Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº100    Junho 2006

Entrevista

NUNO MARKL, O CRIADOR DO HOMEM QUE MORDEU O CÃO

"A avaliação dos processores pelos pais
é mais um penso rápido"

Depois de uma experiência frustrada como jornalista, Nuno Markl estava longe de imaginar que a compilação de um conjunto de «histórias bizarras» a que deu o nome de “O Homem que Mordeu o Cão” se iria tornar num gigantesco fenómeno de popularidade. Em entrevista ao Ensino Magazine, o argumentista fala do seu percurso profissional, da paixão pela rádio, do humor como terapia e pronuncia-se sobre as convulsões no sistema educativo.

É um dos símbolos de uma geração de humoristas que se afirmou com sucesso. Na sua adolescência, nas horas que, confessa, passava no «universo» do seu quarto e no decorrer da experiência inicial na Rádio Alegria, em Benfica, alguma vez imaginou que chegaria a este ponto e que iria ser apontado e alvo dos olhares mais indiscretos num qualquer supermercado ou cinema?

Nunca me passou pela cabeça, e mesmo quando já estava a acontecer eu não tinha consciência do estranho gigantismo que “O Homem Que Mordeu o Cão” tinha tomado. Acho que lido muito melhor com o fiasco do que com o sucesso. O fiasco de uma coisa em que a gente acredita é uma sensação não tão má como isso, porque arranjamos sempre maneira de nos convencermos que «o País não estava preparado para aquilo» e temos um orgulho mais intimista, sabemos que fomos “amados” por meia-dúzia de gatos pingados que “perceberam a ideia”. Um sucesso tem um lado maravilhoso, mas também traz consigo uma carga de trabalhos. O fiasco, de certa maneira, é libertador, porque havendo muito poucas expectativas, parece que temos muito menos responsabilidades e tudo é muito mais descontraído. Parece quase que há mais espaço para sermos criativos e experimentais. É claro que tudo isto são macaquinhos no sótão, mas é indispensável a um tipo que vive da comédia ter macaquinhos no sótão. A comédia nasce dos macaquinhos que temos no sótão.

Como reage quando lhe chamam, aos 35 anos, “criança grande”?

Eu percebo a ideia de “criança grande”, mas acho sempre que soa a um tipo de atraso mental. Acho que não se deve deixar morrer o jovem diabrete que temos cá dentro, mas o ideal é conjugarmos o nosso lado adulto, responsável, neurótico e experimentado com o lado ingénuo e inocente que devemos manter. Se aos 35 anos eu só deixasse à solta a criança grande, acho que já tinha sido internado ou abatido com dardos tranquilizantes.

Começou como jornalista, essa nobre arte que seduz milhares de jovens portugueses, no Correio da Manhã Rádio (CMR), mas desde logo se apercebeu “não ter jeito” para a coisa. Como é que descobriu a sua veia humorística e se lançou nas ondas do éter?

Eu nunca tive dúvidas de que o jornalismo não era o meu caminho; eu percebi é que tinha de dar a volta maior para chegar onde queria. Ou seja: eu sabia que queria fazer rádio, e no sentido mais “romântico” da coisa – programas de autor, humor (influenciado, claro, pelos programas de rádio do Herman e por coisas como o «Pão Com Manteiga», da Rádio Comercial), tudo menos informação. Eu via a informação como uma porta para esse outro mundo e também como uma maneira de levar uma espécie de choque eléctrico, para perder a timidez e ganhar desembaraço. Eu era um tipo tímido, preguiçoso e um bocado mimado. Precisava de aprender o que era a vida, e nesse aspecto o curso do CENJOR foi bestial, porque foi intensivo, e o estágio no Correio da Manhã Rádio foi um prolongamento disso. No CENJOR estávamos a viver uma simulação bastante realista da vida de jornalista; no CMR era “the real thing”. Foi uma experiência sofrida, trabalhar no jornalismo, mas aprendi imenso. De certa maneira, preparou-me para aquilo de que eu vivo hoje. 

É capaz de nos revelar o seu sonho supremo em rádio? Recriar a “Guerra dos Mundos”, como fez Orson Wells está nos seus horizontes? Pensa que o levariam a sério?

Eu não vou tão longe! Adorava ter meios para criar uma grande ficção radiofónica, uma grande radionovela de humor. Temos feito uma experiência na Antena 3 chamada «Perdidos no Éter», mas é quase uma coisa clandestina, feita num pedaço de tempo livre de estúdio. E adorava fazer um programa de autor a sério. Não tanto o que tenho feito, cápsulas matinais de humor, mas o tipo de programa de fim-de-semana ou de um outro horário em que as pessoas ouçam com tempo e com outra disponibilidade. E que nem precisa forçosamente ser de humor… Acho que o meu sonho supremo em rádio é conseguir convencer as pessoas que me empregam de que eu já estou há muitos anos a acordar às 6 da manhã e que não há nada pior para um tipo que vive de escrever comédia do que ter poucas horas de sono!

«O Homem que Mordeu o Cão» foi o espaço radiofónico que o catapultou para fora do anonimato. Como sei que acha um lugar comum perguntarem-lhe se já mordeu um cão, decidi ser original e gostaria de saber se encontra explicação (terrena) para justificar que um somatório de histórias bizarras num anódino programa da manhã na Rádio Comercial seja falado por um País inteiro e seja transposto para livro, teatro e dvd?

Acho que foi precisamente por isso: porque pegámos – não só eu, mas, na primeira fase, eu, o Pedro Ribeiro, o José Carlos Malato e a Ana Lamy e depois eu, o Pedro e a Maria de Vasconcelos – num formato anódino e gasto (o do programa matinal “bem disposto”) e decidimos quebrar um bocado todos os lugares-comuns desse formato. Nem foi só «O Homem Que Mordeu o Cão»; eu acho que todo o programa foi pensado por nós como qualquer coisa que vencesse pela diferença. Lembro-me que a Rádio em Portugal, na altura, estava meia morta. Nós não nos armámos em Messias da telefonia, não tínhamos uma agenda secreta para revolucionar a Rádio, mas agradou-nos a ideia de tentar fazer uma coisa diferente. «O Homem Que Mordeu o Cão» em si não é uma ideia original; rubricas sobre notícias bizarras existiam há séculos nas rádios estrangeiras. Em Portugal não havia nada assim, na altura, e além disso, agradava-me que as notícias bizarras fossem só o começo da experiência. O que me dava gozo era pegar nelas e extrapolá-las, improvisar em cima daquelas histórias supostamente reais, pensar o que seria se nós fôssemos protagonistas dessas histórias, etc. Acho que foi a sensação de novidade que fez com que as pessoas começassem a ouvir o programa. Hoje há mais oferta na Rádio, mais variedade de propostas, mais rubricas de humor. Acho que se tivesse aparecido hoje, «O Homem Que Mordeu o Cão» teria sido apenas mais uma coisa e não aquele «boom» ao qual eu, de certa maneira perdi o controle. Não forçosamente no mau sentido. Aquela loucura toda foi interessante e a tentativa de expandir o Cão para outros formatos (o livro, o teatro, a TV) foi sempre divertida.

A entrada da nova direcção de programas da Comercial relegou “O Homem que Mordeu o Cão” para a recém-criada Best Rock FM. Enquanto criador, sentiu que estavam a matar lentamente a sua criação?

Lentamente, não; a partir do momento em que essa direcção de programas decidiu acabar com o “Cão” e transferi-lo para a pequena e escondida Best Rock, “O Homem Que Mordeu o Cão” foi morto com uma tremenda rapidez. Num dia estávamos no auge do sucesso; no dia seguinte, transferidos para a Best, percebemos que tudo se estava a esboroar: as audiências, o “feedback”, a venda do livro, o potencial da versão TV funcionar – tudo. Foi uma coisa incrivelmente rápida e, de certa maneira, violenta. Não só para quem gostava de nos ouvir, mas para nós próprios. Embora tenhamos desde sempre tentado compreender e aceitar pacificamente a decisão da direcção. Feitas as contas ao que aconteceu, acho que ainda podíamos ter durado mais algum tempo e ter trazido mais ouvintes para a Comercial. Eventualmente aquele projecto iria morrer, mas de morte natural. Acabou prematuramente e quando estava no auge da força. Olhando para trás, acho que ficou claro para todos os envolvidos que a decisão daquela direcção de programas foi um erro clamoroso. A Comercial teve um rio de problemas desde aí e só agora começou a recuperar em grande, o que me deixa feliz porque é o Pedro Ribeiro quem está agora a dirigi-la. O facto da Comercial estar a recuperar mostra que a decisão de o colocar à frente daquela rádio já devia ter sido tomada há muito mais tempo. Às vezes fico com a sensação de que a anterior direcção da rádio se comportou um bocado como um bombista suicida: deu cabo do “Homem Que Mordeu o Cão” e depois, no processo, deu cabo de si própria. Acho que tudo isso podia ter sido evitado, mas não adianta olhar para trás…

O Nuno Markl acabaria por se transferir para a concorrência, a Antena 3 e nasceu «Há Vida em Markl». Sendo um fenómeno de audiências este seu programa é também um marco na internet, com o recurso ao podcast, ocupando o primeiro lugar no topo nos «i tunes» nacionais. Pensa que o futuro da Rádio está no podcast de que maneira pode este revolucioná-la?

De certa maneira, acho que o podcasting vem salvar a Rádio. É engraçado pensar que é um conceito ultra-moderno que vem devolver à Rádio o seu espírito primitivo e – perdoem-me o lugar comum – mágico. Os podcasts dão-nos o que as rádios locais nos davam no fim dos anos 80: a liberdade para fazermos e para ouvirmos a Rádio que queremos, independente da ditadura da publicidade e das «playlists». Não sou fundamentalista ao ponto de dizer que as rádios deviam deixar de ter essas coisas, mas fico contente por ter surgido esta alternativa.

Que a Rádio é o seu primeiro e eterno amor, já todos sabemos. Agora que foi numa estação de Rádio, em 1996, que conheceu a sua actual esposa, Anabela, supomos que seja um tema mais distante do conhecimento do grande público. Estaremos a exagerar se dissermos que a Rádio lhe deu, até ao momento, tudo na vida?

É completamente verdade. Nunca tinha pensado nisso por esse ângulo – obrigado por me abrires os olhos para isso! – mas se não fosse a Rádio, não tinha, por exemplo, entrado para as Produções Fictícias e não tinham acontecido todas as reacções em cadeia que me levaram até onde estou hoje. 

Costuma fazer alarde nas entrevista que concede à vasta colecção de dvd’s e cd’s, alguns deles pirateados, que conserva na sua residência. Perante tal declaração, não teme que um destes dias irrompa pelo seu pacato lar uma brigada da inspecção-geral das actividades económicas num raid anti-contrafacção?

Tenho pouquíssimos cd’s piratas. Filmes não tenho nenhuns piratas, gasto rios de dinheiro em dvd’s, uns comprados cá e os outros encomendados pela Internet a lojas estrangeiras. Os cd’s piratas que tenho são de coisas que não consigo encontrar em lado nenhum e ao todo devem ser meia dúzia deles. Não nego que «saco» coisas da net com a ânsia de as ouvir (o último disco dos «Divine Comedy» é um desses casos) mas a verdade é que quando gosto de um disco, não descanso enquanto não tiver a versão oficial. Porque isso sim, é um documento da época em que foi comprado. Eu olho para os meus vinis dos anos 80 e é uma experiência nostálgica tê-los na mão, olhar-lhes para as capas, lembrar-me de quando as vi no escaparate da discoteca no dia em que os trouxe para casa. Não sou capaz de ter um disco de que gosto gravado num CD-R com uma capa fotocopiada ou coisa do género. Sinto que não sou dono daquilo, e eu gosto de sentir que a música que tenho em casa é, realmente minha; que paguei para a ter.

Gato Fedorento, Nilton, Nuno Artur da Silva, Luis Filipe Borges e Nuno Markl, são apenas algumas figuras emergentes do humor indígena. Pode dizer-se que Portugal é um país de criativos?

Acho que se descobriram uma série de fantásticos criativos nos últimos anos. Não acho, no entanto, que Portugal seja um pais de criativos, sobretudo na área do humor. Há cá gente com vontade de agitar, mas ainda há toneladas de anti-corpos e de um certo peso que ficou dos 50 anos de ditadura que faz com que o português não goste de se divertir com muita coisa, e até que tenha algum medo de o fazer. Somos um País complexado e neurótico. O que aconteceu é que algumas pessoas puseram os complexos e as neuroses ao serviço do humor, e perceberam que temos de nos rir dessas coisas, em vez de nos lamentarmos continuamente.

As peripécias nacionais são uma mina e um terreno fértil para quem fabrica humor e piadas diariamente?

Claro que sim. Às vezes a tarefa até é demasiado facilitada. Há coisas que já são brilhantes momentos de comédia. Veja-se recentemente o caso do dirigente de extrema-direita que achou que era uma boa ideia mostrar a sua gigantesca metralhadora para uma reportagem de televisão, dizendo que toda a gente devia ter uma coisa daquelas em casa, e que, logo no dia seguinte… foi preso.

No que é que se inspira? Há piadas proibidas ou a evitar? Quais?

Eu gosto de me inspirar nas pequenas coisas da vida, em olhar as coisas à lupa. Não sou particular adepto de usar a actualidade do momento para fazer comédia; acho que os meus colegas do Contra-Informação fazem isso maravilhosamente, mas eu estou cansado da classe política; gosto de fazer o meu humor fora desse ambiente, lidando com as pequenas coisas que fazem parte das nossas vidas, sejamos nós de esquerda, direita ou centro. Adoro esse humor universal das pequenas coisas. À partida acho que não deve haver piadas proibidas ou a evitar. É errado avançarmos para este ofício com uma agenda de temas a evitar. Tem de haver o bom senso de perceber, perante uma piada sobre um tema controverso, primeiro se é mesmo uma boa piada ou se vai ser só uma provocação pela mera provocação. E depois se o timing é mesmo o certo para fazer essa piada. Mas à partida, acho que devemos gozar com o que nos aflige. Muita gente odeia que se faça comédia com a morte; eu acho libertador e isso ajuda-me a olhar para ela de maneira mais pacífica. Nesse aspecto, fazer humor é terapêutico. 

Porque que é que um País quase sempre triste, por vezes ciclotímico, não faz do humor a sua terapia diária?

Acho que com o recente «boom» de comedia, muita gente começou a olhar para esse poder do humor. Isso estava adormecido: antes do «boom», havia pessoas que admiravam o Herman e pessoas que admiravam o Teatro de Revista, mais popularucho. De repente, os portugueses ficaram com uma oferta de humor vasta e variada e puderam escolher os seus comediantes preferidos com uma precisão que anteriormente não havia. Há quem agrupe os comediantes em estilos, como fizeste há pouco, e que, por exemplo, junte na mesma corrente pessoas como eu, os Gatos, o Nilton ou o Luís Filipe Borges. Mas dentro deste grupo há pessoas que adoram os Gatos e que me odeiam, que adoram o Borges e não gostam do Nilton… Enfim, isto tornou-se interessante e variado. E é interessante ver as pessoas a rirem-se com umas coisas e a não se rirem de outras. Sinto que os portugueses começam a levar o humor a sério e cada um a descobrir, com precisão e exigência, o humor que os faz mais felizes. Isso é muito bom.

Diz que somos um país de “horizontes pequeninos” e “dêem-lhes futebol que eles ficam contentes”. A continuar assim pensa que, enquanto colectivo e nação, temos futuro?

Futuro temos, mas pode é não ser grande espingarda. Mas acho que se corre o risco de, daqui a uns anos, sermos o povo mais desinteressante e desinteressado do mundo. Fico apoquentado quando vejo pessoas das gerações mais novas completamente desinteressadas de tudo o que as obrigue a puxar, nem que seja ao de leve, pela cabeça. 

Para concluir, algumas questões sobre educação, o leitmotiv do nosso jornal. A escola é o espelho da nação? Julga, como alguns defendem, que urge refundar os alicerces do ensino em Portugal?

Estou completamente arredado dessa temática, sendo o meu único contacto com ela através de boa parte das pessoas que me ouvem e que são estudantes. E esse contacto é o suficiente para que sinta neles um tremendo descontentamento e uma desmotivação total e completa. Há pessoas desesperadas, perguntando-me o que é que podem fazer para deixar os estudos e entrar para esta profissão. O que eu lhes digo é para terem paciência; os estudos podem não ser a coisa mais apelativa do mundo, mas dão muito jeito para trabalhar nesta e noutras áreas; a escola pode ser um inferno, mas convém atravessá-lo. Mas acho que sim, acho que a coisa precisa de levar uma grande volta, mas também me parece que não há empenho e força de vontade suficientes para isso da parte de quem manda. É quase como se o problema fosse já tão gigantesco e incontrolável que ninguém tem vontade de abraçar a trabalheira que vai dar resolvê-lo e por isso vai de usar um penso rápido aqui e outro ali, em vez de pensar em grande.

Quem são os «maus da fita» do sistema? Os alunos, os professores, os encarregados de educação ou o Ministério?

Eu acho que o “mau da fita” é o próprio sistema e o ponto a que se deixou chegar as coisas, o resto são problemas que daí advêm. É impossível apontar dedos acusadores a qualquer uma dessas partes… Serão sempre generalizações grosseiras e perigosas e também perdas de tempo. O ideal era pensar em algo de construtivo…

Que lhe parece a intenção do Governo de pôr os pais a avaliar os docentes?

Parece-me um dos tais pensos rápidos, mas se isso for para a frente, pelo que seja com uma festa jeitosa, tipo Miss Portugal!.

Nuno Dias da Silva

 


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