CRÓNICA
Do mar à terra, da
terra ao mar
Não serão as palhaçadas sionistas com as vítimas do costume ou até a embustice socrática, idem, incluindo a história interminável sobre os apagadores de fogos do próximo ano, que me tiram do sério. Infelizmente já estou habituado e há mais gente e melhor para escrever sobre esses assuntos. Foi apenas aquele oficial da GNR e ponto.
Voltemos então à Nazaré e ao meu amigo Joaquim António, cuja memória me merece toda a consideração e a lembrança de momentos graciosos que nunca esquecerei.
Após tantos anos de mar em que deixou ficar o olfacto e boa parte da visão dos seus olhos brilhantes e
azuis, o Joaquim António ansiava por terra firme. Aparentemente era assim. Na
verdade, o bichinho do mar não haveria de o abandonar nunca.
Foi por isso que se aventurou na compra dumas artes (barco, redes, etc.) capazes de lhe satisfazerem o prazer do mar e dissimularem o
desassossego da sua vida em terra firme.
Muito antes de inventariar o material a haver, já o consumia a demanda de um nome adequado para a embarcação. Haveria de ser uma coisa marcante, que mexesse com as pessoas e que todos pudessem dizer sem qualquer hesitação: - este é, com
certeza o barco do Joaquim António.
Um dia, já no fim das minhas férias, atirou-me com as duas hipóteses mais prováveis que finalmente achou por merecedoras de tão solene baptismo:
- Será Timoneiro Álvaro Cunhal ou Companheiro Vasco.
Era tal a convicção que não deixava espaço para acrescentar alternativas ou sequer produzir juízo de valor sobre estas.
Teria que esperar pelo ano seguinte e só então, com os próprios olhos, saber o nome escolhido.
Confesso que me esqueci completamente deste assunto. Quando vinha o mês de Julho o que eu queria mesmo era zarpar, mudar de ares e espairecer. O itinerário é que,
invariavelmente, qual inexorável gps, tinha o destino marcado na Nazaré.
Logo após os primeiros abraços e saudações, punha-se a escrita em dia, acertava-se o aluguer de casa mais a barraca e procedia-se ao primeiro contacto com areia e o mar.
Há trinta anos não havia ainda porto de abrigo, por isso os barcos amontoavam-se em plena praia junto aos banhistas. Esse facto era geralmente aproveitado pelos turistas para tirar umas fotos e eu não era excepção. Dei algumas voltas para escolher o cenário perfeito até que dei de caras com um batel novinho em folha de cores vivas e recentes mas cujo nome inscrito na proa me chamou a atenção: Rosa de Abril. É claro que imediatamente fui saber de quem seria aquela peregrina ideia.
- Pois de quem há-de ser, do Joaquim António, claro!
- Mas... ao menos cravo, Cravo de Abril...
- Sabes bem como ele é: quando se lhe mete uma coisa na cabeça...
Quis por isso tirar tudo a limpo e fui directo ao autor.
- Afinal aqueles nomes?...
- Pensei muito nisso, sabes, mas cheguei a uma conclusão: era meio caminho para me vandalizarem o barco.
- Ao menos punhas Cravo de Abril. Sempre fazia mais sentido, não?
- Tens razão. Toda a gente me diz isso, mas pelo menos assim onde toda a gente lê Rosa de Abril eu leio Revolução de Abril e ninguém sabe!
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
Cheiros e sombras das
Vinhas
Num dia destes, regressava a casa a uns mansos sessenta à hora e com uma estafa às costas, quando:
O lusco fusco passava a escorrer no pára brisas, pela janela do carro entrava o cheiro morno e doce a terra molhada, esses mesmos cheiros de antigamente recordaram-me a quelha das Vinhas e os seus muros de pedra solta bordados a junco e a silvas.
Situada nos limites do termo de baixo, a quelha das Vinhas é um caminho entalado entre a Estalagem e o Cemitério, enquanto dantes se fazia a ligação entre os de Cima e os de Baixo.
Passei a ir às Vinhas quando se tomou de renda uma horta onde se semeavam batatas para todo o ano, e com a demasia da colheita se pagava, sem qualquer contrato escrito, o arrendamento ao proprietário. Tudo na base da confiança, por sermos vizinhos, paredes meias pelos quintais de casa.
Nessa horta havia e continua a haver um poço pequeno, com água suficiente para regar o batatal, mais umas valas de tomateiros e umas valas de feijão verde, que eu via crescer a subir da terra negra, mondada de pedras e de ossadas do açougue, como é a terra no nosso quintal.
Começámos por ir de bicicleta, na pasteleira gigantesca comprada no tempo da guerra, a mesma utilizada aos fins de semana nas viagens partilhadas entre o soldado e o ferroviário, como algum atento leitor destes enredos se lembrará.
Depois passámos a ir à horta de burro, num burro emprestado, naquele teimoso do Cata Agulhas, apelido que lhe lançaram por andar sempre cabisbaixo devido às toutiçadas nas orelhas, as quais nada solucionando só adiantavam, e cada vez mais, a casmurrice ao obstinado.
Com a evolução do negócio passámos a circular em burro próprio, num burro pequeno, de pêlo acinzentado, comprado ao padeiro que fazia a distribuição dos pães de quilo pelas ruas. Era um burro dócil e inteiro, que não mordia nem dava coices, pois muitos burros então havia que ferravam dentadas e escouceavam à toa no ar. Isto se não fossem capados para amansar os instintos, como o nosso Pequeno não era, nem foi e que se saiba, por essa circunstância, não teve o animal grande proveito. Herdeiros não teve, nem criação deixou até ser vendido, alquebrado de velho e estropiado, para banquete dos leões de um circo manhoso que passou perto, arrebanhando o que nesse tempo era burro velho nas redondezas.
Na horta da quelha das Vinhas cresciam os legumes de embarrar empas acima e as verduras rasteiras nas praças e regos, alinhados com a enxada de cabo grosso para o tamanho que tinha o tamanho da minha mão. Na horta da quelha das Vinhas corria também a água do poço, tirada a pulso, até mais tarde ser instalada uma picota meio improvisada mas menos mal, o conjunto funcionava na ponta da unha. Foi de certeza por causa da labuta nessa horta que gosto tanto de salada de tomate, se possível com atum e cebola, tudo bem adubado no mesmo alguidar. E de peixinhos da horta e sopa de feijão verde, recomendando-se nesta o sabor ao osso do presunto, nem que seja o refugo, a boiar na panela.
O caldeiro, imprescindível para a rega, andava sempre connosco. Ia e vinha às Vinhas, por causa da gatunagem, e era compromisso meu nunca me esquecer dele enquanto se aparelhava o burro, se aprontava o ferramental e a partida. Regressava com ele ao ombro, a asa enfiada no braço, a corda húmida enrolada lá dentro a molhar-me a balalaica estampada com a banda desenhada do krazy kat, oferecida por aquele senhor engenheiro, muito dado a oferecer-nos coisas deslumbrantes:
Deu-me ele o barco grande, de plástico, chamado titanic com salva vidas minúsculos desmontáveis do conjunto.
Deu ele, à minha irmã, o carrinho das bonecas em madeira trabalhada com a descrição das arrecadas de oiro das minhotas, em dia de romaria.
Não sei se foi prenda dele aquela boneca desmedida, rija de carnes e austera, vestida com roupa de espuma, que abria a fechava os olhos, um calhamaço em cima da cama, de pernas
escanchadas.
Mas faz de conta que sim, lembrei-me dela porque, um dia destes, enquanto cirandava uma arca no sótão, encontrei-a nua e zarolha, o outro olho arregalado, misturada com trastes e créditos de mais memórias.
Finda a faina do regar e do colher, quando era tempo de recolher das Vinhas, o regresso a casa, de corpo moído, fazia-se ao lusco fusco, com o escuro da noitinha baixando devagar.
Apesar de ter aparecido em calções na notícia do jornal alusiva à inauguração do posto da Guarda, sempre respeitei muito mais as paredes brancas do cemitério, porque estão lá as minhas raízes, que as paredes caiadas do posto da autoridade, que não é da minha família.
Por isso, quando passávamos ao lado das paredes agigantadas como muralhas e reverentemente silenciosas, os contornos das cruzes dos jazigos e dos ciprestes altos como torres de um qualquer castelo branco a aflorar e a luzir lá mais ao longe, burilavam no céu um cenário fantástico e assombrado.
Via-se o sol a desaparecer escondido pelo dorso da serra das Talhadas e, a pouca luz que sobrava, desenhava no chão sombras compridas, meio sumidas, sombras de figuras misteriosas.
Eu punha-me a adivinhar o que diriam, o que sabiam e a quem o diriam, esses rabiscos desordenados.
Se aquilo que brilhava no meio das silvas seria a tesoura do Alfaiate, de uma história que se conta , esteve o homem encadeado num silvado a noite toda até de manhãzinha, quando já cansado de tanto pedir clemência, finalmente reagiu.
Se qualquer tufo de erva seca a esvoaçar seria uma madeixa do cabelo grisalho daquela tia morta por acidente na queda do burro, se o que luzia era a poça do sangue onde ela se esvaiu, coitada, com a perna presa na albarda, ou foram as anáguas que ficaram presas na cilha, a cabeça derrancada, disforme e irreconhecível, de tanto martelar no chão. Se umas sobras de areia e entulho seriam a espuma destilada da boca do animal ressabiado, depois de correr desalmadamente pela quelha fora.
Nunca se apurou a causa deste acidente, mas os burros tal como o coração das pessoas, têm por vezes razões que a própria razão desconhece.
As patas do Pequeno, vistas como eu as via escarrapachado na albarda, estendiam-se pelo chão a mexer, longas e disformes, riscos de sombras, ora subindo pelos muros, ora derramadas pela calçada.
Aos poucos, esses debuxos escuros, deixavam de se ver e no largo da igreja com a hidro já acesa, nem se viam.
O tropel lento e cavernoso das ferraduras nos rebolos, às vezes fazia lume, chispa fugaz como a luz da nuvem dos pirilampos na Fontaínha.
No ar pairava um cheiro morno e doce a terra molhada, cheiros que nunca esqueci.
Lembro-me, também, do silêncio religioso que se ouvia, apenas interrompido pela estropiada apressada de uma cabrada a caminho da Rapoula.
Na Cachoeira adormecia.
Nas Bandas à porta da Barafunda, com a algazarra, os homens acordavam-me exaltados pelos relatos dos jogos da selecção nacional de hóquei em patins.
Um dia destes, dizia.
Um dia destes regressava a casa, a uns mansos sessenta à hora e uma estafa às costas.
Para variar pensava em ti, penso muito em ti e, por acção da hora, pelo acaso dos cheiros, pensei em como era possível haver todos estes anos depois, horas iguais àquelas horas de reminiscências enevoadas, cheias de sombras dissimuladas, até hoje, sem conseguir desmascarar.
Senti-me, acredita, menino montado no burro o corpo senti balançar pelo balanço dolente da marcha do animal.
Afinal o mesmo sono eu senti, que estranho, todas as recordações se repetirem, vê lá tu até a minha vontade, até o meu desejo era adormecer na mesma cama onde nasci.
Não digo com quem, o postigo está aberto e conhecendo o truque, quem me dera que fosses para meu consolo e morrendo de cansaço adormecíamos no sofá, devagarinho, a tua mão pequena abrigada no tamanho da minha mão.
Para avivar no outro dia bem cedo, aparelhar o burro, pegar no caldeiro, rumar às Vinhas e borrifar lembranças tuas com água do poço.
António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com
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