CRÓNICA
Amigo incomum
José Ferreira Monte passou por Castelo Branco há muito tempo. Trazia às costas os livros da Gulbenkian e na cabeça os seus, a sua poesia, o seu combate: para ele a poesia era uma arma, por isso foi também poesia amordaçada.
Descobri um dia destes que não possuo um único livro dele. Não sei o que lhes fiz e esse facto deixou-me triste.
Esgueirou-se para o Litoral no princípio dos anos oitenta com a sua fidelíssima Lucília e, apesar da imensa correspondência que trocámos, nunca mais o vi.
Saciei a saudade deste meu amigo com a leitura das suas cartas de Ovar (quase sempre postais) cuja assinatura, de caracteres indecifráveis, cobre um terço do texto manuscrito, que tão prodigamente me fez chegar, dando-me conta dos seus encontros literários, das suas viagens, da sua saúde e da companheira, a quem carinhosamente, alcunhava de gonçalvista, e, naturalmente, da sua Fundação, da nossa poesia e amigos comuns.
Lembro-me, contudo, de quão exuberantes eram os seus poemas. Ele dizia-os quase gritando, gesticulava como um louco, tornando-os ainda mais acutilante e terminava com os lábios molhados de saliva e os olhos esbugalhados. Mas esta sua atitude não se manifestava apenas na poesia.
Toda a sua vida foi gritada, foi, peço para dizer assim, a face sonora da existência humana. Gostava de ser ouvido. Não por vaidade ou pretensão mediática, que a não havia na altura, mas por forte convicção e
empenhamento nos ideias que defendia.
Em Agosto de 1981, procurou, num pequeno espaço dum postal que me enviou (porque o José Ferreira Monte só não escrevia em cima do selo, dado que tal leviandade inviabilizaria a correspondência), apelar-me em desespero: - Vou reformar-me. Quando é que apareces?
Desculpa, Zé, eu nunca apareci.
Admito também divergências. Ele era muito possessivo e exigia da minha juventude uma predisposição que eu não tinha. Em contrapartida, tudo o que eu escrevesse tinha valor e encanto, coisa que a meus olhos não era obviamente verdade. Mas isso também servia para que eu estivesse tendente a utilizar as suas balas de combate contra as injustiças e as teias que o império tecia.
Volto ao princípio para me redimir das minhas ausências e para homenagear a memória e também a paciência do Luís Pio e a camaradagem do Manuel Rodrigues, sucessor do Zé na Fundação, digno continuador da função cultural do nosso povo.
Deixo-vos, por fim, a pérola do meu querido e incomum amigo José Ferreira Monte: Nos idos da década de 70, a Sassetti teve à venda uns gira-discos (bons e baratos, para a época) e o Zé Monte comprou um desses aparelhos.
Primeira experiência: na noite de passagem de ano – talvez de 72 para 73 – abriu de para em par as janelas do seu apartamento na Quinta do Amieiro e colocou o som do seu novo gira-discos no último furo, para que toda a gente ouvisse a Internacional e o que tinha em disco de Luísa Basto. Foi um escândalo!!
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
Era 'ma vez...
Não sei se já te disse, Nasci em casa no verão de S. Martinho, no dia do arranque da fábrica, coincidência que em nada me pesa mas, para ser sincero, carrego comigo um pesar, A fábrica fechou e perderam a chave.
A parteira que me aparou chamava-se Rosária Neves, mulher asseada como se dizia das mulheres louçãs, e no meu fraco entender sempre achei que ela deveria chamar-se Maria de Jesus, pois tendo sido a parteira de tantas gerações nascidas em casa, com este nome fazia jus ao nome do Menino.
É a senhora que está comigo ao colo (na moldura em cima da mesa de jogo) a fotografia tirada no dia do meu baptizado, à direita o meu padrinho que Deus tem desde cachopo, à esquerda a minha madrinha felizmente de saúde. Andei anos a ver o único registo fotográfico de quando eu era um anjinho e a pensar, Deve ser a tal tia afastada, a da morte na quelha das Vinhas., afinal não era.
Depois desse macabro acidente, o povo perdeu-se a decifrar o mistério sem conseguir, até que outro imprevisto o distraiu, e as conversas das comadres com os casos do dia passaram finalmente a ter outro figurante, deixando em paz a alma desta semelhante. Talvez essa nova peripécia tenha sido, não sei se foi (imaginemos que sim) interessa-me que seja por duas razões, porque ocorreu na fatídica quelha das Vinhas, a coincidência pelo local, e também pelo facto de se ter passado com outro familiar, a coincidência pelo parentesco.
Ali perto das Vinhas, numa crista, há um chão no qual restam vestígios e palheiros do que foi locanda e local de pernoita, daí chamarem-lhe Estalagem. Estalagem, onde se fazia a muda, se quedavam pessoas e se recolhiam solípedes e muares, quando o transporte era feito regularmente em carroças e coches, isto é, estávamos no tempo afastado em que a economia era movida a tracção animal.
Nesse compasso (como agora) as bestas sempre determinaram a economia.
Na Estalagem abrigou-se durante anos, foragido às autoridades, um tal João Qualquer Coisa já me constou o resto do nome mas passou-me. Cadastrado, com registo de autenticidade e atestado passado por malfeitorias e façanhas de longo estágio no bando do Zé do Telhado, dizem. Dizem outros, Terá ele aprendido as artes de salteador de estradas, na escola do João Brandão, o que roubava aos ricos para dar aos pobres.
Morrer um dia morreu esse João, não me soa se de morte morrida ou de morte matada, mas em noite de vendaval o seu espírito ainda hoje paira alto pela Estalagem e em certas noites passeia-se mesmos aos urros, qual Alma Penada, quelha das Vinhas afora.
Que ninguém duvide, Não endoidei não penses, já houve muito boa alma que o ouviu. Reza a gesta e reza mais a lenda. Conta-se.
Conta-se de um Alfaiate de profissão, natural dos de Baixo, ia ele de catrapiscar aos de Cima uma tia avó afastada, com quem veio a casar. Era quinta-feira, à época, o dia oficial para se arrulhar à janela. Com a excepção dos dias de Missa, e nesses apenas à tarde, o mais tardar até ao sol posto, eram as quintas-feiras os únicos dias autorizados para os namorados se encontrarem. E onde? Onde ela debruçada da janela. Onde ele do lado de fora, o ombro na ombreira e perna traçada. Onde apenas quando chovia os futuros sogros aprovavam a entrada ao esposado (nos casos onde o caso já fosse saliente). Onde ele então se sentava longe da amada, ou onde se quedava de pé (ao fundo das escadas). Onde a mãe da cachopa (no degrau do cimo) de plantão aos avanços do moço, a olhadura atenta de guarda, ondeava.
Pois lá seguia o Alfaiate no dia aprazado, depois do derriço.
Era uma noite de ventania e agasalhado no capote cujas abas o endemoninhado e arisco Libécio levantava pelo ar, regressava aos de Baixo, entre os muros de xisto pejados de silvas da quelha das Vinhas.
Às tantas o gabão prendeu-se nas silvas e o homem, advertido pelo salteador, pensando ser a Alma Penada que o encalacrava, logo implorou toda a doçura ao enganoso assaltante. Encadeado naquilo que fosse que o prendia, implorou clemência dizendo, Oh meu senhor tenha piedade de mim que sou um pobre alfaiate! Vezes sem conta repetiu, Oh meu senhor, tenha piedade e mim que sou um pobre alfaiate!
Dizem, não sou eu que digo, escutei-o de quem nunca mentiu, o desafortunado esteve nisto horas e horas a fio, em vão invocou os santinhos do altar, em vão estendeu as súplicas a toda a corte celestial, até a Arca da Aliança e a Porta do Tabernáculo (ao que parece) ele conjurou.
Por mor que assaltante ou assombração o exonerassem-se na paz do Senhor.
E tanto implorou até se cansar, bem vistas as coisas já não era sem tempo, o dia clareava a resposta tardava e tenho que atalhar.
Tenho que atalhar ou esta cantiga transforma-se numa marcha chata e comprida. Vai daí.
Vai daí o alfaiate recheado de coragem berrou, Oh meu senhor ou me larga o capote ou eu, com a minha tesoura de alfaiate, ainda lhe ponho as tripas ao sol!
Punha-lhe as tripas ao sol punha, dizem que terá dito a cambada em tom acintoso, pois ao amanhecer distinguiu ele, em vez da figura etérea do salteador, a sua própria e triste figura, presa nas silvas, pela beirada do capote.
Livrar livrou-se o homem das silvas que o laçavam, mas soltar-se do gancho desta historieta em que para sempre o penduraram, disso nunca mais se
desenganchou.
E pronto, acabou-se o conto. Quem quiser, acrescente um ponto.
Moral da história: qual Alfaiate estamos sempre presos a alguma essência azada ou danada) seja essa pegadura: fado, horóscopo, maldição ou uma silva com nome P(róprio).
António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com
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