
Abaixo dos tornozelos
Nos últimos dez anos o país gastou em formação quatro mil milhões de euros, entre investimento directo do Estado e comparticipações de fundos europeus. Feito o balanço, temos sérias dúvidas que tal tenha resultado numa melhoria significativa da qualificação dos portugueses. Não foi, pois, um investimento. Mais vale que se considere como uma despesa.
O país falhou também na formação permanente dos docentes. Envolveram-se verbas e meios muito significativos e os resultados foram demasiado escassos. Mais por culpa dos formadores e das suas propostas de formação, menos por culpa dos formandos. E continua a falhar na formação inicial de professores e de educadores, essencialmente virada para um saber académico, divorciado da escola e dos jovens que a frequentam.
Pelas estatísticas sabemos que a escola portuguesa ensina assim-assim. Mas não temos uma medida certa do valor educativo da instituição escolar, a não ser de forma indirecta, através dos comportamentos e atitudes que observamos nos portugueses escolarizados e nos valores que defendem ao preferirem determinada programação televisiva. Nesta matéria, o sucesso educativo da escola parece estar ainda mais aquém do sucesso escolar e académico dos seus alunos.
Importa também responder à pergunta: Onde se situa o lugar de trabalho do professor? Todos os projectos de formação de docentes assentam na presunção de que o espaço de actuação dos professores é a sala de aula. O professor, por motivos que não importa agora analisar, foi-se habituando a valorar, a animar, a vivenciar e a humanizar apenas a sala de aula, não aplicando o mesmo esforço, empenho e capacidade criativa no espaço escola e na comunidade que a envolve.
Tal concepção não resistiu à evolução social das duas últimas décadas. O professor deve também ter competências de actuação no espaço escola e no meio que a envolve? O professor, para além de ensinar deve também educar, tutorar, intervir e supervisionar o meio e a família de referência dos seus alunos? O aluno deve aprender matérias, mas também aprender a ser e a saber fazer as suas escolhas, de acordo com procedimentos éticos socialmente relevantes? A escola deve promover o sucesso escolar dos aprendentes, mas também cuidar do seu sucesso educativo e na promoção da sua integração social e laboral? O educador deve saber estar frente aos seus formandos, mas também necessita de comunicar com eles nesse outro universo proporcionado pelas novas tecnologias da informação e da comunicação?
Se as respostas forem afirmativas, então a formação de professores tem, inevitavelmente, que incluir o treino de todas as competências que permitam esta nova e múltipla actuação do professor na sala de aula, na escola, na comunidade parental e no mundo da informação global. E, a única forma de o conseguir está na entrega (devolução?) às escolas “reais” de uma boa parte da formação inicial e permanente que, até agora, estava cometida apenas às instituições formadoras dos docentes.
O medo ou a incapacidade de agir perante o desconhecido. A humana tendência de nos apegarmos ao que sabemos melhor fazer. A frustrante recusa de “ir a todas” quando nos pedem mais uma. Tudo isso, diríamos, condiciona o sentimento de bem-estar profissional dos professores e dos educadores. E bem podemos dizer que, hoje, a auto-estima dos docentes portugueses se situa bem abaixo dos tornozelos.
O actual desânimo configura uma gravíssima anomia profissional. O mal-estar dos docentes advém de uma clara erosão das suas competências profissionais, das injustificadas rotinas que se instalaram em muitas das escolas, e da pressão para o cumprimento de novas funções, originada pelas políticas educativas da administração escolar.
Não sabendo como assumir essas novas competências, o professor sente-se incompetente e retrai-se. Cabe também às associações profissionais o esforço de inverter a situação. De ajudar a anular a retroactividade que se pode instalar nos seus associados. De colocar o debate no futuro e no papel insubstituível da escola e dos professores, enquanto único e reconhecido motor do desenvolvimento económico, social e cultural dos portugueses. Ajudar a anular o secular atraso de qualificação que a população activa do país evidencia em cada quadro estatístico que se publica. De direccionar a revolta para os bons e não para os piores motivos.
Penso que todos nós sabemos o que queremos ser e o que a sociedade exige de nós. Mas temos medo de dizer que sabemos o que deveríamos ser e o que querem que sejamos. Por isso, temos que ser diferentes, ou temos que deixar de ser.

João Ruivo
ruivo@rvj.pt
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