Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº95    Janeiro 2006

Opinião

CRÓNICA

Cantigas da Rua

Segue-se um programa de música de dança.

In A Invenção do Amor
Daniel Filipe



Há ocasiões - umas mais que outras - em que a vida nos parece mais de um azul estúpido, por acção de quem nos mete os dedos nos olhos, fingindo que apenas nos quer limpar a remela da nossa momentânea desatenção.

Pode assobiar-se para o ar, fingindo que o assunto não nos diz respeito e também pode o som do vento ser música para os ouvidos, mas na verdade estas são notas falsas. Haverá mesmo quem diga que tudo isto não passa de cantigas oh Rosa. Não será por isso que deixarei de dar testemunho indignado sobre as vozes de sereia que cantam nas ruas por onde passo.

O uso abusivo que o fascismo fez dos símbolos nacionais, designadamente a bandeira e o hino, tornaram-nos impropriamente malquistos aos olhos dos portugueses. Porém, a democracia recuperou-os e, excepção feita a americanice do último europeu de futebol, quer a bandeira, quer o hino nacionais, voltaram de novo ao convívio e ao respeito de todos nós.

Mas há sempre quem queira misturar as coisas com atitudes inverosímeis, como a PT que construiu um anúncio comercial, cujo elemento central é A Portuguesa. É óbvio que se trata aqui de retirar dividendos não do anúncio em si (onde não se chega a apelar “às armas, contra os canhões...”), mas da polémica que tal previsivelmente irá provocar. Por isso termino já o comentário, acrescentando apenas que comparo os autores da graça aos que antes de Abril nos fizeram repelir estes símbolos da nossa identificação nacional.

Estamos contudo em campanha eleitoral para o mais alto cargo de estado português, e quando esta crónica vir a luz do dia já o tema perdeu toda a importância. No entanto, também aqui se dará conta de outros embustes. A propósito de outro hino que Cavaco cantou, deixou cantar e aplaudiu em Grândola.

Aquele que como primeiro-ministro negou direito aos trabalhadores, desdenhou dos valores essenciais de Abril, preferiu o cimento e preteriu as questões sociais, apresentou-se no Alentejo ao som de Grândola Vila Morena, como se comesse bolo-rei e cuspisse gafanhotos, com o descaramento de quem não olha a meios para atingir hediondos fins.

Já não é com papas e bolos que se enganam  os tolos, mas ainda vamos em cantigas!

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

Rendas em atraso

Nas férias grandes e nas outras, os serões eram passados pelas bandas, no clube A Pipa, uma cozinha à telha vã da ti’ Lhanor Patinha arrendada por trinta e cinco mil réis ao mês sem papéis, porque nesse tempo não ainda havia recibos e andávamos todos agarrados às letras. Os mais velhos, os fundadores, esses é que já andavam pelas fábricas, agarrados ao que calha.

O quineta apenas sintonizava em ondas curtas a rádio Luxemburgo e em onda média o rádio clube português, onde passavam a melhor música e apresentavam os melhores locutores. Locutores esses agora ressuscitados em muitos anúncios, na actual frequência modelada.

Era no clube que se realizam os grandes assaltos pelo carnaval, os bailes em Setembro e no fim de ano, os falcatos para entrar pagavam a patente, as acompanhantes não pagavam mas traziam sobremesas caseiras ou caixas de bolos do turismo, as nossas forneciam os salgados e as bebidas eram vendidas num pequeno balcão que tapava um fisgão de acesso ao quintal da proprietária. 

Eram no clube as patuscadas sempre que algum coelho, pombo, galo ou galinha era surripiado, nunca nas proximidades, muito por questões de boa vizinhança e respeito para com as capoeiras dos quintais dos nossos vizinhos. Uma vez até lá foi parar um leitão inteiro coitado, inocentemente e sem ninguém ver o que se estava a passar voou sozinho, da mesa de frios de um casamento até à nossa mesa, aquele chafariz antigo desmontado do largo em frente à Casa dos Ninhos e que agora está montado num sítio que eu cá sei.

Eram no clube as grandes jogatanas à lerpa conforme os dias, ora de ganhar ora de perder e como jogávamos sempre entre amigos, os lucros do vencedor acabavam por reverter também para os vencidos em garrafas de vinho gatão, latas de salsichas tipo cocktail com pacotes de bolachas de água e sal para desenjoar da artificialidade do conduto. No final do mês, as receitas das festas, os lucros da lerpa ou os trocos de um breve peditório iam parar ao fundo do bolso do avental da nossa senhoria.

Por causa do serviço militar obrigatório, o grupo de fundadores que já tinha dado o nome aos dezoito, assentou praça e de um momento para o outro o número de sócios ficou reduzido a menos de meia dúzia, ainda por cima estudantes, isto é, tesos. Assim, a tropa fandanga e o raio da guerra colonial quase reduziram a cinzas a ideia e a manutenção de A Pipa, o investimento inicial e as decorações das paredes com aquelas fotos recortadas do salut les copains e do l’automobile e quase deitavam abaixo a chaminé feita com bidões de anilina, abertos no fundo, encaixados uns nos outros e presos com arames à parede de pedra do clube.

Adiou-se o pagamento da renda até onde foi possível adiar, em vão se apelava para África mas o aerograma da resposta apenas trazia boas palavras e nunca uns cobres de ajuda para a renda. Dez meses de atraso depois, face à eminente ordem de despejo, A Pipa secava. Era urgente encontrar uma solução de financiamento e assim foi.

Quando visitávamos os rivais para uma lerpada, também calhava ir jogar fora, havia um pacto: ao final da noite qualquer que fosse o pecúlio arrecadado por quem ganhasse, pelo menos metade era entregue ao parceiro, amortecia-lhe os prejuízos, caso ele tivesse uma noite não. 

Se, das duas ou três vezes, em que fomos jogar à lerpa para casa dos figadais rivais da vizinhança isso acontecera, bem podíamos agora, por tão justa e nobre causa, arriscar uma noitada de jogo para pagar à ti’ Lhanor.

Metemos no bolso um baralho de cartas espanhol quase novo, daqueles do ovo estrelado, por causa do desenho no ás de oiros. Duas biscas, a de espadas e oiros, tinham marcas que só nós os dois conhecíamos, alternavam também outras marcas pessoais nos ases de paus e de copas e ainda os reis, dos quatro naipes, vinham no ar já nós sabíamos a que mão eles iriam parar.

O resto seria o habitual maço de português suave sem filtro a meias, a licença do isqueiro para impressionar, forrados calma para o bluff, alguma paciência para o desconforto do local, mais aquela velha táctica de nos sentarmos perto, nunca lado a lado mas de tal maneira que, por baixo da mesa, pudéssemos dar um toque de alerta na perna um do outro.

Meia hora, bem puxada, a andar desde a porta do café, outeiro acima depois pelo alcatrão, ainda não havia passeios mas também não passavam muitos carros. Passavam as motoretas barulhentas e as bicicletas sem luz, a chiar de mansinho, com o pessoal que pegava ou largava do segundo turno. 

Seguimos em silêncio como dois cúmplices, apenas como quem vai passear antecipadamente saboreando os cem ou cento e cinquenta escudos que iríamos empachar e que nos deixariam folga, até Agosto para depois em Setembro fazermos um baile com os convidados a pagar e a divida resolvia-se.

Só que enganámo-nos redondamente. Ao fim da noite passava de trezentos paus de lucro e a renda do clube ficou paga até Dezembro desse ano. No baile de Setembro, moídos de remorsos, os financiadores dessa vez não pagaram. 

A Pipa só veio a secar, já no início de setenta, quando começaram a aparecer as cartas e os carros. E as noites, as noites sem cartas, transferiram-se para a Belar.

António Luis Caramona

 

 

 

Meios, imediatos e intermediários

A contradição e a redundância no título são propositadas. A campanha presidencial em curso torna patente essas duas faces, opostas, dos meios de comunicação.

Os meios de comunicação são imediatos pois possibilitam e proporcionam uma comunicação directa entre as personalidades políticas e o povo. As mensagens são directas, imediatas, passam sobre as estruturas partidárias, sobre os representantes dos candidatos nas múltiplas localidades, para chegarem aos seus destinatários. É verdade que nas campanhas de rua, no circo de arruadas, visitas a feiras, almoços e jantares, se procura arranjar um auditório, bem composto, a quem o candidato se possa dirigir no local. Mas isso é apenas um entorno cénico, porque não é esse auditório concreto de dezenas, centenas ou até mesmo alguns milhares de pessoas, o verdadeiro destinatário do discurso ou da mensagem do candidato. O alvo real são as audiências dos meios de comunicação, as centenas de milhares e de milhões de eleitores, que ouvem o candidato, que o vêem directamente. O candidato Manuel Alegre é um exemplo desse imediatismo dos meios de comunicação. Concorre sem o apoio de qualquer partido político, mas graças à rádio e à televisão chega à mente e ao coração de muitos eleitores. Não houvesse esse imediatismo e não teria quaisquer hipóteses de se fazer ouvir. É por isso que hoje vale mais um candidato que passe nos meios de comunicação do que a melhor máquina partidária sem uma figura de proa, apta a adequar-se e a aproveitar-se do imediatismo dos meios de comunicação.

Por outro lado, esses meios são intermediários. Mostrar ou não mostrar um candidato, de que ângulo, sob que perspectiva, quais os momentos seleccionados, são exemplos de que os meios são verdadeiros intermediários da comunicação política (e não só política!). Tal como as cadeias de distribuição no comércio detêm hoje o poder na venda e no sucesso de qualquer produto, desde um livro a um detergente, assim também os meios de comunicação ao mostrarem ou não mostrarem um candidato (e isto é o mais importante, já que ser completamente ignorado é o pior que pode suceder a quem pretende atrair a atenção das pessoas – segundo o mote de que o importante é ser referido, nem que seja para dizer bem!), também os meios de comunicação têm um poder determinante na visibilidade de um político, de qualquer tipo de pessoa dedicada à causa pública, e na forma como aparece.

Sabemos como as grandes superfícies comerciais determinam o comércio. Não é a qualidade do produto o mais importante, mas a sua distribuição e comercialização. O mesmo acontece na política e na cultura, não é o seu conteúdo que determina o seu sucesso, mas a sua apresentação e adequação às audiências.

António Fidalgo

 


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