CRÓNICA
Rotacismo democrático

Idos de 75, Cabo Verde. Fazia então bom tempo. Lá e cá. Soldados e marinheiros punham em dia a revolução e as conversas. Na verdade, eram também almirantes e coronéis. Faziam meetings para descodificar as últimas de Lisboa com coffee-breaks ou
briefings convocados para o efeito, para codificar a primeira parte das próprias reuniões. A minha ingenuidade democrática não ia muito além da intenção de fazer a folha aos fascistas e passava ao lado dos burilados discursos de circunstância, dos eufemismos e todo o género de recitas para
empata-amigos.
Como ainda hoje, o culto da sigla, da evasiva e da criptografia, atulhavam relatórios e ordens-do-dia. Se possível, um estrangeirismo dava sempre jeito, se o assunto chegasse à fala.
Volta e meia, lá se arranjava pretexto para reunir numa ilha diferente, julgo eu que para não sobrecarregar sempre os mesmos. Se esse não era o verdadeiro motivo, então só poderia ser para passear pelo arquipélago. Não era coisa que verdadeiramente me agradasse, uma vez que me calhava sempre viajar naqueles Dakotas absoletos em que a bagagem acompanhava os caprichos da navegação e o cagaçal dos motores tornava o interior do avião numa espécie de Torre de Babel em que ninguém se entendia.
Todos estávamos a aprender. Todos consumíamos mais informação e coisas novas do que a própria capacidade para as digerir.
Por outro lado, se as forças progressistas locais, em Maio de 1974 se solidarizavam com o povo português - que nós ali representávamos - em Maio de 1975, após um ano de intensa luta política, já essa solidariedade era questionada com a visita inusitada de Almeida Santos ao arquipélago, declarando á chegada: “aqui respira-se Portugal”, interpretado imediatamente como ingerência ofensiva e neocolonialista.
A partir desta altura, porém, tudo se encaminhou velozmente para a ambicionada independência do território Cabo-verdiano.
Uma das últimas reuniões político-militares teve lugar em S. Vicente, salvo erro nas instalações da Armada. Estavam representados os mandatários políticos portugueses, Oficiais, Sargentos e Praças dos três ramos das Forças Armadas.
Ali se decidia a passagem de poderes para as novas autoridades com vista à Independência. Contavam-se instalações, equipamentos e até armas e munições, tudo contabilizado ao pormenor. Era preciso haver rigor e seriedade para que o dia 5 de Julho fosse realmente um dia de solidariedade e de festa.
Incomodou-me no entanto a insistência com que o Almirante que coordenava a reunião fazia ao terminar de algumas intervenções:
- Dita perrata - ordenava.
Esta atitude obrigava os intervenientes a repetir as suas intervenções, só que de forma soletrada, e isso não me agradava.
Comentei o assunto no intervalo da reunião. Cheirava-me a conspiração; a uma qualquer derradeira tentativa de bloquear o processo. Mas para minha completa quietação um camarada da Armada esclareceu-me:
- Não vês que o tipo sofre de rotacismo, carrega nos erres... O que ele diz, para que tudo fique arrolado, é que ditem para a acta.
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
Tsinha
Um ano faz por estes dias que querer queria eu contar-te um dia uma história desde esse tal
Uma história do era e não era
Uma história do tempo em que a vida andava devagar e se tropeçava bastante na mesma pedra
Em que pelas barrocas corria água até trinta um de Maio e havia quem calçasse sapatos apenas quando ia para a escola
Do tempo em que os velhos eram velhos ainda novos eles vestiam calças compridas de fazenda elas atavam na cabeça um lenço escondendo o cabelo apanhado atrás numa poupa e cruzavam os braços aconchegados no xaile
Do tempo em que se minava a terra longe de casa para aí plantar uma oliveira ou se semeava centeio no cascalho Em que se partilhava por três uma sardinha e se enterravam os mortos embrulhados num lençol
Queria contar-te uma história das histórias que me contaram quando se ouviam esfaimados os lobos a uivar e se alguns pastores de tão ralados nem dormiam a pensar como seria a alcateia três pastorinhos deram com um anjo poisado numa azinheira e foram dizer a toda a gente o que viram
Escondidos nos pinhais havia salteadores lendários armados com bacamartes à boca de sino e pelos caminhos de deus cirandavam frades comilões (um deles carregava uma pedra no bornal) e almocreves com mulas teimosas pela arreata atestadas de mercadorias atirando a carga ao ar em cada parelha de coices que davam
À noitinha voavam aves agoirentas por entre as casas e ouviam-se lengalengas das almas penadas rente ao telhado a soprar
Em certos dias melhor dizendo em certas noites de luar desses dias aziagos juntavam-se pelas encruzilhadas as bruxas em contradança à roda de uma fogueira
Nas romarias dançava-se no terreiro as mulheres cantavam esganiçadas e os homens azougados com o vinho acabavam a festa em zaragatas com varapaus ou em ajustes de contas à naifada
Os meninos chegavam de Paris no bico de uma cegonha embrulhados em pano cru e se bem me lembro aqueciam como eu aqueci as mãos no seio farto e morno das avós
Contaram-me que as crianças nasciam enfezadas e para se criarem quatro filhos eram precisas as agruras de oito partos ou mais Essa gente acabada de nascer às vezes morria logo de mágoa sem saber de que mágoa desfalecia como a luz da candeia de azeite e as brasas no lar da cozinha ao fim do serão esmoreciam nisso as canastras baloiçando devagar no vai e vem do pé da tecedeira
O futuro mais certo seria cavador de sol a sol ou ganhão melhor vida seria a carda o tear o tinto a serventia
Sem me explicarem grandemente mas sem serem salabordas alguns homens não podiam falar e havia quem riscasse a escrita nos jornais com um lápis de cor da censura
Na escola sentados numa carteira decorava-se a tabuada e desenhavam-se as letras pequenas num caderno de duas linhas com caneta de aparo Pregados pelas paredes mapas coloridos riam-se em sorrisos abertos de serras rios e linhas férreas sonhos de viagens prometidas por bom aproveitamento até Santa Apolónia onde acabava a linha
Outro mapa mais misterioso anunciava a divisão administrativa as ilhas adjacentes as províncias ultramarinas as longínquas Índia Macau e Timor
Um império a mangar pintado na mesma cor desmaiada
Às vezes à réguada escorriam lágrimas mais por causa do exames de admissão mas ao recreio saltava-se ao eixo ribaldeixo jogava-se ao berlinde nas três poças às quintas feiras ouvíamos a rádio escolar
No Nun’ Álvares cantava-se um hino e vestíamos uma farda a camisa era verde com o emblema das quinas no cinto um s grande na fivela já no D. João III os alunos mudos mas de pé estendiam obedientes o braço direito quando o reitor entrava de surpresa na sala
A salto ranchos de homens formigavam noite alta para o outro lado da fronteira e iluminados pelas medalhas de santinhos cosidas por dentro do fato mas às escuras por não saber ao que iam outros ainda de calções embarcavam para África
Por lá nessas guerras em três frentes viam coisas nunca vistas e os que viam para contar traziam papagaios que diziam asneiradas ou macaquinhos de estimação que faziam peripécias e descascavam amendoins muito melhor que as pessoas
No macadame poeirento das estradas os pneus furavam por nada demorava uma eternidade qualquer viagem e o eléctrico onde havia custava três tostões passear por meia cidade
Era no tempo em que o tempo durava uma vida inteira e andou-se nisto uns quarenta e tal anos continuados
Findos numa dita primavera esborratada no mesmo tom cinzento e institucionalizado do tempo outonal da Outra Senhora
Certa noite puseram na rádio uma música a tocar e tudo mudou muito depressa depois abrandou até que agora parece pasmado por culpa de alguém que sacode o capote
Não nos explicam porquê mas passam-se Invernos e Invernos sem pinga de chuva as barragens demoram a encher os pinhais ardem todos os anos as crianças nascem numa fábrica de luzes embrulhadas em pano asséptico verde como mesa de bilhar são logo vestidas em rosa ou azul consoante e vacinadas de acordo com um boletim de vacinas por causa das tosses
Promessas se as há são eleitorais e definham por isso mesmo as aldeias em ladainhas alegrando-se uma vez por ano na data da festa com foguetes e procissão
Como pragas só se ouvem lamúrias em vez das bazófias do almocreve Almas penadas só no cinema e a ladroagem refinou-se apresenta-se bem usa gravata e até parece que tem balcões abertos ao público
Na cidade as pessoas são toupeiras sempre a correr enlatadas em carruagens o eléctrico é um estorvo para os carros metalizados Atribuí-se subsídio comunitário a animais para preservar a espécie e o azeite mudou de cor chamam-lhe crude é importado das arábias transaccionado em euros convertidos em dólares
O pobre do tostão é moeda sem conversão esquecida no fundo de uma gaveta
Agora os lobos estão gordos em vias de extinção e vivem num bardo como as ovelhas
Aos pastores resta-lhes olharem as estrelas os que souberem os outros fartos de esperar deitam-se na choça a adivinhar se num minuto se chegará mesmo ao fim do mundo como dizem que se chega bastando para isso um computador na frente um rato na mão e uma net onde ligar tais aparatos
Um ano fazes por estes dias e querer queria eu contar-te uma história das histórias que me contaram mais a história onde fui tropeçando
Se eu que não sabia a que sabia dizer minha e filha a meio da noite meio a dormir por não dormir na outra noite foi agora ela que te trouxe Maria Teresa faz um ano (quem sabe dirá: olha outra M para guardares na carteira na carteira que guardas no bolso de dentro do casaco desse lado onde tens o coração)
Atazanei-te quando queria só era ter dito: parabéns os parabéns que aqui te deixo
E por falar em deixar aproveito mas é e deixo-te também um conselho : arma-te em idiota em frente de um idiota armado em inteligente
Melhor dizendo embala só com os parabéns gatinha sem aceitares concelhos fica-te pela junta de freguesia quando calcorreares este mundo pelo teu próprio pé
P.S. Dá um beijo à Beatriz dá outro beijo ao Francisco ( teus irmãos e meus também).
António Luis Caramona
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