JOANA AMARAL DIAS
Mentalidade torna
a educação pobre
Joana Amaral Dias defende um «investimento imenso, continuado e persistente» no sector educativo. A psicóloga e antiga deputada do Bloco de Esquerda diz que Portugal está num estado de «modernização conservadora», em que se constroem «estádios de bola como se fossem cogumelos, mas onde se fecham escolas e centros de saúde como se fossem sucata».
Depois do ballet e da farmácia, acabou por formar-se em psicologia, a profissão que actualmente exerce. Foi por influência familiar, visto que o seu pai é o reputado psiquiatra e psicanalista, Carlos Amaral Dias?
Não sei se foi por influência familiar. Mas se foi, tanto poderia ter sido pelo meu pai, como pela minha mãe, que também é Psiquiatra e Psicanalista, como pelo meu avô materno que era Psiquiatra e Neurologista. E isto só para dar os exemplos mais directos! De qualquer forma, importa esclarecer que Psicologia e Psiquiatria ou Psicologia e Psicanálise não são a mesma coisa. Têm pontos de contacto importantes, claro. Mas são áreas distintas. Tal como Engenharia e Arquitectura, salvaguardando as devidas diferenças. Para além do mais, embora exerça Psicologia Clínica, essa não é a minha principal actividade. Sou investigadora da Fundação para a Ciência e Tecnologia, para além da actividade política e do meu trabalho enquanto cronista.
A sua especialização é em psicodrama e terapia familiar. O aumento do número de divórcios e separações - ao mesmo tempo que as uniões de facto disparam - e a diminuição da taxa de natalidade, são sintomas que apontam para a desagregação da instituição familiar?
Historicamente, a passagem de um agregado familiar alargado, onde era comum a co-habitação de três ou mais gerações, para unidades familiares cada vez mais pequenas está, sobretudo, associada à Revolução Industrial, e a todas as mudanças sociais que acarretou. A migração para as grandes metrópoles, o estilo de vida consequente, a mudança de costumes e a alteração do papel da mulher na sociedade, jogaram também a sua influência. Contudo, importa ressalvar que não se pode falar de desagregação da unidade familiar.
Efectivamente, a mais vulgar forma de representação da família – a família composta por pais e filhos, branca e de classe média – é mítica. Ou seja, vários investigadores mostram que se trata de uma constelação que apenas existiu com significância num breve período de tempo, no pós-guerra. Actualmente, o que existe são novas, diferentes e variadas formas de família, que podem ir desde as famílias monoparentais às famílias reconstruídas por divórcios e novos casamentos. Não são, forçosamente, piores formas de família. São um fenómeno novo, apenas. Quanto à diminuição da taxa da natalidade, vale a pena realçar que se trata de um fenómeno, principalmente europeu, e que o mundo não tem a sua população a diminuir. Bem antes pelo contrário e os tempos são para pensar global. É claro que a emancipação da mulher e os meios contraceptivos contribuíram para a preferência por um menor número de filhos. E essas são, certamente, mudanças positivas, convém lembrar. Além do mais, a baixa de natalidade não tem que ser vista como um sinal de alarme. A Europa continua a ser atractiva para muitos. Basta ver a quantidade de imigrantes que, diariamente, chegam às nossas fronteiras, com vontade e necessidade de aqui construírem a suas vidas. Este é também o tempo de repensarmos a forma como lidamos com a imigração, mesmo na resolução dos nosso próprios problemas, como a baixa de natalidade.
Tem sido um dos rostos em defesa da despenalização da Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG), uma «novela» que se arrasta há vários anos. Quais as razões para o seu empenho nesta luta? Agora que o tema volta ao Parlamento, e ao que tudo indica deverá ser submetido a apreciação popular em nova consulta, pensa que está aberto o caminho para a legalização?
Vejo a IVG, até às dez primeiras semanas e no serviço público de saúde, como um direito da mulher. Penso que qualquer mulher deve ter esse direito de optar, de decidir se quer e se pode levar uma gravidez por diante. Aliás, à excepção da Irlanda, Portugal é o único país europeu onde a IVG é criminalizada. Mas para além da questão do direito, importa atentar na realidade. E a realidade mostra que as mulheres que têm mais recursos, e independentemente da lei, optam pela IVG. Não é difícil, com é sabido, encontrar clínicas privadas que a pratiquem. São, essencialmente, as mulheres com menos recursos que ficam em risco. Que recorrem a abortos de vão de escada, com todos os problemas para a saúde física e psíquica que essas situações comportam. Ou seja, a actual lei contribui para que persista o aborto clandestino, prejudicando as mulheres que já têm situações sociais e económicas mais frágeis. A maioria das mulheres que não quer levar uma gravidez por diante, não o faz. Mesmo. Hipocrisia à parte, a questão está em saber em que condições é que essas mulheres vão realizar essa decisão. A única forma de resolver esta questão, é garantir que os hospitais públicos assegurem a IVG até às dez primeiras semanas de gravidez, de molde a que todas as mulheres possam ser tratadas com segurança e dignidade. Também importa sublinhar que a actual lei é absolutamente medieval. Criminaliza as mulheres que abortam, perseguindo-as, julgando-as e humilhando-as. Inaceitável.
Foi eleita deputada da nação em 2002 na sequência das eleições que se seguiram à queda do Governo Guterres. Da
experiência que teve, pôde constatar o que o povo pensa da Assembleia, que a maioria dos deputados ganha demais para aquilo que trabalha? Como recuperar a má imagem pública que têm deputados e a própria «Casa da Democracia»? Defende a redução do número de deputado?
É preciso esclarecer, desde já, que Portugal nem tem muitos deputados – quando comparado com os restantes países – nem os deputados ganham muito, tendo em conta as responsabilidades inerentes a ser representante do povo. Por outro lado, a redução do número de deputados levaria, inevitavelmente, ao estrangulamento da diversidade partidária com representação parlamentar. Isto é, os pequenos partidos, como o Bloco de Esquerda, o PCP e o CDS-PP, veriam o seu grupo parlamentar muito diminuído ou mesmo varrido da AR: ora, a democracia necessita da diversidade como de pão para a boca. Um parlamento composto apenas pelo PS e pelo PSD, no limite, seria uma enorme ameaça para a qualidade da nossa democracia. Portanto, não entendo que o caminho para a credibilização da AR seja o da diminuição do número de deputados. Claro que reconheço que a classe política está muito mal vista. E com razão. Promessas eleitorais que não são cumpridas, escândalos e corrupção, sempre-os-mesmos-do-costume, acumulação de funções e de interesses, são situações que prejudicam, com justeza, imagem dos políticos. E são essas situações que devem ser mudadas. Com urgência. Por fim, não posso deixar de mencionar que existe um cada vez maior fosso entre políticos e cidadãos, o que está relacionado com o ponto anterior. É urgente, então, encontrar formas de restabelecer esse contacto e de resgatar essas ligações. As formas de democracia participativa devem ser altamente reforçadas pelo poder político. Por exemplo, petições ou iniciativas de cidadãos que chegam à AR não podem esperar meses, ou mesmo anos – como ainda acontece – para verem a luz do dia.
No Parlamento era jocosamente apelidada como a «Barbie do Bloco». Numa entrevista que deu ao «Expresso» considerou tratar-se de um sintoma de uma «sociedade sexista». Portugal é um país onde ainda abundam discriminações de género, visíveis ou encapotadas? A aprovação da lei da paridade é um passo positivo para, pelo menos na política, essa desigualdade de forças ser atenuada?
Não diria “jocosamente”. É mais «machistamente», «sexistamente» e «tolamente». E sim, em Portugal abundam situações dessas. Basta olhar para os salários das mulheres, ainda inferiores. Para as horas que as mulheres portuguesas gastam em trabalho doméstico, que são três vezes mais do que as dos homens, embora, tradicionalmente, as mulheres portuguesas sejam das mais inseridas no mercado de trabalho, comparando com outros países europeus. Para o número de mulheres nos vários centros de poder, como o económico, o universitário, o científico, o artístico ou o político. Isto é, embora as mulheres estejam cada vez mais bem qualificadas, e por vezes melhor qualificadas do que os homens, os lugares de topo continuam a ser reservados para os últimos. É necessário alterar esta situação, que é discriminatória e injusta. No poder político, nomeadamente, nas eleições para a AR, as quotas são uma boa medida, já que aceleram uma mudança que já deveria ter ocorrido. E, desejavelmente, tal como aconteceu nos países nórdicos, deixarão de ser necessárias daqui a algum tempo. Para já, se são os homens que continuam a barrar o caminho das mulheres, é imprescindível alterar essa situação, mesmo que seja «na secretaria».
Exerceu voluntariado na área da exclusão social. Essa experiência pessoal abriu-lhe os olhos para as assimetrias existentes no nosso país?
Claro que sim. Pude percebe melhor a brutal exclusão social que grassa em todo o país, formar uma outra consciência social e política. E ganhar experiência de «terreno». Como costumo dizer, uma coisa é lutar para que a sopa chegue a um sem-abrigo. Outra sentar a comer a sopa com ele.
No seu artigo semanal no DN escreveu o seguinte: «Portugal está cada vez mais parecido com o seu passado castiço». Estamos perante a reedição da fórmula Fado, Futebol e Fátima, que vigorou durante o Estado Novo?
Pois. Uma reedição de capa mole. Sem a ditadura da modernidade adiada, mas com uma modernização conservadora. Isto é, um país onde se constroem estádios de bola como se fossem cogumelos, mas onde se fecham escolas e centros de saúde como se fossem sucata. Um país cheio de instâncias turísticas, mas com os empresários mais mal formados da Europa. Um país pleno de Centros Comerciais, mas com altas taxas de endividamento familiar. Um país onde Fátima é um complexo hoteleiro e o Primeiro Ministro se benze catolicamente em cerimónias, mas onde a cultura é tratada como um luxo e a leitura ou a matemática são pesadelos para as crianças. Na televisão, a publicidade institucional a Portugal é Mourinho, Mariza e Tiago Monteiro. Onde estão os cientistas ou os criadores, por exemplo?
Como é que uma psicóloga interpreta a permanente oscilação dos portugueses entre a euforia e a depressão? É fado nacional ou faltam líderes para motivar as massas?
Não acho que exista essa oscilação, nem me revejo em interpretações psicologistas. O que existe são momentos muito difíceis na vida social portuguesa, sendo que os nossos líderes têm grandes culpas no cartório onde, já se sabe, a dita morre solteira. Nomeadamente, a grande oportunidade contemporânea de desenvolvimento sustentado, a entrada para a União Europeia, foi desbaratada. Doravante, o caminho será cada vez mais difícil e, também por isso, os nossos líderes terão que ser bem mais competentes, sérios e empenhados. Num contexto onde o desemprego é muito acentuado, empresas fecham diariamente, os trabalhadores assistem a muitos dos seus direitos a serem minguados ou mesmo eclipsados, o custo de vida é elevado e a saúde cada vez mais cara, como hão-de se sentir os portugueses? Só podem estar pessimistas e preocupados. Há momentos de euforia, claro. Mas são chuva de Verão.
Finalmente, as perguntas da educação, o fio condutor do nosso jornal. Portugal é o país da UE com as propinas mais caras, mas que menos apoio dá aos alunos. Pensa que os confrangedores índices em termos educativos fazem deste sector um dos grandes fracassos dos 30 anos de Democracia? Alunos, professores, pais ou ministros da Educação: É possível apontar o dedo a culpados?
A Educação no pós Abril não é um fracasso. Francos progressos foram alcançados, e se compararmos os índices de alfabetização, por exemplo, dos tempos de Salazar, com os índices de agora, essas conquistas são notórias. Penso que devemos ter cuidado ao avaliar a Educação em Portugal nestes 30 anos de Democracia. Falar de fracasso pode dar a impressão, nomeadamente às gerações mais jovens - que, felizmente, já não viveram a opressão da ditadura - que a Educação de então era um investimento e uma prioridade, quando era, justamente o oposto que sucedida. É evidente que têm ocorrido falhas, dificuldades e atropelos. Desde o ensino básico ao superior. E que, na maioria das vezes, esses problemas podem ser imputados à incompetência dos muitos ministros que foram tomando conta da pasta. Relativamente às propinas, devo dizer que tomo a Educação como um direito fundamental, e que defendo uma educação universal e gratuita, tal como está plasmado na nossa Constituição. Desastrosamente, já que somos um país com cidadãos muito pouco qualificados, a aposta tem sido na tendência inversa, no sentido de fazer com que sejam as famílias a custear – para além dos impostos que pagam, entenda-se – a educação. Fala-se muito do modelo nórdico entre alguns dirigentes políticos. Era bom que esse mesmo discurso contivesse e divulgasse o que foi fundamental para o desenvolvimento desses países: um investimento imenso, continuado e persistente na educação.
Depois de ter sido elevada a «paixão» pelo Governo de Guterres, a Educação tem sofrido constantes desinvestimentos. Isto acontece porque apostar neste domínio não dá votos ou porque os ciclos eleitorais são demasiados curtos para se observarem resultados palpáveis?
Penso que, em parte, o investimento na Educação é tíbio porque, realmente, só revela resultados a longo prazo, o que não se compadece com a crescente mediatização e espectacularização da actividade política. Mas não só. O investimento tímido na Educação deve-se também a uma mentalidade enfezada, a uma modernização conservadora, como mencionei anteriormente, onde permanece uma grande dificuldade em perceber as ideias - a educação, a cultura, a arte – como o grande impulsor da humanidade.
Dos seus artigos que tenho tido oportunidade de ler, tanto no DN como no blogue «Bichos Carpinteiros», ressalta o tom critico em relação à administração Bush. A intervenção no Iraque gerou um «vespeiro» de anti-americanismo em toda a região do Médio Oriente. Os recentes episódios dos cartoons sobre Maomé e a reacção colérica às palavras do Papa Bento XVI podem significar que se desenha no horizonte um choque de civilizações que quase todos rejeitam em admitir?
Não me revejo na ideia de choque de civilizações. O que há são fundamentalistas muçulmanos. Mas a grande maioria dos árabes são moderados. Seja como for, penso que devemos começar a reflexão sobre a relação contemporânea entre ocidente e oriente não a pensar no Outro, mas a pensar em nós próprios, na forma como temos agido e nas consequências que daí advêm. Não é esse também um valor da nossa sociedade? E o que se passa é que, na sequência do ignóbil ataque do 11 de Setembro, a maior potência ocidental respondeu de forma completamente obtusa, invadindo um país que não tinha qualquer relação com esses mesmos ataques. Procedeu a essa invasão mentindo, aldrabando e jogando para o lixo o Direito Internacional. Esbulhando, humilhando e matando muçulmanos. De caminho, escândalos como Guantanamo e Abu-Graihb foram mostrando que, para lutar contra o fundamentalismo, houve quem empregasse os métodos que condena. Que haja quem esteja disposto a defender os valores da democracia ocidental atropelando esses mesmo valores. Tortura, como aquela que sabemos hoje, pelo próprio Bush, que é praticada com a tarimba da administração estado-unidense, é disso um exemplo.
Sabe-se agora, através dos relatórios de vários organismos idóneos, aquilo que há muito se suspeitava. A invasão do Iraque é directamente responsável pelo aumento do terrorismo. Será que isto não é suficiente para entender que não há qualquer choque de civilizações, mas antes uma espiral de erros, agressões e provocações que pode ter um desfecho ainda mais trágico?
Por isso mesmo, entendo as palavras de Bento XVI como profundamente desadequadas.
O Sumo-Pontífice devia ter pedido desculpa?
O Papa deveria apelar ao ecumenismo, mais necessário do que nunca. Recuso-me a aceitar que o Papa falasse na condição de académico – a não ser que ainda não tenha percebido que o seu papel não é esse – ou que tenha sido apenas desastrado. A não ser que não tenha qualquer perfil para o cargo. Assim, só posso entender as palavras de Bento XVI como propositadas e irresponsáveis, mas na senda daquilo que se conhece do seu pensamento teológico – a crença na superioridade da religião cristã. O Papa reconheceu o seu erro, pedindo desculpas, ainda que tímidas, pelo sucedido. Mas, como se costuma dizer, as desculpas não se pedem, evitam-se. Não é a guerra que deve ser preventiva. É a fragilização da paz que devemos, sem tréguas e teimosamente, prevenir.
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