CRÓNICA
Os bois pelos nomes
Julguei oportuno que em 2006 o melhor seria escrever umas estórias para esta minha crónica mensal. Puxei pela memória e consegui meia dúzia, de momentos vividos com alguma excepcionalidade. Julguei, até ao fatídico dia em que um senhor oficial da GNR me invadiu a casa, via televisão, a dar conta dos cinquenta milhões de euros entrados nos cofres do Estado, provenientes de coimas por infracções ao código de estrada.
Dizia o senhor oficial, não o ministro que é mandante e tem mais coisas em que mentir, não o deputado, que não paga as próprias multas, mas o senhor oficial, que é institucionalmente obediente e corporativamente irrepreensível, que tal não se deve ao desvario dos condutores - o que é verdade - mas à mais sofisticada tecnologia posta à disposição das brigadas, que actuam de forma mais eficaz e atitude pedagógica.
Eu, que ando o dia inteiro na estrada, posso testemunhar-vos alguns aspectos mais comuns das novas tecnologias. Que vejo eu? Pois de novas tecnologias vejo carros descaracterizados estacionados à margem da Lei (paragem de autocarros ou nas bermas das estradas sem sinalização adequada), camuflados entre arbustos ou escondidos entre contentores do lixo e até em locais de deficiente sinalização, o que facilita a infracção mas garante a coima.
Não sei que tipo de aparelhos possuem estas viaturas ao serviço da GNR, sei que os há que já dispensam a presença do elemento humano e captam imagens através dum rasgo na grelha do veículo. Mas a isto, a tudo isto, chama-se caça
à multa.
E digo-o desta maneira, digamos, por antecipação, porque falta ainda referir a segunda componente da novíssima estratégia desta prevenção rodoviária: a pedagogia.
Eis o que se pode ouvir quando se é multado:
Após aqueles salamaleques da continência, a abordagem formal e o preenchimento do auto de contra-ordenação, vem o mais importante:
- Tem dinheiro?
- Não trago esse dinheiro comigo.
- Então fica a carta apreendida, a menos que tenha cheques.
- Também não tenho.
- Nesse caso... e Multibanco?
O condutor fica esclarecido e pedagogicamente informado sobre a génese da operação.
Deixem-se de eufemismos! Pois se fecham maternidades e escolas com o objectivo de fazer dinheiro, que escrúpulos haveriam de ter nesta matéria em que os maus cidadãos abundam e, contudo andam por aí. Impunes!
Lembro-me, a propósito, do filme O Pátio das Cantigas, na cena em que António Silva decide ausentar-se por uns dias com a sua filha (Laura Alves), com o pretexto de se resfolegarem nas águas... do Cartaxo. Aí, o atento Vasco Santana, não se conteve:
- Águas? No Cartaxo? - E como não obteve resposta, concluiu: - Compreendi-te!
João de Sousa Teixeira
PAU DE GIZ
Que esta te encontre
bem
Fosse por bizarria ou meras manigâncias da imaginação no tempo em que a vida era circunspecta os carros eram solenes
E quase todos tinham um petit nom ou para evitar o francesismo uma vez que das línguas que falas o francês não será a melhor o inglês esse sim pudera e o americano digamos então nickname soubesse eu alemão escrevia jetzt por me lembrar do teu namorado a caminho de aprender português lá longe numa chácara de café com sotaque sul americano
Pois nesse tempo as estradas também eram mais estreitas e mais às curvas que aquela estradelha do outro dia quando fomos ao condado de Galway e nalguns carros e carrinhas pregavam-se etiquetas com alcunhas portuguesmente falando deixemo-nos de estrangeirismo digamos só antonomásia sem pretensões e já chega
É disso que trata a presente e como não vou anexar ficheiros enviar pelo gmail das tuas lidas diárias na Gordon House em Barrow St as fotos que te envio seguem por correio normal em pacote reciclado com as últimas Única um recorte do pau de giz que ninguém leu e o tal cd do Camané tardado em achegar
As películas são a preto e branco cada uma leva um post it colado a explicar é importante saberes que se esfumam depressa assim tipo as mensagens passadas aos agentes na missão impossível por isso tem cuidado
Podem sujar-te os dedos com uma coisa amarela que se cola depois ao teclado e reduz a velocidade de escrita googleana
Convém ainda explicar que as marcas dos carros que se viam dantes eram mais ou menos as marcas dos carros que hoje se avistam talvez houvesse mais americanas asiáticas é que nem por sombras havia e as asiáticas agora até são boas
Conheço uma assim tipo espadalhão que por onde passa até faz parar o trânsito
Vamos às fotos do antigamente e para começar tens esta da Ramona um Opel Record à porta do café nesse dia com a lotação esgotada mais três todos a esfumaçar lá dentro os vidros fechados Com a saída do primeiro passageiro e pela baforada negra que também saiu ouviu-se um grito que não ficou na fotografia mas atroou até hoje: fujam fujam a Ramona está a arder! mas aquilo era só fumaça a Ramona não abrasou nem ardeu
Nem tinha autorádio na mão deste aqui com o braço fora da janela e que não se percebe quem é está o rádio portátil que só se anunciava em onda média quando tocado por uma certa aragem como dizia este outro assinalado com uma cruz que Deus já lá tem e assim o guarde sem nós por muitos e bons
Segue-se esta do Volvo Marreco do nosso vizinho um carro desportivo por ser sueco era um carro pouco visto e numa revista francesa de automóveis viam-se marrecos iguais a correr pelas estradas nevadas dos Alpes Marítimos com números colados nas asas
A terceira é do Ora Bolas um pequeno Ford Anglia que os cabos milicianos compravam quando regressavam do ultramar arvorados em furriéis O modelo dividia opiniões pois ao contrário da tua Aixa que levanta o rabo quando lhe fazem festas pelo corpo o Fascinante metia o vidro traseiro para dentro o que causava surpresa e desfeava o conjunto Por ser um modelo original até o Harry Porter fez dele comboio e voador e se gostavas tanto de ter um igual por causa das peripécias aproveita compra aí um com volante à direita ou aproveita antes com melhor proveito as poupanças em pints de Guiness que não têm comparação com os que cá se emborcam ou investe antes num MGA que ficas melhor servida
Olha agora aqui esta a prima do matateu um Mercedes redondo muito usado como carro de praça trabalhador como poucos indestrutível e fiel como um cão Esta versão feminina foi o primeiro carro assim coisa e tal da fábrica pode-se dizer mas não tinha alcunha
O seu habitual condutor sisudo q.b. não dava azo a bagatelas dessas e como sabes de quem falo mais não digo por mor disso sobre a tal carrinha cinzenta
Eis a Tartaruga Branca uma anafada station Taunus doze eme que carregava mercearias às segundas caçava com o dono à quinta e ao domingo e tinha este emblema redondo na grelha do radiador com o desenho da terra
Andou anos a caminho de colégios internos e quando já cansada de tanta mudança se recusou carregar o colchão do aluno mandou-o cumprir o serviço militar pois dei com ele anos mais tarde numa repartição em Luanda atrás de um postigo lendo guias de transporte com a atenção de um notário
Toma esta do Senhor Coda um Skoda Octavia com bancos forrados a plástico nos quais era impossível aos passageiros sentarem-se depois de alguns minutos expostos ao sol ou mesmo manterem-se direitos sem ser a escorregar e aos encontrões nas curvas por falta de apoio nos dois assentos No dele de plástico debaixo dos nossos sentados por cima quero dizer referindo-me ao cu sem qualquer constrangimento só com o desconforto que eram os assentos
Tinha no pára-brisas um defeito de fábrica que deformava imagens em determinada posição quem olhasse para a estrada via uma lomba ou previa um abanão quando o piso era alisado Tal inconveniente desfigurava qualquer carroça num corpulento atrelado puxado por várias comissões de bois encavalitadas umas nas outras
Temos aqui a Ferrari Berlinetta uma carrinha Ford de três lugares acanhados caixa fechada modelo genérico Não cirandava de noite porque na tasca junto ao Relógio o seu proprietário invariavelmente dizia: não tenho luzes e despedia-se à francesa enquanto fosse o dia claro Até hoje ainda está por aclarar se essas apressadas saídas se prendiam com as obrigações conjugais ou serviam para ele se arredar das contas à moda do Porto como era uso no Prejudicado
Havia também da fábrica este pão de forma de caixa aberta uma VW azul escanzelada de chassi empenado comprada em segunda mão ou seria em terceira quarta ou marcha trás não me lembro dos registos dela no registo de propriedade
Dava saltos de corça porque nunca lhe substituíram as molas pasmadas e parava por qualquer coisinha porque a bateria de tanto fandango dançava do sítio
Numa clara alusão às grandes máquinas italianas foi alcunhada de Bugatti Galdéria, Bugatti porque uma mítica marca desportiva e galdéria por razões óbvias do seu fado mal-asado mas gaiteiro
Quando por acção do ácido na fazenda húmida que transportava da ultimação a caixa de chapa começou a apodrecer foi então forrada a aço inoxidável o que lhe valorizou bastante o visual tornando o conjunto inconfundível e resplandecente
Muitos anos depois já os carros traziam de série ar condicionado e essas coisas de agora que só dão chatices quando avariam encontrei-a abandonada no largo de uma igreja os pneus em baixo meio podre qual pastora a guardar um rebanho de cabras que por ali pastava E se o inox sinal que a distinguia da mana Furgoneta da Fonte Santa continuava intacto ao ataque do tempo o resto da chaparia não resistiu muito mais aos dentes das cabras vim depois a saber pelo secretário da junta
Que era também o sacristão naquela paróquia
Para terminar havia este Alfa Kanguru desenhado a tira linhas em papel vegetal amarrotado um carro que nunca existiu
Descapotável bem-parecido e veloz era um dois mais dois lugares pois éramos quatro os farragoulas e dois chegámos até a compadres por tua causa
Volante em madeira polida nele fizemos vários troços cronometrados do cem á hora sempre a mangar
Sem cintos de segurança comodamente sentados nos bancos pensámos nós pelo cheiro que os assentos seriam forrados a pele
Tudo a escape livre porque não havia Brigada
Só não eram ao faz de conta os pinotes que dávamos descendo na broa a avenida da Marreca a caminho da saída do mês de Maria
Esfumadas as fotos os dedos agora amarelos pelo pó do nitrato de prata fica-te Texugo (do meu coração) com esta zombaria
E com o 2cv o gti ou o lupo à disposição se precisares nós por cá todos bem obrigado & doutras vezes assim assim que por cá isto tem dias
E sem mais me vou despedindo da de Dublin a muito custo sem consegui-lo de todo como tu sabes.
António Luis Caramona
paudegiz@gmail.com
OPINIÃO
Leituras sem papel
Há três décadas atrás não havia escrita sem papel. Com caneta, lápis ou esferográfica a maioria das pessoas escrevia à mão sobre papel. Havia quem escrevesse directamente à máquina, mas, num e noutro caso, escrevia-se sempre sobre papel. Hoje escreve-se quase tudo no computador. A escrita à mão ficou reservada para os pequenos apontamentos, para escrever rapidamente um número de telefone, um pequena nota, um post-it; e as máquinas de escrever pura e simplesmente desapareceram, substituídas com enorme vantagem pelos computadores. Sobretudo quando se trata de textos de alguma extensão, mesmo um pequeno artigo de jornal, recorre-se invariavelmente a um computador, de secretária ou, crescentemente a um portátil. Jornalistas, escritores, cientistas, académicos, escrevem em computadores, aliás como a maior parte das pessoas que usam a escrita na sua profissão. As consequências visíveis da escrita sem papel são muitas, mas outras ainda não são visíveis e provavelmente só daqui a alguns anos ou décadas nos daremos conta delas. Há uma porém que vale a pena aqui referir, até porque normalmente contestada, a da leitura sem papel.
Apesar de quase tudo o que se escreve ser em computador, a maior parte do que se lê continua a ser mediado pela impressão no papel. Jornais, revistas e livros ainda levam uma clara vantagem sobre os ecrãs de computadores. E além disso, associado a um computador está normalmente uma impressora. Mesmo o que é para uso pessoal, ou para um circulo mais restrito, como a entrega de um trabalho académico ao professor, um relatório, acaba por ser impresso, agrafado ou encadernado e assim distribuído e difundido. Contudo, as coisas estão a mudar. Cada vez mais se lê on-line, emails, jornais, blogues, e as novas gerações já vêm mais habituadas a ler nos ecrãs de computador. Aliás, a diferença que existia há uns anos entre os televisores e os ecrãs de computadores começam a fundir-se na tecnologia LCD. Pode ser que ainda venha longe o tempo em que as leituras sem papel ultrapassem as leituras no papel, mas a tendência é clara. Mais e mais lemos em suportes digitais o que já escrevemos em suportes digitais.
Desta tendência decorre uma nova forma de distribuição dos produtos da escrita. Talvez nunca se tenha escrito tanto como hoje, até sob a forma de SMS, mas a transmissão dessa escrita é feita por telecomunicação. Também os livros, revistas, jornais tenderão a ser distribuídos on-line e lidos no ecrã, ou então tendo apenas a impressão daquelas partes que se pretende ler de uma forma mais tradicional, para sublinhar, anotar. Sintomático aliás é que nas obras de referência, enciclopédias, dicionários, o suporte digital comece a ultrapassar o suporte do papel.
De tudo isto resulta uma nova relação com a leitura. Teremos alterações à maneira como lemos, aliás, à semelhança das alterações que também estão a ter lugar na forma como ouvimos música ou vemos filmes em suportes digitais.
António Fidalgo
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