CRÓNICA
Do mar à terra, da
terra ao mar

Há muitos anos que considero a Vila da Nazaré, a par de Castelo Branco, como minha terra. Adoptiva, é certo nas não menos amada, bem como as suas gentes.
Tenho naquela terra de pescadores amigos, famílias inteiras de quem, por vezes, já não reconheço os filhos mais novos como, aliás, acontece em Castelo Branco. Tenho também em ambas memórias de amigos que já não estão entre nós. Sinto-me honrado com a empatia gerada nesta minha terra adoptiva.
Mas de quem eu queria falar era do Joaquim António, o meu primeiro grande amigo Nazareno. Ainda era embarcadiço quando o conheci. Andava num petroleiro meses sem fim e dava à costa no verão, altura em que nos encontrávamos. Era um homem alto, vermelhão de carnes, de cabelos loiros quase nunca penteados, nariz aquilino e com um coração do tamanho duma traineira. Na verdade, passava por turista inglês. Dizem que com algum sucesso com o sexo oposto. Faleceu há meia dúzia de anos.
Chegou o tempo da reforma e o bom Joaquim António regressou à terra natal, depois duma vida de trabalho pesado longe de casa. Passeava-se pela praia, que é como quem diz, fazia umas piscinas na marginal, sempre inquieto e cheio de ideias para contrariar a falta que lhe fazia a actividade no mar, que por ironia era a sua terra de uma vida.
Um dia disse-me, irradiando contentamento por todos os poros:
- Já sei o que vou fazer. Compro umas artes (barco e redes) e vou entreter-me na pesca.
Achei boa ideia, mas esta é outra estória que não quero contar hoje.
O negócio haveria de se revelar desastroso nas mãos dum homem que o pouco que pescava - a Nazaré já não tem o peixe de outrora - era oferecido mesmo antes de chegar ao paredão, quando mais à lota. Nem com arte xávega lá chegaria...
Só pelo brilho dos seus olhos de regresso ao mar valeu a pena. Mas não era vida que desse frutos.
Continuou os seus intermináveis passeios entre o picadeiro e o porto de Abrigo até que nova ideia surgiu. Tão entusiástica como a primeira: Iria abrir um restaurante.
- E já está decidido. O prato forte é a caldeirada à nazarena.
O Joaquim António voltava a sorrir, o seu corpo movia-se de novo com a vivacidade própria de outros tempos, apesar dos seus sessenta e muitos anos, nunca exactamente revelados.
- Mas o restaurante vai ter uma característica especial. - E esclarecida - Vai ser colocada uma caixa à saída e são os clientes a fazer o troco.
Um ou dois anos depois a dita casa de pasto tinha encerrado. Ao que parece, havia quem comesse a refeição sem pagar e ainda levava troco. Assim não há negócio que aguente!
Mais tarde, já após a seu falecimento, confidenciou-se um amigo comum:
- O Joaquim António passou demasiado tempo no mar; não conhecia as pessoas em terra. Na sua terra.
Ao Aníbal Freire
e em si a todos os nazarenos de bom coração.
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
Água e bilha a dez
tostões

Apeámo-nos do matateu numa rua arborizada e um senhor atarracado fardado de azul escuro e boné de chapa amarela na pala levantou-se da secretária abeirou-se do táxi perguntou quem são para onde querem subir.
O meu pai tirando o chapéu respondeu a casa do senhor inspector e disse o andar.
No outro lado da rua ficava o edifício mais bonito e luxuoso que eu pensava que poderia existir um edifício enorme quando o carro de praça fez a rotunda já assomava por cima da cabeça do Marquês abismei-me com os jardins decorados com chapéus de sol brancos assombrado não consegui contar as varandas muito menos ler o que diziam as nove letras no telhado por causa do sol que lhes batia detrás.
Enquanto se descarregava apreciei nas portas os emblemas desenhados a sugerir o brasão de um palácio nos candeeiros acesos da entrada imensa e nas duas mulheres vestidas de preto com avental imaculado e touca limpando os vidros areando amarelos.
O senhor fardado seria polícia bombeiro não era porque pela farda não parecia mas o meu Pai enquanto me empurrava para um casinhoto meio gaiola com um espelho ao centro e um banco de lado explicou-me que as casas por serem grandes mora nelas muita gente e precisam de quem limpe as escadas e de quem despeje o lixo Precisam de quem enxote os pedintes há por cá filho de muita mãe qualquer rufia pode entrar e sair Este senhor fardado é o porteiro do prédio e o carão do homem sorriu fez-me a continência fechou a porta de grades em madeira do elevador e a traquitana começou a elevar-se atacada por tosse convulsa.
Na minha estreia a subir sem ser por escadas viam-se em cada patamar umas seis portas ou mais e num deles duas mulheres fardadas de igual como as outras conversavam à estica sem juntarem o i ao u nas palavras a voz com modos de mimo Miraram-nos de alto a baixo com ar de secreta mas disfarçaram falando do cão com ladrar irritante e esganiçado preso por uma trela que andava á roda embaraçando a corda nas pernas de uma delas feito maluco e já tínhamos passado ouviu-se um estrondo pelo barulho uma delas caiu tenho a certeza.
Porque barafustou e chamou ao cão meu cabrão.
Abriram-nos a porta da cozinha cheirava a lavado e a cera de dentro da casa e à senhora pesada que apareceu a sorrir e fez grande alarido pela nossa chegada ouvi tratar por madrinha o padrinho esse veio logo a seguir Aos dois beijei a mão beijas tal qual como se pedisses a benção à avó fora como me disseram para fazer.
Vazou-se na mesa de mármore o cesto de verga o cabaz e a bolsa que trouxemos e todos apreciaram o saco de estopa com os pães do Moucho puseram-se mesmo a cheirar o saco por fora e fizeram uma grande festa à cesta das asas com os biscoitos cozidos na véspera e ao cesto com a hortaliça e o galo morto de madrugada.
Levantaram virado para o lado da janela um dos frasco do mel à altura dos olhos encarando a cor do mel à transparência.
Nesse tempo eram três as nossas primas de Lisboa mais um primo e entrou na cozinha como um sussurro a mais distinta e misteriosa das três ali na minha frente e em tamanho real sem ser na fotografia tirada no dia do casamento onde está a família uns muito vestidos à fina outros mais à pipi da tabela.
Andava no ar caminhava bem medida a uma mão travessa do chão sem pôr os pés nos mosaicos pegou-me ao colo deu-me um beijo que sabia a pó de arroz sentou-me em cima da pedra fria disse estás um homenzinho tens o cabelo da tua mãe e afagou-me os caracóis.
Estivemos um bocado nisto naquilo e mais naqueloutro se o eczema se as crises de fígado se as termas lhes têm feito bem A vida da fábrica agora com os teares de ferro como passam todos.
Foram todos nomeados um a um irmãos sobrinhos cunhadas e restante família e também sobre qual será o meu próximo prémio se passar na admissão como agora ganhei esta viagem de comboio por passar para a quarta.
Ganha um relógio de pulso Então se é um relógio compra-lhe um Nivada são tão bons como os Cortébert e mais baratos sentenciou o padrinho E eu queria muito mais uma pressão de ar mas isso logo se via pois na cabeça só via as mulheres a lavar os vidros no prédio em frente e as outras aqui nas escadas falando à estica e sem saber para que é que elas servem vestidas de igual umas a limpar outras à conversa pela farda polícias também não eram nem bombeiras como julguei mal o porteiro.
Os bombeiros precisam carregar com mangueiras de lona pesadas e abrir as portas a machado o fogo quando pega a sério a arder é coisa para homem carregar às costas julgo eu que nunca vi um fogo lembro-me é de ouvir contar de fogos o fogo na Corga quando o povo acordou em alarido com o chavascal das maçarocas de fioco e mescla geral a saltar feitas numas balas de fogo e o ferro das máquinas a guinchar retorcido com a calorina Contaram-me não é do meu tempo mas agora brincava quase todos os dias nessa fábrica ardida esventrada e sem telhado O esqueleto das paredes grossas de pé a fazerem sombra à forja do Ferrugem num dos cantos mais abrigado das chuvas.
Na casa de banho o autoclismo tinha um berloque de loiça na ponta de uma corrente e lavadas outra vez as mãos fomos jantar para comer com garfo e faca numa sala.
A servir-nos apareceu uma mulher vestida de igual e então soube que mulher fardada de preto avental e touca ponto em branco serve para servir.
Salvo seja.
E então também soube que no dia seguinte iria ver o estádio universitário e ao jardim zoológico dar uma moeda ao elefante para ele tocar o sino Ao castelo de S. Jorge aos Jerónimos à Gulbenkian e se ainda sobrar tempo seguimos pelo estádio nacional e parque de Monsanto e no outro depois da missa aos hidroaviões não sei onde não sei se disseram ao mar se disseram ao rio ou onde o rio é o mar da Palha até à estação a horas do comboio para casa Nada soube sobre a Feira Popular que eu sabia que havia e apeteceu-me perguntar mas não perguntei porque tive vergonha.
A Palhavã não vamos porque aí não tens nada para aprender disse o padrinho adivinhando a pergunta que eu não fizera.
Anda ali à varanda a ver Lisboa disse mas foi ela que bem me lembro deu-me a mão pediu licença para nos levantarmos da mesa fui contando as tábuas do soalho no corredor e ainda hoje sou capaz de dizer como era o tapete avermelhado com ramagens junto a um cadeirão de madeira perto da varanda escancarada da sala por onde entrava o barulho vindo da rua.
Encostada ao parapeito perguntou-me se naquela estação onde o comboio pára e espera para cruzar com o outro ainda aparecem umas mulheres a vender água e bilha a dez tostões Acenei que sim e meio zonzo respondi Barca da Amieira madrinha.
A luz do dia desaparecia por detrás dos contornos dos telhados acendiam-se luzes nas janelas distinguia-se na nossa frente um parque relvado com canteiros de flores iluminados e lá mais ao longe como na procissão das velas os carros de faróis acesos desciam uma avenida muito larga.
Na minha frente nove foguetes de néon explodiam derramando a vermelho vivo pelo céu o mistério desvendado do edifício no outro lado da rua : hotel ritz.
Por ali ficámos a olhar com o olhar a denunciar dizes tu.
E sem ser preciso via-se pelo abraço ela disse (não por dizer) também gosto muito de ti.
António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com
OPINIÃO
Exames a mata-cavalos
As aulas acabavam cedo: princípios de Junho, livros devolvidos às estantes, cadernos diários arrumadas nas gavetas, notas na pauta e ala de férias grandes. Naquela época tudo era em ‘grande’: as férias de Verão arrastavam-se por quase quatro meses! Para aqueles que iam ser postos à prova no ‘grande’ ciclo dos exames, a maratona non stop de provas escritas e orais prolongava-se, em regra, até finais de Julho. E no 7º ano (equivalente, grosso modo, ao actual 12º ano) ainda poderia haver uma 2ª época, em Setembro, para concluir o curso complementar dos liceus, ao qual se seguiam os exames de aptidão à universidade. Um aluno que nunca tenha reprovado ao entrar no ensino superior levava no seu curriculum vitae escolar 44 exames! Arcílio com 10 anos de idade realizou três exames, o da 4ª classe e os dois de admissão, ao liceu (em Lisboa) e à escola técnica (em Vila Franca de Xira). Com 12 anos, no fim do 1º ciclo dos liceus, fez mais 5 exames escritos e 4 orais (o Desenho dispensava a palavra). No 5º ano foi um ‘grande’ calvário: 9 exames escritos e 4 orais, na secção de Letras e outros tantos na secção de Ciências. Finalmente, para se concluir a alínea g) do liceu havia que passar nos exames de 5 disciplinas (tinha dispensado a OPAN, com muita água benta de um professor adverso ao regime). O suplício concluía-se com as três provas do exame de admissão à universidade.
Naturalmente, começou radiante o ano lectivo, mas estourado; sentia-se como um personagem do filme, acabado de estrear, de Sydney Pollack (1969) “Os cavalos também se abatem”. Por isso, o 1º ano de faculdade foi levado em ritmo pausado, sem grande empenho no estudo nem grande preocupação com as notas. O ano ia-se fazendo (“curtia-se”, seria o termo agora utilizado) naquele bonançoso mar de novidades e sem praxes: ao findar o liceu, era dos mais velhos, num mundo só de rapazes, mas no ISCSPU (o U cai com a democracia), ali na Junqueira paredes meias com o Hospital do Ultramar, não passava de um caloiro, o mais novo da turma, entre gente adulta, alguns já empregados, casados e com filhos. Mas o melhor de tudo eram os jardins do Palácio Burnay, as “miúdas” e o convívio na Associação de Estudantes onde a rapaziada de barba à Che discutia assuntos até aí tabu (sexo e política).
Mas o Arcílio, que julgava ter entrado na maioridade académica, conheceu na universidade uma outra faceta da avaliação formal, ainda mais pesada e desgastante: um exame escrito e um oral por semana, numa época que começava ainda em Maio e ia até fins de Julho, num sobrecarregado plano de estudos, com mais de 10 cadeiras anuais, e onde não havia dispensas da oral. Ao acabar o “bacharelato, Arcílio tinha no seu CV mais de 100 exames! O PREC, do tumulto social das ruas, trouxe-lhe finalmente a paz académica: os trabalhos de grupo colocaram os exames no armário da história pedagógica.
Por ter passado por esta riquíssima experiência de ‘saber-fazer’ (exames) na primária, no liceu e na universidade, Arcílio teria hoje direito a acreditação de competências, comprovada, naturalmente, com processo exclusivo em
portefólio. E assim, findo o curso, merecia, para além do certificado oficial, um «suplemento ao diploma» em Docimologia.
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