Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº101    Julho 2006

Entrevista

LUÍS FILIPE BORGES

A revolta dos pastéis de nata

Há mais de um ano no ar, «A Revolta dos Pastéis de Nata» caminha, lá para o Outono, para a quarta fornada nas noites de quinta-feira no canal 2 da RTP. O anfitrião do programa-revelação da TV portuguesa, Luís Filipe Borges, conta ao Ensino Magazine o seu percurso profissional e de vida, desde o dia, com 17 anos, em que abandonou a sua terra natal, de 70 mil habitantes e 90 mil cabeças de gado.

O Luís Filipe Borges define-se como um «tímido» e um «solitário». Escrever e fazer televisão foram duas formas que encontrou para superar essas características?

Até vir para Lisboa, aos 17 anos, fui o que se pode chamar o menino da mamã. Muito caseiro, muito pacato. Não fui precoce em nada. Quando saí debaixo das saias da minha progenitora foi uma espécie de grito do Ipiranga: «sou livre!». Fazer televisão e escrever são uma espécie de catarse. Com esta terapia nem imaginam o dinheiro que eu poupo em psicólogos...

Comunicar é, porventura, a grande arma da civilização actual. Sente que é detentor de um poder de enormes proporções?

Acima de tudo tenho o privilégio de fazer aquilo que gosto. Muitas vezes nem tenho a sensação que estou a trabalhar. O meu avó paterno, que era agricultor, disse um dia uma frase que jamais esquecerei: «arranja uma coisa que gostes de fazer e nunca mais trabalhes na vida». 

Para além disso, sinto uma enorme vontade de comunicar e quero muito demonstrar isso, quer seja para plateias visíveis, como é o caso no pequeno ecrã, ou para plateias invisíveis, como acontece nos livros. As palavras são as armas dos tímidos e dos solitários e o feed-back que recebes é um sinal que estás a ser amado ou odiado.

A vertigem do poder existe em política. No mundo do espectáculo não se corre o risco de ser tolhido pela vertigem da fama?

É preciso relativizar os elogios e as críticas, mas até ao momento nunca cedi a essa tentação. O facto de eu só ter passado a ser conhecido aos 27 anos também ajudou. Mas devo prestar uma homenagem às pessoas que me têm ajudado no percurso profissional que estou a construir, com especial destaque para o actual director de informação do Rádio Clube, Luis Osório, o meu mestre. É com ele que começo a trabalhar e ainda hoje aprendo diariamente com os seus ensinamentos. Foi o Luís que me passou a seguinte mensagem: «o primeiro programa tem de ser muito bom, o segundo tem de ser melhor».

Imagino que o mediatismo lhe trouxe novos e antigos amigos para as suas proximidades... 

O facto de eu me ter tornado uma figura pública aproximou de mim, amigos e amigas, muitos deles de conveniência e alguns deles que eu já não via há anos. Mas os verdadeiros amigos permanecem, independentemente de momentos de maior ou menor projecção mediática. No fundo, é uma experiência antropológica interessante e que ajuda a compreender melhor o mundo que nos rodeia.

Lembra-se do dia em que recebeu um telefonema que mudou a sua vida?

Perfeitamente. Eu estava profissionalmente muito bem a escrever o «Sit Down Comedy» no jornal «A Capital», quando recebi um telefonema de um director da RTP2, o Bruno Santos. Propôs-me um projecto, mas alertou-me que as possibilidades de este vingar seriam mínimas. Afinal, o tempo não lhe deu razão.

Como surge o nome «A Revolta dos Pastéis de Nata»?

Era preciso inovar e dar um toque de irreverência ao projecto. Poucos saberão que «O Segredo da Alheira» esteve quase para ser o título do programa, mas eu tive de explicar aos produtores que tal escolha não seria muito feliz. A preocupação era ter um título genuinamente português e creio que conseguimos isso com os «Pastéis de Nata» que são um símbolo nacional, adicionámos ainda o termo «Revolta» porque se achou que era dinâmico. Confesso que demorei a habituar-me ao nome, mas agora não consigo passar sem ele...

Não seria mais benéfico para o programa em termos de audiências se fosse transferido para outro canal e noutro horário?

Neste momento, não ter a pressão das audiências é bastante tranquilizador. Estou seguro que na RTP1 ficaríamos a perder. Seríamos «chutados» para o meio da tarde ou antes da hora do almoço. Utilizando uma metáfora futebolística, prefiro ser titular do Sporting de Braga do que ser suplente no Benfica.

A «Revolta» inspira-se nalgum dos late night shows norte-americanos?

É acima de tudo um late show à portuguesa. Confesso que não simpatizo com o David Letterman, é muito arrogante. Gosto mais do Jay Leno, que é o cómico dirigido para o americano médio. Mas as minhas referências são o Connon O’Brien e o Jon Stewart. 

São os seus ídolos?

Herman José foi o único ídolo que tive na vida. Fez-me rir imenso durante a minha adolescência. No outro dia aconteceu-me algo fantástico que é o chamado sonho tornado realidade. Fui jantar ao seu restaurante, «Bastidores», no dia em que ele actuava e qual não foi o meu espanto quando depois do espectáculo, o Herman se dirige à mesa onde eu estava onde jantámos e estivemos à conversa até às 4 da manhã.

A boina é um adereço inseparável. Pode considerar-se uma espécie de fetiche pessoal?

Usar boina não é nenhum fetiche. Para mim é um objecto de estimação. Só isso. Aliás, eu não preciso desse adereço em todos os momentos do meu dia. Talvez muitos não saibam, mas eu uso boina desde os meus 18 anos, o que se tornou uma imagem de marca desde os meus tempos de faculdade. Mas penso por altura do Outono, quando se iniciar a quarta série da «Revolta», estrear um novo programa que terá necessariamente outros moldes e em que admito prescindir da boina.

Já teve algum comentário desagradável por usar esse adereço?

Já ouvi algumas bocas, acusaram-me de ser esquerdista, mas não me preocupo com isso. Venho de uma família que me deu uma educação católica e conservadora. Costumo dizer que tenho a razão à direita e o coração à esquerda. Com o passar dos anos, acredito cada vez mais em Deus e cada vez menos nos homens.

Já demonstrou a sua apreensão por se ter «tornado uma marca». Teme que o seu estado de graça tenha prazo de validade?

A carreira dos criativos é quase sempre efémera. Estou consciente que «A Revolta» é uma onda para surfar, mas sei que mais tarde ou mais cedo a onda vai desfazer-se e chegar à praia – esta é uma analogia bem a propósito porque neste momento estou a aprender a fazer surf. Portugal é um país onde as pessoas rotulam as outras por tudo e por nada e temo que o rótulo que agora me aplicam não descole no futuro, quando eu quiser, por exemplo, escrever um romance. Detestaria ficar enclausurado num gueto criativo, sem espaço de manobra.

A sua aparente pressa tem a ver com o desgaste que a TV exerce numa pessoa?

Não penso fazer carreira na televisão, mas tenho a sensação que o tempo está a esgotar-se. Adorava ir viver um dia para Espanha, gizar o Tratado de Tordesilhas do século XXI e juntar o melhor dos dois mundos, escrever em Português e fazer amor em espanhol.

Nutre admiração por «nuestros hermanos»?

Espanhóis e portugueses são iguais. Só nos falta o orgulho que neles transborda. Continua gravado nos genes dos portugueses uma coisa do género: «pobres, mas honrados». Infelizmente, quem faz carreira no nosso pais, é atacado, por inveja, ciúme, etc. Talvez só José Mourinho, um raro caso de unanimismo nacional, escape a esta voragem de dizer mal do que é bem sucedido.

Escreveu um livro intitulado «Sou Português... e Agora»? O que é ser «tuga» nos dias de hoje?

Ser português hoje é um estado intermédio entre a loucura e a razão. Se por um lado há uma geração que insiste em ser sebastiânica, saudosista e cultivar máximas do Estado Novo, começa a emergir uma nova geração de portugueses activos e empreendedores. A «lavagem» ao cérebro que durou 50 anos, deixou muitas sequelas. A herança conservadora permanece, mas creio que está a perder terreno para os que defendem mais iniciativa e mais ousadia.

As manifestações de patriotismo em torno da selecção nacional, em 2004 e agora em 2006, devem ser entendidas como actos isolados?

Aparentemente só tiramos a bandeira do armário e entoamos «A Portuguesa» quando joga a selecção. Mas eu não critico o futebol. Aliás, penso até que o futebol une todo o país, excepto Pacheco Pereira. Devia ser assim para o futebol e para tantas outras actividades, como por exemplo, o cinema. 

Não acredita nas propriedades do futebol para minorar os problemas nacionais?

O futebol pode ajudar a resolver algumas deficiências conjunturais da nação e pode passar uma mensagem quase cinematográfica: «se acreditarmos, é possível vencer».

O cinema está presente em muito da sua vida. É uma eterna paixão?

Sem dúvida. Fujo imensas vezes para uma sala de cinema – Curiosamente, ou talvez não, esta entrevista até está a ser realizada ao lado de um dos principais cinemas de Lisboa, num restaurante chamado «Movies» (Filmes).

Quando eu era adolescente, na minha terra de 70 mil habitantes e 90 mil cabeças de gado, a 1500 quilómetros do continente, o cinema era uma forma de viajar, pese embora existisse em Angra do Heroísmo apenas uma sala que estava sempre esgotada. Ainda hoje quando vou de férias para a minha ilha, corro para o clube de vídeo e alugo quatro filmes de uma assentada. Chego a ver 20 por semana.

Seguiu o curso de Direito por influência familiar?

O meu pai não seguiu Direito porque não teve recursos financeiros para tal, mas confesso que só senti a pressão da família quando o curso estava a meio. O meu sonho era ser actor. Eu queria ir para o conservatório, mas os meus pais opuseram-se. Mas, ao fim e ao cabo, não me arrependo de ter tirado Direito.

Ficou desiludido com o curso por ser mais teórico do que prático?

Devo confessar que foi por influência de uma colega de curso, pela qual me apaixonei, que decidi concluir a licenciatura. Mas houve partes que me decepcionaram. Aos 18 anos pensava que estava a estudar para um dia ser um daqueles advogados da série americana «As Teias da Lei», mas quando descobri que em Portugal não há o sistema de jurados foi a desilusão completa.

Os jovens não têm a noção da sua vocação e do que querem seguir?

Os jovem com 18 anos não estão devidamente informados sobre os cursos a que se candidatam e depois deparam-se com matérias muito teóricas, mas ao mesmo tempo abrangentes.

Isso tem o seu lado positivo....

É verdade. Quando me colocam um contrato à frente é que avalio os ensinamentos retirados do curso. O curso foi uma escola de vida e amadureceu-me enquanto pessoa. Deu-me preciosas lições de anti-ingenuidade. A competição em Direito é desenfreada, o que me causou um grande choque. Até apontamentos me roubaram...

Curioso, curioso, é que licenciei-me em Direito e a única vez que fui a tribunal na vida foi como arguido por abuso de liberdade de imprensa num artigo que escrevi num jornal dos Açores. Um professor da Faculdade de Direito mais salazarento quando soube, tratou-me quase como um criminoso.

Alguns comportamentos dos jovens têm sido muito criticados. Pensa que esta geração tem valores sólidos?

Tive a sorte de os meus pais serem ambos professores primários. Esse facto ajudou a consolidar os valores e os ensinamentos de uma família tipicamente açoriana e conservadora. Quanto aos jovens de hoje, vejo-os muito dispersos e mal educados. Perfilho a opinião da minha mãe que defende que a culpa vai inteirinha para os pais que mimam os meninos com tudo aquilo que estes pedem. Discordo da generalização do conceito de «geração rasca», mas a existir acho que é mais nos pais do que nos filhos. Tudo se permite: e é inadmissível ver miúdos a beber copos com 13 anos a altas horas da madrugada nos bares e discotecas.

A cultura instalada dificulta um bom desempenho nos bancos da escola?

Eu acho que o facto de estarmos a formar diplomados para o desemprego é também responsabilidade dos encarregados de educação. É verdade que temos muitos cursos de palha e que muitos estudantes «empinam» matérias sem a mínima utilidade. Infelizmente, vivemos muito de aparências e frequentar um curso de Direito, Economia ou Relações Internacionais é um sinónimo de status.

A ministra da Educação tem sofrido fortes críticas, nomeadamente por parte dos sindicatos dos professores. Pensa que, por exemplo, a avaliação dos docentes pelos pais é uma medida sensata?

É absolutamente ridículo e um convite ao deboche total. Pelas demonstrações de falta de respeito que estamos a assistir, creio que mais tarde ou mais cedo devia-se voltar a permitir que os professores dessem bofetadas aos alunos mal comportados. Há muitos que estão a precisar de um correctivo exemplar. Pese embora discordar das medidas de âmbito educativo, não queria deixar de dar uma palavra de apreço ao Governo de uma forma geral e em especial para o Primeiro-Ministro. Acredito que José Sócrates vai deixar uma marca e que o seu Executivo tem condições para ser o melhor na História do Portugal democrático.

Portugal falha sucessivamente e há décadas em dois pilares fundamentais da sociedade: Justiça e Educação. A quem devem ser imputadas responsabilidades?

O estado da Justiça e da Educação revela um mal latente na civilização portuguesa, 31 anos depois da revolução de Abril. O caso Casa Pia é paradigmático: um processo sem fim à vista, onde pessoas inocentes já viram as suas vidas destroçadas. No fundo, a sociedade está a dar lições de leviandade e a transmitir o sinal que é possível passar impune. Eu estive na Faculdade de Direito de Lisboa, de onde saem a maioria dos políticos e advogados deste país, e sem ser catastrofista não auguro nada de bom para o futuro de Portugal. Falta carácter à maioria das pessoas que tem nas mãos decisões demasiado importantes para o futuro de um colectivo.

Nuno Dias da Silva
(texto e foto)

 


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