Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº105    Novembro 2006

Opinião

CRÓNICA

Nomes

Naquele tempo não havia nomes para os fenómenos da natureza. É certo que chamávamos Ponsul e Ocreza aos rios ou Cardosa e Gardunha às serras. Mais tarde, já na escola, aprenderíamos os nomes dos outros rios e serras e também de mares, de estrelas e planetas. O que em 1954 chamámos àquele arremedo de apocalipse albicas-trense foi, simplesmente, Tufão. Não interessava se era furacão, tornado, ciclone ou vendaval mais impetuoso. Era e é por Tufão que o conhecemos ainda hoje.

Mas agora os tempos são outros e são os americanos que os fabricam, os exportam e lhes dão nome inglês, graças à cobertura mediática a que estão sujeitos tais prodígios naturais.

À hora do Tufão eu estava a dormir a sesta. Só mais tarde soube pelos familiares adultos que iam chegando a casa, todos com cara de quem parecia ter caído da asa da milhana, que algo estranho se teria passado.

O Tufão passou assim a ser nome próprio dum fenómeno de que todos fugiram - num tempo em que fugir também tinha conotações subversivas - e que fez do meu tio Joaquim Sousa herói da família por ter aguentado à força de braços a porta da cozinha contra a ventania que vinha do quintal, na Rua 5 de Outubro.

E, ao que parece, vista a coisa à escala, terá sido algo inédito e devastador, capaz de mudar de sítio tudo o que não estava bem seguro ou foi apanhado de surpresa. Uma espécie de Polis com mau feitio e sem relógio. É claro que o tempo já revestiu o Tufão com roupagens mais ou menos ficcionárias, todas sem nome nem endereço, excepto o coreto, no centro cívico, este sim, com nome, mas desaparecido para sempre.

Contudo, foi certamente marcante na vida de todos os meus contemporâneos e também traumatizante, uma vez que, passados alguns anos, as autoridades mandaram encerrar as escolas e cessar os serviços e as actividades económicas, por se prever uma tormenta semelhante à de 54. Era com certeza já o embrião tecnológico das previsões climáticas, que, tal como hoje, se começa por anunciar, com nome de baptismo, o fim do mundo e quando, chega ao pé de nós vem morto de cansaço, sem vontade para grandes alarveirices.

Tais factos, na minha maneira de ver, são mais do que suficientes para também nós atribuirmos um nome ao nosso Tufão, em tempos de tanta catástrofe anónima. E, se me permitem, - antes que apareça por aí um daqueles que a propósito do Gordon descobriu uma nova ilha dos Açores, as “Lajes” - dar-lhe-íamos, a título póstumo, o nome de Morão, não vá alguém chamar-lhe todos os nomes que lhe venham à cabeça ou carregar nas tintas e dizer que a coisa era maior do que na realidade foi.

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

A caixa das ararutas

O sapateiro António dos Ramos, pai da minha mãe, pela única fotografia que temos dele de corpo inteiro e cotovelo apoiado numa floreira, era um homem pequeno. Diziam-no com veia para a concertina e tinha um dom, o dom de saltar aos pés juntos o balcão de uma taberna, sem tomar balanço.

Morreu novo, as suas memórias terminam na padiola que o transportou depois de um pedregulho lhe ter ceifado a vida, na pedreira onde arrancavam pedra para construir a casa onde nasci. Foi à hora do almoço dos cabouqueiros e tinha a filha do meio, a única filha dos três órfãos que deixou, dois anos e meio de idade.

Por esta desdita pouco tempo ele foi o homem da minha avó, Maria Mendes, do Cesto. Do cesto, a alcunha por ter sido tendeira quando enviuvou e assegurou o destino a pé pelas ruas, de cabaz à cabeça, feirando panos e retrosarias.

Anos mais tarde a meias com o genro e o negócio montado nos baixos da casa, na Loja Nova, passou a ser conhecida tal como assinava o nome nos documentos e letras de favor, pelos favores de avalista que fazia. Quando alguém precisava endireitar maneiras a vida, se a vida entortava, ela avalizava o desconto de papel no Banco de Portugal assinando, Maria Mendes (Viúva).

Vestida de preto até na mortalha, morava a meio da rua do Outeiro numa casa parelha às outras, no número quarenta e três. Da casa, vendida e arranjada, sobeja da original a boca da porta e os três olhos das janelas.

A minha avó furava as orelhas às meninas com uma agulha a arder e linha molhada em álcool, e fazia renda sem parar mesmo nas abertas da freguesia. Pendurado ao pescoço um eterno colar pérola ou cru, do algodão número doze das linhas Âncora e a obra, as agulhas e o resto do novelo acauteladas no bolso do avental. Deixou furos nas orelhas para brincos, deixou-nos entremeios e franjas, fatias de naperões e colchas. 

Colchas com que a todos nos cobriu afirma-se em pedra mármore, para que toda a gente veja, no sítio onde repousa.

Queixava-se das costas, Até parece que tenho aqui um cão a ferrar-me. E punha a mão no sítio onde lhe doía. Não tinha cão mas tinha um gato, o Tareco, a comer a meias com o nosso rafeiro, o Báu, do prato de contrabando, o prato guardado debaixo do tanque de lavar a roupa, o tanque na obscuridade húmida da figueira. 

Não cozinhava, pela manhã fazia o púcaro do café, almoçava e jantava em nossa casa. Aos sábados é que não por causa da loja aberta até mais tarde, levávamos-lhe o jantar numa cestinha com todo o cuidado para não entornar o copo do chá.

Nunca a fizemos acreditar no que viu de madrugada, em directo, o Homem passeando-se aos saltos na lua, nem no dia seguinte com a notícia ilustrada no jornal. Vibrava com forcados e pegas de caras, quintas feiras à noite, nas transmissões do Campo Pequeno.

Até entrar na escola dormia lá em casa, mal feito fora não me lembrar do capote do meu avô enforcado num prego aos pés da cama, ela a estendê-lo no meu lado se as noites arrefeciam. E do soalho enfraquecido, rangente e a abanar com o andar, da cristaleira carpinteirada com tábuas desmanchadas de caixas de sabão, das ventosas em vidro para as maleitas e das chávenas penduradas nos camarões a tilintar umas nas outras, a cada passo.

Lembro-me da loja. Lembro-me de comer, esboroados no prato de esmalte da balança, os torrões do açúcar amarelo babados da boca do cartuxo em papel pardo, como se fossem rebuçados de meio tostão desembrulhados. De chupar, aguentando o ardor nos lábios, as migalhas da faca e os rabos dos peixes de bacalhau que as freguesas não levavam no embrulho de papel almaço às riscas.

Arrumado no desvão das escadas, o bidão do petróleo com a torneira amarela a brilhar, e nunca apurei se a torneira não seria mesmo feita de oiro, pois à luz fraca do candeeiro, quase, quase às escuras, a torneira sempre luzia.

E das moscas. Lembro-me das moscas voando à roda de uma rede redonda, muito fina, a tapar a lata de quilo, meia de azeite, meia de atum, um misterioso peixe oleoso incompreensivelmente ali exposto no balcão para venda avulso, vindo de uma coisa grande e salgada chamada oceano ou mar, ou lá o que era.

Do mar só conhecia o desenho na capa dum livro da quarta, com o Infante D. Henrique sentado num rochedo a olhar, a olhar o absoluto, com ar entendido, um dedo estendido e um mapa na mão.

No chão da loja, de lajes azuis irregulares, as barricas e as sacas das sementes, as medidas com a rasoura dentro do meio alqueire, e por cima, arrumadas em prateleiras pela qualidade do artigo, as peças de cotim e do riscado para as blusas e aventais. E as peças de flanela com florinhas coloridas para as combinações das mulheres.

As peças vinham de um sítio chamado norte, e devia ser longe. Do despacho na origem em pequena velocidade até à estação do comboio, do vagão de mercadorias para o barracão da Central, donde então o Domingos Minhouva as carregava na carroça para entrega ao domicílio, as peças tardavam tempos infinitos a chegar.

Todos estes meandros descorçoavam as costureiras e irritavam a minha avó, que se fartava de reclamar a uns senhores de fora, chamados caixeiros viajantes, que chegavam em carros carregados de malas enormes de onde saíam mostruários de chita da tabela e botões, trens de cozinha e cutelarias, artigos de papelaria e crucifixos de plástico. 

O Sr. Sousa que nos oferecia brindes e comia de uma assentada oito ovos cozidos com areias de sal e bebia outras tantas cervejas pretas, preenchia as notas de encomenda, aceitava as reclamações enquanto divulgava, trocando os vês pelos bês, notícias mirabolantes e bisbilhotices do arco da velha.

Vejo agora as peças com as etiquetas do preço por metro penduradas, e como sinto entrar uma brisa pelo postigo da janela, vejo as etiquetas a dançar. É o que vejo.

E vejo a caixa das ararutas, uma caixa de folha forrada a papel com o desenho de uma menina de caracóis, sorridente. 
No desenho ela segura na mão outra caixa, com outro desenho mais pequeno da mesma menina sorridente, e esta segura na mão uma caixa, onde a menina continua a sorrir, diminuindo de tamanho. E depois outra e outra, todas as meninas iguais, todas as meninas com o mesmo sorriso e uma caixa na mão, cada vez mais pequenas, já mal se distinguindo quantas meninas ao todo serão, tantos são os desenhos das meninas sorridentes com caixas na mão, até mete confusão.

Mas se olhar a caixa assim por olhar, como quem diz, Assim de relance. Melhor dizendo, Como olho para ti, dá-me igual. 

Lá está ela em ponto grande, a menina, sempre a sorrir. 

Como nunca vi ninguém a rir-se assim para mim, tenho a certeza absoluta que aquela menina foi a minha primeira namorada, Princesa.

António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com

 

 

 

MEMÓRIAS FICCIONADAS

"Eh pá, entrei na Universidade"

Um orgulho sem planos de futuro. O curso era mais fuga do que escolha: aquele onde não se exigia Matemática no exame de admissão; o possível, num espectro estreito de alternativas que a alínea g) possibilitava. Os testes psicotécnicos, efectuados no liceu, não o tinham orientado; Arcílio ainda os foi repetir mas os resultados deram em nada. Ficou por esclarecer se o problema era seu ou do dispositivo técnico dessa psicologia aplicada (ao lucro). A opção acabou por ser exclusivamente dele pois os pais, em matéria académica, criaram-no segundo uma respeitadora autonomia que as suas reduzidas habilitações aconselhavam. Assim, decidiu em função do nome do instituto – o único em que aparecia Ciências Sociais e Políticas – embora aí a oferta fosse bem escassa, um só curso. Mais tarde, soube que o de Serviço Social tinha sido fechado pelo MEN na sequência das lutas académicas de 69. Para se justificar, perante os amigos da sua insólita decisão, agarrou-se às saídas profissionais de um folheto, fornecido na secretaria (como os de hoje, pura propaganda a prometerem mundos e fundos). A maioria da turma do 7º ano ia para Económicas, incluindo o seu grande amigo Licélio, o Caetano para a Academia Militar, o Cabeças para a Faculdade de Ciências. Arcílio via-se sozinho e algo inseguro no arranque de tão ambicionado trajecto escolar. 

A matéria das oito disciplinas anuais não entusiasmava Arcílio nem muitos dos colegas, a não ser, talvez, os assíduos alunos adultos – funcionários coloniais em processo de valorização profissional, na mira de um lugar de «chefe de posto» ou de um salto na hierarquia do Ministério do Ultramar. E, paulatinamente, com alguns da sua idade foi-se juntando aos colegas do 3º ano que, naqueles dias solarengos de Outono, se deitavam no “esplendor da relva”, à beira do “lago grande” (que afinal não era, com rigor, nem uma coisa nem outra), onde gordas carpas lhes prendiam mais a atenção que as arengas ideológicas sobre a administração do Portugal Ultramarino. Duas ressalvas na sua censurável assiduidade: as aulas práticas de Geografia, dadas por uma jovem assistente – a excepção ao cinzentismo (sempre engravatado) de um corpo docente masculino, entradote e distante – e as aulas, magistrais, do Prof. Arianus, o ex-director. 

Apesar de derrotado na crise de 69, era a figura mítica e tutelar daquela casa: distinto no vestir, irreverente no casar, paciente na certeza de que o seu tempo político havia de chegar. Fazia questão em dar aulas aos do 1º ano, pois assim os marcava logo à entrada. Numa época sem recepções ao caloiro (palavra não usada na Academia de Lisboa), nem programas de integração (que vão hoje das visitas guiadas às instalações até às festas, bem regadas, com entretenimentos musicais de 3ª categoria, às secantes cerimónias discursivas de boas vindas), o Prof. Arianus fez a diferença. Convidou a turma para um jantar na Sociedade de Geografia. Mais que as vitualhas foi o local que os impressionou. A grande maioria nunca ali tinha entrado. Sala requintada, mesa longa, atoalhada de branco, loiça com cachet. O repasto (frugal) foi servido por criados, negros, de libré. Depois houve discursos. Falou quem quis. Disse (quase) o que quis. Naturalmente, todos andaram à volta do futuro das “nossas províncias ultramarinas” (que já haviam sido Império, Colónias e estavam a um passo de ser países, ainda que poucos o admitissem publicamente). E o ex-ministro das Colónias, agora remetido a catedrático de Princípios Gerais de Direito, lá foi discorrendo com didactismo: nos tempos que corriam, a exploração africana já não se fazia com armas e exércitos mas com a Economia. Só quando Arcílio se juntou às tertúlias associativas, já o ano ia adiantado, conseguiu descodificar algumas das subtilezas da intervenção do Professor: da crítica light à política do regime para os territórios africanos ao neo-colonialismo, teórico, não assumido. Apesar dos “contactos de cultura” polvilharem a retórica dos convivas (lusofonia e multiculturalidade foram conceitos ausentes, porque não inventados), de cachupa, muamba, mamão ou papaia… nem pitada. Tratou-se de um jantar na linha do assimilacionismo mitigado. O (ainda) colono marcou a agenda, mesmo na definição do menu: consomé, bacalhau no forno e fruta da época.

Luis Souta
lsouta@ese.ips.pt

 


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