Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº96    Fevereiro 2006

Entrevista

AGOSTINHO DA SILVA - 100 ANOS: PENSADOR CONTROVERSO E ENIGMÁTICO

Conversas vadias

O centenário do nascimento de Agostinho da Silva, um dos maiores pensadores portugueses, volta a recordar a sua figura controversa e enigmática. Mesmo para os que o conheceram, nem a designação de “filósofo” é consensual. Autor de inúmeros textos, Agostinho da Silva ficou também conhecido pelo seu programa na RTP, Conversas Vadias. As suas ideias estão, no entender de muitos pensadores, à frente do nosso tempo. 

O Ensino Magazine associa-se a esta data, numa edição que também assinala os primeiros oito anos de vida do único jornal dedicado ao ensino e à cultura, editado em Portugal com distribuição gratuita. Aqui ficam os depoimentos de algumas personalidades portuguesas e estrangeiras que com ele conviveram, recolhidas pela jornalista da Lusa, Helena de Sousa Freitas.

LOURENÇO. “Conheci-o e apreciei-o, embora sempre muito intrigado com a sua figura misteriosa, mas foi talvez a pessoa mais extraordinária com que alguma vez me deparei - não era parecido com ninguém, excepto com ele próprio”. As palavras são de Eduardo Lourenço, que esteve com Agostinho da Silva em 1958 no Brasil, onde este se exilara. O encontro deu-se no Estado de Santa Catarina, “onde ele era uma espécie de secretário da Cultura”, acrescentou Eduardo Lourenço, recordando as circunstâncias que conduziram Agostinho da Silva ao exílio voluntário.

“A determinada altura da vida intelectual portuguesa, os funcionários públicos tinham de assinar uma declaração em como não eram comunistas e Agostinho da Silva, embora não o fosse, recusou, por considerar um atentado à sua liberdade ter de o declarar”, recordou Eduardo Lourenço.

Para o ensaísta e filósofo, a obra de Agostinho da Silva “ainda está pouco estudada” e “no fundo, assinala-se o centenário do nascimento de um desconhecido. A sua linha de pensamento é difícil de enquadrar, mas acho que se situa entre Montaigne e Jacques Rousseau”, disse à Lusa Eduardo Lourenço, assinalando que “não se pode dizer que tenha sido um conservador, nem um revolucionário ou um anarquista místico, pois ele era um misto de tudo, um ser muito contraditório”.

“Quando fez aparições televisivas [no programa Conversas Vadias, da RTP 1], o público interrogava-se sobre se estaria diante de um filósofo, um poeta ou um agitador”, recordou ainda o ensaísta.

BAPTISTA. A reflexão de Agostinho da Silva em torno de diversos temas é encarada de forma diferente pelo escritor Baptista-Bastos, que apresenta as suas obras como “livros de clarificação do pensamento filosófico”.

“Ele escreveu sobre quase tudo o que diz respeito à criatividade e à criação humanas numa linguagem descodificada e singela sem ser simplista, e esta é a sua maior grandeza”, destacou.

A rebeldia anti-institucional e o livre pensamento associados a Agostinho da Silva foram também assinalados por Baptista-Bastos, que o recorda como “um homem em permanente busca da claridade e, como tal, contra todo o dogma e toda a ortodoxia”.

Para Baptista-Bastos, o filósofo “representa hoje aquilo que sempre representou quando era da revista Seara Nova - uma grande dose de utopia, de quimera e de esperança nas infinitas possibilidades do Homem”.

Baptista-Bastos, para quem Agostinho da Silva era “um grande museu clássico com um perfume de modernidade”, entende que o seu pensamento se baseia “num a educação libérrima que tem muito a ver com a Antiguidade Clássica - um pouco socrática, um pouco platónica e um pouco racionalista”.

DACOSTA. O seu pensamento visionário foi também enaltecido por Fernando Dacosta, que descreveu Agostinho da Silva como “possuidor de uma grande lucidez, alguém que não dizia uma frase gratuita. Foi um ser que veio de um tempo muito à frente e cuja capacidade de antecipar problemas actuais fascinou uns e desconfortou outros”, reforçou.

“Há 20 anos, disse-me que viríamos a assistir a um fenómeno de globalização, à explosão do desemprego e ao fanatismo religioso”, recordou o escritor, que vê nele “um génio, a figura mais brilhante da segunda metade do século XX”.

Em lugar de tentar enquadramentos ou proximidades para a linha de pensamento de Agostinho da Silva, o escritor Fernando Dacosta prefere lembrá-lo como “o homem que dizia não dar luz aos outros, mas tentar desocultar a luz, a centel ha de divino, que os outros têm em si mesmos”.

Outra frase célebre do pensador confirma esse apreço que nutria pelo ser humano, acerca do qual afirmou:”Toda a nossa vida gira em função do trabalho. ( ...) Um desempregado sente-se um pária e, todavia, ele é gente, a coisa mais extraordinária que se pode ser”.

NABAIS. A veia profética agostiniana não impressiona, todavia, o professor Nuno Nabais, que prefere destacar “o que de mais bonito ele legou, que é uma consciência muito amarga das asfixias que definem a vida comunitária e cultural portuguesa”.

“Na verdade, Agostinho da Silva construiu um conjunto de mitos sobre Portugal e ele próprio - figura maltratada no país - ao tornar a sua amargura em algo positivo confirmou o mito de que os portugueses têm a capacidade de transformar as desgraças em virtudes”.

A verdade é que classificar as reflexões de Agostinho da Silva parece ser tão difícil como definir a sua personalidade.

 

 

 

AGOSTINHO DA SILVA

Espírito livre

O filósofo e pedagogo Agostinho da Silva, de seu nome completo George Agostinho Baptista da Silva, nasceu no Porto a 13 de Fevereiro de 1906 e viveu como um espírito livre, em sintonia com o que preconizava para todos os Homens.

O menino que aprendeu a ler aos quatro anos - e viria a falar 15 língua s e dois dialectos - cresceu para se tornar um “cidadão do mundo”, alguém que considerava desnecessário o bilhete de identidade e outros documentos que vinculam as pessoas a um único território.

Terminou o Curso Geral dos Liceus em 1924 com 20 valores e, quatro anos depois, concluiu a Licenciatura em Letras, também com 20 valores, iniciando o Doutoramento em Filosofia Clássica na Faculdade de Letras do Porto - que terminou em 1930 “com o Maior Louvor”.

Aprovado “com Mérito Absoluto” no concurso para a cadeira de Geografia e História da Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, em 1931, frequentou a Escola Normal Superior em Lisboa, terminando o curso também com a classificação máxima.

Fundador do Centro de Estudos Filológicos, o actual Centro de Linguística da Universidade Clássica de Lisboa, por encargo da Junta Nacional de Educação , foi enviado por esta entidade para estudar História e Literatura na Sorbonne e no Collège de France, em Paris, entre 1931 e 1933.

Ainda em 1933, regressou a Portugal para se tornar professor efectivo dos Liceus, mas, ao ser colocado no Liceu de Aveiro, em 1935, recusou-se a assinar a “Lei Cabral” (declaração que o obrigava a não seguir a ideologia marxista) por esta afectar a liberdade que tanto prezava.

Como ficou no desemprego, começou a dar aulas particulares, tendo sido professor de figuras como o ex-presidente Mário Soares ou o escultor Lagoa Henriques, após o que partiu para Madrid.

Quando voltou a Portugal, em meados dos anos 1930, dedicou-se à publicação dos “Cadernos de Iniciação Cultural”, tendo editado cerca de 120 entre 1937 e 1944.

Os cadernos “O Cristianismo” (1943) e “Doutrina Cristã” (1944) foram mal aceites pelo regime do Estado Novo e pela Igreja e, após acesa controvérsia, Agostinho da Silva acabou por ser preso no Aljube.

Quando foi libertado, exilou-se voluntariamente no Brasil, seguindo depois para o Uruguai e a Argentina, até regressar ao território brasileiro em 1947 , para co-fundar as universidades federais de Paraíba e Santa Catarina e a Universidade de Brasília.

Com nacionalidade brasileira adquirida em 1958, deslocou-se ao Japão, Macau e Timor-Leste, tendo fundado o Instituto de Língua e Cultura Portuguesa (Tóquio), o Centro de Estudos Ruy Cinatti (Macau) e o Centro de Estudos Brasileiros (Díli).

Em 1969, com a instauração de uma ditadura militar no Brasil, voltou para Portugal, onde foi eleito membro da Academia Internacional de Cultura Portuguesa.

Cerca de 14 anos depois foi nomeado Director do Centro de Estudos Latino-Americanos do Instituto de Relações Internacionais (Universidade Técnica de Lisboa) e do Gabinete de Apoio do Instituto de Cultura e Língua Portuguesa, no Ministério da Educação.

Nos seus últimos anos tornou-se muito conhecido do grande público devido às suas intervenções televisivas no programa “Conversas Vadias”, da RTP 1, que sentava milhares de espectadores à frente do televisor.

Quando morreu, em Lisboa, a 3 de Abril de 1994, Agostinho da Silva deixou uma obra vastíssima que inclui textos pedagógicos, ensaios filosóficos, novelas, artigos, poemas, estudos sobre História e cultura e as suas reflexões sobre a religião.

Entre esses volumes contam-se “Sentido Histórico das Civilizações Clássicas”, “A Religião Grega”, “Glosas”, “Sete Cartas a um Jovem Filósofo”, “Diário de Alcestes” e “Moisés e Outras Páginas Bíblicas”.

“Quadras Inéditas”, “Reflexão”, “Uns Poemas de Agostinho”, “Um Fernando Pessoa”, “As Aproximações”, “Educação de Portugal” e “Do Agostinho em Torno do Pessoa” são outros dos títulos da sua autoria.

Deixou ainda textos dispersos por revistas e jornais, como “A Águia”, “ Dyonisos”, “Seara Nova”, “Revista de Portugal”, “Pensamento”, “Espiral”, “Tempo Presente”, “O Tempo e o Modo”, “Cultura Portuguesa”, “Vida Mundial” ou “Notícia”.

Foi igualmente tradutor de autores clássicos e modernos (Sófocles, Platão, Aristófanes, Terêncio, Tácito ou Montaigne) e autor de biografias de Francisco de Assis, Franklin, Miguel Ângelo, Pasteur, Lincoln, Leopardi, Leonardo da Vinci ou Montaigne.

Uma vida preenchida, talvez previsível para alguém que manteve a liberdade como valor cimeiro, afirmando sem problemas numa entrevista que não lia jornais... e que só comprava o Público para ver a banda desenhada do Calvin & Hobbes.

 


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