morte imediata.

A sentença da própria morte sabia o animal ter assinada desde o dia em que nascera, a qual devia ser pelas contas dele e pelo almanaque em uso naquela época, apenas quando o calendário estivesse na folha de Abril. 

Para ser mais preciso seria na semana da Festa, o mais tardar dois ou três dias antes do Dia da Nossa Senhora dos Prazeres, porque não havia forma de conservar tanta carnuça.

Por este decreto paterno, pronunciado muito aquém do dia oficialmente aprazado para o acórdão final, foi reclamada a presença do Zé Ribeiro Custódio no nosso quintal. E ele chegou com uma bolsa na mão de onde retirou orgulhoso uma faca grande aguçada, mais umas quantas facas esquisitas e um pequeno machado com cabo de azinho.

Chamou de lado o borrego pelo nome, juro que era assim que se chamava o borrego, e cravou-lhe a faca bicuda no pescoço, pendurando-o numa oliveira de cabeça para baixo já com os olhos revirados. E, a enxotar os gatos, sangrou-o para uma poça aberta no chão, esfolou-o com muito cuidado para a manta de lã, o velo, não tocar na carne, a dobrada deitou-a num alguidar com água a ferver para logo a seguir as mulheres lavarem muito bem lavada a molhada de tripas e bofe. 

Com as outras facas e o malho partiu-o aos quartos e arrumou as massas em cima de um pano de linho, arrecadando para ele a cabeça, sabe-se lá porquê ele guardou a cabeça do no bornal que trazia pendurado no guiador da motorizada.

No domingo a seguir à mortandade, tudo isto se passou antes da data prevista para o sacrifício, como já referi e apenas recordo outra vez aos mais esquecidos : sem coincidir com o evento da Padroeira, com os anos de alguém, coisa de boda ou baptizado, houve sopa gorda de massa de canudo com hortelã a boiar em cima das fatias do pão.

Na travessa amontoava-se a carne fresca, uma talhada de maranho acabado de fazer, orelha, lacão, enchidos diversos e metade de uma galinha das do pescoço pelado.

Na saladeira de vidro, salada de alface migada muito miúda.

Na mesa o jarro de vidro com refresco de groselha, para adornar o conduto.

A pele do Sócrates, juro que assim se chamava o borrego, foi a Alcanena e veio de volta passados uns tempos no assento da Peugeot do ti’ M’nel Caixote. Vinha curtida, veio de lá um casto tapete e esteve anos estendida aos pés da cama, a fazer de capacho no quarto da frente, o que dava para a rua.

Onde agora a desencantei para te dizer, resumindo desta conversa fiada, que só completei umas quantas disciplinas do curso de engenharia química, na faculdade de engenharia da Universidade de Coimbra.

Como consta aliás no meu curriculum.

António Luís Caramona
paudegiz@gmail.com

 

 

 

MEMÓRIAS FICCIONADAS

Maiores de 23: os primórdios

A escola vivia mergulhada na ressaca da turbulência académica de 69. Com o curso de Serviço Social fechado, só havia uma turma de 1º ano, a de Administração Ultramarina. Poucos alunos, portanto, numa escola de média dimensão, sem o gigantismo de outros institutos como os impessoais Técnico ou Económicas (este, à beira da ruptura). Ali, na Junqueira, conheciam-se as caras, os nomes e até as origens. Era uma escola singular, em vários sentidos: ideológico (proximidade ao poder), logístico (instalada num Palácio) e demográfico (cheia de gente “velha”). Ao contrário de Agronomia ou de Letras, onde Arcílio ia com alguma frequência (à cantina ou, quando se entranhou na vida associativa, a “comiciar” ou “meetingar”), no ISCSPU os colegas eram adultos, pais de família, muitos com o ordenado de funcionário público, dos ministérios do Ultramar ou dos Negócios Estrangeiros; bastantes com o estatuto de alunos «ordinários», ou seja, estudantes em full-time. Aos outros, os chamados «voluntários», que o 25 de Abril viria a baptizar, sem eufemismos, de trabalhadores-estudantes, cobrava-se a impossibilidade de ir às aulas com a obrigatoriedade da realização de «frequências», uma espécie de exame prévio.

Aqueles tardios estudantes tinham entrado, no ensino universitário, pela porta grande, nada de processos aligeirados. As «provas para maiores de 23 anos», sucedâneas dos «exames ad hoc», estavam ainda por inventar. Todos tinham feito o curso complementar dos liceus e a admissão à universidade por exame escrito, em duas disciplinas, e, para alguns (poucos, diga-se em abono da verdade), também oral. Nada que se compare com as hodiernas cartas de motivação (sabe-se lá escritas por quem), curriculum vitae (em que nada se comprova), entrevistas (a despachar que a bicha é longa), prova escrita (rasteirinha quanto baste porque senão perecemos à falta de alunos) e as sessões de preparação para se ter sucesso na dita (a pagar, pois então, que os tempos são de crise). Não, ali não havia estudantes de 1ª e de 2ª. O percurso escolar fora idêntico para todos: estudaram o mesmo número de anos, aprenderam as mesmas matérias, “marraram” pelos mesmos manuais, copiaram com o mesmo tipo de cábulas, fizeram o mesmo número de exames. Só que para os mais desventurados, os interregnos forçados, para laborar, estendiam-se na proporção inversa da carteira familiar. Mas agora ali estavam em pé de igualdade com aquela rapaziada mais jovem, chegados um pouco de todo o lado, desse Portugal que os mapas escolares consagraram como Continental, Insular e Ultramarino.

Eram tempos de concentração universitária tripartida – Lisboa, Porto e Coimbra. Este tipo de convivência “multi-provincial” – o país, apelidado de Império, era provinciano: integralmente dividido em províncias (não só as ultramarinas) – ao longo de cinco anos (tempo de duração das licenciaturas à época e que os altos desígnios de Bolonha encolheu para três), fazia mais pela unidade nacional que os programas pós-modernos de educação para a cidadania. Nas actuais escolas superiores, a maioria dos alunos da turma pertence ao mesmo distrito e, muitos, ao mesmo concelho. Não esquecer que a partir do ministro fundador do ensino superior privado, Roberto Carneiro, se plantou uma universidade em cada autarquia, em sinergia com os edis camarários que não dispensam esse adorno académico. Livres, Modernas e Independentes são apenas o pechisbeque que os despachos ministeriais e/ou a avaliação internacional, em breve, colocará no prego, sem direito a resgate.

E era aquela gente madura, na casa dos 30-40 (e mais), que levava a sério a vida escolar: pontuais, assíduos às aulas, atentos e estudiosos. Os únicos capazes de aguentarem o debitar, litúrgico e monocórdico, do padre-docente autor da volumosa “História do Ultramar Português”. Mas, como honrados servidores da pátria administrativa, eram, naturalmente, parcos na crítica e avessos à contestação. Por isso, nem sequer se faziam sócios da Associação Académica (cujo principal benefício era a compra das sebentas, na «Secção de Folhas», a preço reduzido). Socorriam-se do comércio paralelo, de segunda mão, gerido por um diligente transmontano que reforçava o mísero salário de contínuo com os tostões auferidos na transação de livros e sebentas, no início de cada ano lectivo. O sr. Augusto era danado para o negócio. Arcílio recorda-se dele atrás do longo balcão de madeira castanha, no átrio do bloco escolar, com a sua roçada farda azul, de tecido grosso, cheia de botões metálicos amarelos, atendendo, com cautelosa discrição, a clientela estudantil nos seus múltiplos pedidos de material "didáctico" (entretanto adquirido a alunos dos anos mais adiantados que se livraram dele em troca de uns cobres, sem pejo académico, certos da sua inutilidade futura). Hoje, qualquer CRVCC reconheceria e validaria esta competência do sr. Augusto na arte da compra-e-venda, certificando-o como alfarrabista especializado e um exemplo das «boas práticas» do empreendedorismo.

Luís Souta
lsouta@ese.ips.pt

 

 

 

CONTRABAIXO

Olhar longe

Duas notícias separadas por alguma terra e um oceano dão o mote para esta curta crónica. De um lado, a nomeação de Nicolas Joël para o cargo de director da Opéra National de Paris, anunciada a 3 de Dezembro de 2006, com efeito na temporada 2009/2010. Em mais longínquas paragens, a Orquestra Filarmónica de Los Angeles (OFLA) anuncia o venezuelano Gustavo Dudamel como director musical a partir de 2009, quando Esa-Pekka Salonen se retirar para se dedicar à composição.

O denominador comum é a música mas há um outro aspecto que me parece muito mais importante. Em ambas as decisões, a antecedência com que são tomadas ou anunciadas é de cerca de dois anos e meio. Tratando-se de instituições com uma sólida estrutura organizativa e com uma importante reputação em termos internacionais, para um olhar desatento o lapso de tempo que sustenta o anúncio das decisões poderá parecer exagerado. Mas não. A complexidade de um teatro de Ópera e da sua programação e o desafio permanente e os novos caminhos que se pretendem para a OFLA não podem ser delineados e assumidos de uma forma precipitada e “em cima do joelho”. 

Estamos perante dois exemplos paradigmáticos de uma forma responsável de lidar com as instituições e de salvaguardar os investimentos públicos e privados nelas feitas. O que retenho destes dois casos é, em primeiro lugar, a independência de ciclos políticos ou outro tipo de alterações. É, também, dado um sinal claro de valorização da Cultura e das instituições, permitindo que as mesmas trabalhem num quadro de estabilidade. No plano operacional, a antecedência permite que a transição seja feita sem hiatos e, aspecto fundamental, viabiliza a programação com o cunho próprio de cada um dos directores artísticos a partir da data de entrada em funções.

Ao escrever estas linhas não posso deixar de confrontar estes exemplos, naturalmente com a relatividade necessária, com a forma como muitos dos projectos culturais se desenvolvem em Portugal. A primeira diferença é uma forte dependência dos ciclos políticos, com alterações constantes no quadro legal, que condicionam o acesso pelas entidades aos apoios do Estado e coloca no horizonte uma permanente perturbação. Uma outra é a dificuldade em manter uma relação com empresas privadas, no quadro da lei do mecenato, que possa gerar um planeamento a dois ou três anos e uma estratégia que olhe ainda mais longe. Com esta realidade coexiste uma urgente necessidade de profissionalizar o sector. Na área das chamadas indústrias culturais esse trabalho está bastante avançado, mas há sectores nos quais ainda é comum ouvir falar em “carolice” como um dos factores de sustentabilidade. O caminho é, seguramente, outro. Quando só se pode trabalhar “à vista” com cenários de 8/9 meses pela frente, como acontece actualmente na maior parte dos casos, muito dificilmente se poderá operar uma verdadeira mudança. 

O olhar longe é um desígnio político, com a assunção da Cultura como um factor estratégico desenvolvimento mas significa, também, uma alteração de mentalidade do lado de muitos agentes culturais.

Carlos Semedo 
carlossemedo@gmail.com 

 


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