CRÓNICA
Tabernas
A ideia que hoje temos de taberna é, provavelmente, para muitos, a de antro lúgubre, de asseio duvidoso e odores que variam entre o bafiento e o azedo. Nada abonatório por isso. Mas nem sempre assim foi. Não sendo necessário rebuscar no tugúrio medieval, as tabernas contemporâneas são ou foram até há duas, três décadas, locais de convívio, exíguos salões de tertúlia e de lazer, sobretudo para os mais humildes.
Lembro-me de algumas. Normalmente eram conhecidas pelo nome ou alcunha do proprietário, como eram os casos do Caxias, do Zé dos Cachopos, do Prejudicado, do Zé Filipe, do Paiva, do Tomé, etc. Outros tinham nome de outra condição, sem perderem, no entanto, qualquer das suas características: era o caso do Avião, do Regedor, do Retiro dos caçadores, do Pisa-o-Risco ou mesmo do Cantinho do Céu. Estas são as que guardo ainda na memória, em Castelo Branco.
De todas elas se podem contar estórias; em todas elas aconteceram peripécias com maior ou menor graça, cuja tradição obriga a que se transmitam de geração para geração.
Porém, foi numa outra taberna bem distante de todas as que referi, que fui descobrir a estória mais fresca de todas quantas vivi ou me foram contadas.
Passou-se na taberna do Honorato, em Viana do Alentejo.
Carronha era uma daquelas figuras castiças na taberna do Honorato. Não era pacífico. Pelo contrário, o Carronha era um misto de conflituoso e contestatário. A verdade é que a sua ausência - rara, muito rara - era logo notada. Apesar do seu comportamento irascível, havia sempre quem questionasse:
- Tão o Carronha, inda não apareceu?
O Carronha, já falecido, não era má bicho. Pelo contrário; era bem quisto sem o saber e apreciado por todos os frequentadores da taberna do Honorato sem, no entanto, tal denunciarem.
Certo dia, meia por graçola, meio por despique pelos seus maus humores, convenceram o Honorato a servir-lhe vinagre em vez de vinho branco. Certamente que o Carronha nos seus azedos de personalidade e de álcool em excesso permanente, não iria dar conta. Puro engano!
O bom homem, depois de alguma cerimónia de olho no copo - que o vinho também se aprecia com o olhar - virou-o de uma assentada. De seguida, mirou de novo o copo, estalou os lábios de forma enigmática, olhado de soslaio pelos comparsas, e, com um ar circunspecto, murmurou ao dono da taberna:
- Ó Honorato, chega aqui fora, se fazes favor.
Já na rua, e para que conste que o Carronha era amigo do seu amigo, quis saber:
- Ainda cá tens muito deste?
E perante a resposta afirmativa do Honorato, concluiu:
- Então vê se o despachas, que já tem um picozinho a azedo!.
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
O cavalo de ferro
Do Condor Popular a preto e branco lembra-me uma aventura do Apalonc Cassidy um maquinista aventureiro nos primórdios das linhas férreas do oeste americano Nessa história havia um balão com muitos i’s a sair da boca de um ferroviário dizendo a letras gordas: partiiiida!
Era uma daquelas história aos quadradinhos com índios e facas longas caubóis e manadas em trânsito malfeitores xerifes e duelos ao sol no meio da rua.
Histórias que a tua geração já não leu.
Por ter passado para a quarta cumpriram a promessa de mostrar-me Lisboa e foi com esse grito escrito na cabeça que muito antes da hora aprazada chegámos à estação.
E já se alinhavam na gare bilhas de lata vermelhas untadas de azeite e cestas de verga com asas dançavam sozinhas ao som da cantoria das galinhas e galos que delas assomavam com a cabeça de fora.
E sacos com braçados de couves para o bacalhau e para o caldo verde atados com fios de sisal outros por atar exibiam cabeças de nabo sujas de terra e réstias entrançadas de cebolas novas.
Uma caterva de magalas de cabelo rapado vestidos de cotim ou à paisana versão pobretana da tropa do Major Alvega em O Falcão bebiam logo pela manhã cerveja pela garrafa.
Atenta a tropa fandanga mantinha guarda às malas de cartão alinhadas junto à parede de azulejos dos urinóis enxotando os cães que por ali vadiavam farejando curiosos a bagagem e prontos a alçar a pata se em precisão de alívio.
A gare fervilhava de gente ansiosa quando uma névoa morna envolveu passageiros galinhas verduras magalas e cães silenciando a algazarra esfumando tudo o que ali era vida como no Cavaleiro Andante todas as semanas a Marca Amarela se esfumava no nevoeiro pelas ruas de Londres depois das diabruras arquitectadas pelo Dr. Septimus. Também não conheces mas hei-de mostrar-te um dia destes devidamente encadernada a colecção completa.
Desaparecemos todos às apalpadelas subimos os degraus da carruagem de segunda e instalei-me à janela a mirar a azáfama como o Emílio e os Detectives a páginas tantas Logo verás como estou a dizer.
Afrontado com o inferno que roía as entranhas o cavalo de ferro bufava e esquecido o toque de uma corneta de lata mais o tal grito sinal da partiiiida passado lançou um grito estridente que parecia de socorro (ou seria um pedido de desculpa à vizinhança pelo incómodo) e arrancou com seu vozeirão a gemer num ralho pegado.
embalando-nos e à carga ganhando velocidade pouca-terra pouca-terra pouca-terra até abrandar antes da ponte onde o cabo da Vila matou aquele salteador de estradas.
E se começaram dali a ver em cada curva da linha as curvas do rio a aproximarem-se de nós.
Antes da Fonte das Virtudes a serra engoliu-nos a carruagem encheu-se de fumo e o revisor rezingão e azedo mandou fechar as janelas durante a eternidade que demorou a travessia do túnel das Portas.
Não houve assaltos de malfeitores como seria se ali estivessem algum dos bandidos de cara tapada dos que enchiam as páginas do Mundo de Aventuras antes de aparecer o Buck Jones em cena e gorar o assalto Poderás ler como ele actuava.
O rio magro como o Cisco Kid que é um caubói vestido à mexicana com sombrero e tudo publicado na Fagulha era um fio fino de água entre escarpas reluzentes decoradas com muros de pedra miúda polvilhadas de oliveiras.
Parámos numa estação o tempo que foi preciso parar até cruzar com outro comboio que vinha para cima e onde em vez de índios de uma reserva e carroças puxadas por bois e a diligência da Wells Fargo via-se um barqueiro com a sua barca transportando pessoas de uma margem para a outra.
Mulheres de cabeça coberta apregoavam bilhas de barro decoradas com pedrinhas brancas : água e bilha a dez tostões cantarolavam elas de braços no ar apresentando o produto junto às janelas.
Água que para estar fresca naquele ermo tipo cume das Montanhas Rochosas ou deserto do Texas devia ter sido refrescada pela magia do Mandrake no seu palácio de Xanadu Se não sabes onde fica não baralhes por favor o nome do mago com nenhum centro comercial madrileno.
Mais adiante no cimo de um monte poisaram um castelo a lembrar o do Príncipe Valente São se não sabes uns desenhos primorosos de histórias passadas na idade média onde há a Espada que Canta.
Pouco depois o mesmo fio de água por estar preso começa a crescer brilhando ao sol num imenso espelho como os dos saloons onde os bons encostados ao balcão e virados de costas para a porta de vai e vem da entrada escapavam do ataque traiçoeiro dos maus com um tiro rápido e certeiro entre os olhos Não estranhes ser assim mas eles nunca falhavam a fazer fé nos desenhos às tiras.
Até uma terra semeada de carris pelo chão teia de aranha gigantesca onde chegavam e partiam de todos os lados outros cavalos de ferro.
E por fim a lezíria e os campinos a cavalo vistos ao longe.
Não consegui descortinar os toiros que era suposto decorarem a cores a paisagem pois no Mosquito os meus heróis caubóis apaches bisontes mais o Bufallo Bill a galope nas vastas planície do faroeste eram sempre a preto e branco mas mesmo assim era mais emocionante Como poderás constatar quando quiseres.
Numa estação onde estava escrito Braço de Prata um nome estranho donde parecido com coisas meio esquisitas nos membros superiores só conhecia o Capitão Gancho dos Pato Donald lavei as mãos e a cara sujas da fuligem da máquina a carvão guardando nas unhas aquele pó muito fino da barra de sabonete moído na hora Era o que era antes do sabonete líquido de agora.
A última imagem da viagem que guardo da minha primeira viagem de comboio são os carris as travessas e as pedras da linha a passarem a correr ali debaixo vistas pelo buraco da retrete.
E as últimas palavras fanhosas que disse o revisor sempre mal encarado com os passageiros e resmungão pelo granel das cargas foram: - fim da viagem.
E outra gare muito maior que todas as outras encheu-se de gente a correr e de cauteleiros anunciando a sorte grande para daí a três dias.
No largo da estação carros pintados de preto por baixo e verdes por cima sendo quase todos iguais esperavam em fila.
O taxista explicou-me que àquele modelo de táxi davam o mesmo nome do nome de um jogador de Os Belenenses estranhei a semelhança mas é como o outro Jogadores só conhecia os do Benfica aliás só conheço o Benfica e como só tenho olhos para o Benfica nem peva ligo à Selecção P.
Sabes o que a casa gasta : tens cá os livros para leres tens cá a cadeira de braços em ferro pintada de verde tens cá a sombra da buganvília vermelha.
E esta metáfora.
António Luis Caramona
|