Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº102    Agosto 2006

Entrevista

BAPTISTA-BASTOS, JORNALISTA E ESCRITOR

Educação no banco dos réus

Desencantado com o jornalismo e a literatura, Baptista-Bastos afirma que se escreve mal em Portugal, considera Lobo Antunes um «péssimo escritor» e alerta para as «vilanias» praticadas aos estagiários nas redacções. Em entrevista ao «Ensino Magazine», Baptista-Bastos, saneado de vários jornais por motivos políticos, denuncia que «no Portugal do século XXI ainda se perseguem pessoas por questões ideológicas». Questionado sobre «onde estava no 25 de Abril», o popular «BB» revela: «a dormir».

Surpreendeu-o a repercussão que teve o seu programa «Conversas Secretas», emitido durante a década de 90 na SIC e em que perguntava aos seus entrevistados «onde é que você estava no 25 de Abril?»?

Eu fiz a pergunta apenas três vezes. Essa questão posta a alguns dos meus convidados era extremamente importante do ponto de vista moral, ideológico, político e intelectual. E porquê? Porque em certas alturas da vida é preciso saber onde as pessoas estão.

Posteriormente, o Herman José imortalizou esse momento num «boneco» admirável. Nos primeiros tempos as pessoas brincavam comigo na rua sobre essa situação e eu respondia que quando aconteceu o 25 de Abril estava a dormir.

Encaixou com «fair play» esse momento de humor?

O Herman avisou-me antecipadamente que ia fazer esse «sketch». Fui que lhe fiz a primeira entrevista, ainda ninguém sonhava o que ele viria a ser. Actualmente, o País tem de entender que está perante um homem muito culto e com uma sagacidade crítica sem paralelo. 

Está a poupá-lo das críticas que o humorista tem recebido?

O Herman mais não é do que a imagem devolvida do próprio Portugal. Se ele a partir de uma certa altura tornou o seu programa um bocado escabroso, a realidade é que o País está escabroso.

Portugal está à imagem do seu humorista mais representativo?

É um bocado isso. Ele é um homem de grande categoria e um entertainer de mão cheia, mas como somos muito mesquinhos, rancorosos, invejosos e muito apertados de preconceitos, atacam-no de forma desmesurada. Quando ele deixar de fazer programas, os que agora os criticam, sentirão a sua falta.

Falava há pouco de um Portugal mesquinho, 32 anos depois da revolução. Ainda subsistem laivos do salazarismo?

No Portugal do século XXI ainda se perseguem pessoas por questões ideológicas. E não é só à esquerda, também à direita, se esta for recalcitrante. Conheço destacadíssimos elementos do PSD que foram perseguidos ferozmente por dirigentes social-democratas por serem dissidentes ou críticos. A sociedade portuguesa permanece muito crispada. 

Persistem feridas por sarar desse período?

A Igreja portuguesa, salvo raras excepções, ainda não fez a análise dos três séculos de Inquisição e da sua cumplicidade com o fascismo português. A Igreja está a atravessar uma crise acentuadamente perturbadora, que se reflecte nas vocações e na fé, e talvez saísse a ganhar se fizesse a análise critica da sua própria História. Convém não esquecer que a Igreja portuguesa apoiou durante 50 anos o fascismo nacional e depois do 25 de Abril teve forte influência sobre as zonas mais retrógradas da sociedade. Isto é uma amostra do clima de intolerância que se vive em relação ao outro, quando é sabido que as sociedades só existem quando a troca de ideias é feita com liberdade, mas ,sobretudo, com respeito pelo outro. Acho que Portugal precisava de um grande jornal cristão onde estes problemas fossem discutidos. 

As elites têm estado ao nível dos acontecimentos?

Matéria prima temos e de nível mundial: os «nossos» cientistas, arquitectos, pintores, estão equiparados aos melhores do mundo e da Europa. Lamentavelmente vivemos num País que todos os dias nos dá lições de imoralidade. Como é possível que um senhor chamado Mira Amaral receba uma reforma de 3600 contos na moeda antiga por ter trabalhado 6 meses na Caixa Geral de Depósitos? Eu não paro de proclamar a minha indignação por isto. Dir-se-á, mas é a lei, está legal. Mas o acto moral é revoltante e mais revoltante se torna quando o ouvimos dizer na televisão que os portugueses têm de «apertar o cinto».

O que quer dizer é que temos bons valores, o problema é a falta de apoio e de atenção que o Estado dedica?

É inacreditável ver «miúdos» e «miúdas» a desenvolverem investigações absolutamente surpreendentes e com um espírito de missão em autênticos vãos de escada. Espírito esse que falta aos senhores que auferem reformas milionárias. Almeida Garret, em «Viagens Na Minha Terra», publicado em 1845, explicava em 20 linhas quando custa um rico a um país. Portugal merece e precisa de uma sociedade mais justa e equilibrada.

O problema não está então nas elites...

Elas existem, mas também há as elites que são traidoras e que abjuram das suas convicções patrióticas para beneficiar os seus interesses pessoais.

Falta uma reforma transversal das mentalidades para dar a volta ao impasse nacional?

O problema radica na instrução que está viciada. Para começar, não se ensina nada no básico. No passado, as pessoas que saíam da primária estavam muito mais preparadas do que os alunos que saem hoje do secundário. O escritor António Sérgio fartou-se de dizer isso. Possivelmente, nenhum português o conhece. Infelizmente, ninguém lê nada e ninguém lê ninguém. A isto chegámos. O que se vê é a televisão. Mas o mal é generalizado. Os jornais hoje em dia são uma aldrabice pegada. O jornalismo é uma disciplina da literatura, mas escreve-se pessimamente. E os livros também não escapam a esta tendência. A nossa língua, falada e escrita, está a ser reduzida para níveis preocupantes.

Pese embora serem galardoados nacional e internacionalmente, questiona a qualidade dos nossos escritores?

Os prémios não têm nada a ver com a qualidade das pessoas. Não avalio um escritor por ter muitos ou poucos prémios.

António Lobo Antunes foi um dos portugueses mais falados para Prémio Nobel da Literatura. Acha que algum dia pode ganhar?

Lobo Antunes é um péssimo escritor. A sua obra é um harmónio de adjectivos...

E Lídia Jorge?

Foi uma grande escritora. «O Dia dos Prodígios» revelou-se uma admirável surpresa, mas depois passou a repetir-se excessivamente.

E o que tem a dizer sobre o «nobelizado» José Saramago?

Considero-o um importante escritor. Os seus livros aportam mais ideias, reflexões e projectos intelectuais do que a esmagadora maioria dos nossos ensaístas.

Presumo que considere a literatura «light» um fenómeno marginal...

Simplesmente não me debruço sobre esse tipo de literatura. Deixe-me que lhe dê um exemplo: o «Público», que é um dos jornais que compro diariamente, dedicou no seu suplemento literário, «Mil Folhas», 4 ou 5 páginas, ao último livro de um senhor chamado José Rodrigues dos Santos, que é um péssimo jornalista, um péssimo pivot e que, enquanto escritor, não existe. Há um mês faleceu um escritor extraordinário chamado Mário Ventura Henriques, que fez um grande levantamento nacional, e a imprensa ignorou-o por completo. Se calhar existem grupos de pressão e perseguições por motivos de ordem ideológica e estética.

Vislumbra algum escritor nacional com potencial?

Mário Cláudio é, neste momento, o grande escritor português. Ele consegue acrescentar ao nosso conhecimento pessoal, o seu próprio conhecimento, já para não falar da componente da escrita. Pena que muitos dos seus colegas, alguns muito aclamados, vendam gato por lebre: um deles começava um dos seus últimos livros com a seguinte frase: «recuando há 30 anos atrás». Isto não é um escritor, é um escritório. Os leitores portugueses não têm sido nada bem tratados. Mas lamento também que os escritores não tenham leitores críticos. Portugal é uma sociedade acrítica por excelência.

Numa recente entrevista, o sociólogo António Barreto definiu os portugueses como sendo «pequenos, pobres e incultos». Revê-se?

Não tomo Barreto a sério, tenho muito mais respeito pela sua mulher, a historiadora Maria Filomena Mónica. O Alexandre Herculano disse, por outras palavras, o mesmo: «somos um país pequeno e a gente que lá habita não é maior». Todas as pessoas são risíveis, caricaturáveis e ridículas. O Descartes tinha uma frase que definia isto tudo: «eu caminho mascarado». Da mesma forma que todos os portugueses têm um pouco do «Conselheiro Acácio», do «Primo Basílio», de Eça.

A actual crise nacional radica na falta de auto-estima ou é de natureza meramente financeira?

Eça, Antero e o Padre António Vieira, comentaram as crises do país no seu tempo. Eu conheço razoavelmente alguns países do mundo que têm o mesmo problema que nós. Temos tido azar com os governantes que nos calharam em sorte. Os políticos não têm estado, nem por sombras, à altura das capacidades do nosso povo, que é ímpar em termos de adaptação e empenho.

Eu dei aulas durante dois na Universidade Independente, leccionando a cadeira de Língua e Cultura Portuguesas, e dizia aos meus alunos que para vingarem tinham que demonstrar conhecimento, paixão e vontade. Como é que se pode ser jornalista ou escritor se a maioria esmagadora dos que saem das faculdades não sabem que a concordância também pode ser feita com o nome predicativo do sujeito? A maioria das pessoas não aprendeu isto na instrução primária. Eu tive a sorte de ter tido professores admiráveis...

Porque é que a exaltação convicta dos valores nacionais só acontece a espaços, como aconteceu no recente mundial de futebol?

Durante um mês os jornais e as televisões encheram os seus espaços a falar do mundial de futebol. Roçou o obsceno. Lamento que as investigações dos nossos jovens cientistas na luta contra o cancro sejam remetidas para um pé de página. A Universidade de Aveiro é pioneira em inúmeras circunstâncias e até tem uma cadeira onde lá vai o José Duarte explicar o que é o Jazz. Isto já devia ter vindo na primeira página dos jornais, porque é isto que estimula as pessoas.

O futebol é um soporífero para adormecer as massas?

O futebol é uma forma falaciosa de estimular as pessoas. A comunicação social alimenta isso por motivos ideológicos e por preguiça pura. Os «media» dão espaço ao que é acessório, em detrimento do que é essencial. No outro dia fiquei estupefacto quando vi que um jornal de referência dava uma página ao escritor Javier Marias por este ter sido admitido na Real Academia Espanhola. E as pessoas que entram para a Academia em Portugal? Onde estão? É este o estado da nossa imprensa. Se surgir um novo jornal português que seja determinado e reme contra a maré, pode ter a certeza que ganha a aposta.

Os «media» em geral noticiam com o fito da negatividade?

«Bad news, is good news». Acho que há uma falta de estímulo por parte dos «media» que tem contribuído para a letargia da sociedade portuguesa. Temos um jornalismo preguiçoso. Veja os artigos do director do «Público», José Manuel Fernandes, que ilustram na perfeição a máxima: a crónica conta, o artigo explica e o editorial complica…

A excessiva juventude nas nossas redacções está a contribuir para a diminuição da qualidade dos projectos jornalísticos?

Redacções com memória são perigosas para os patrões. Afastar os mais velhos dos jornais foi um projecto ideológico iniciado nos anos 80. São obscenas as vilanias que se fazem hoje aos jornalistas estagiários que passam os dias cheios de medo sobre o que lhes pode acontecer.

A concentração mediática é nociva?

Pode ser, mas também falta imaginação aos jornalistas para se juntarem e fazerem como eu e vários colegas, quando fundámos o jornal «O Ponto» nos anos 80 e que só foi encerrado por motivos políticos. Mas agora começo a reconhecer que as sinergias são algo de sinistro. Se um profissional se incompatibiliza com uma publicação de um grupo com vários títulos, dificilmente arranja trabalho.

«O jornalismo morreu enquanto tal», disse em entrevista ao «Ensino Magazine», Fernando Dacosta. O seu pessimismo chega a este ponto?

Não concordo. Ainda se faz jornalismo, muito mal escrito é verdade, e ainda temos grandes jornalistas: a Alexandra Lucas Coelho é uma das grandes jornalistas europeias. Ter talento em Portugal é perigosíssimo, porque a mediocridade é impante e maioritária. Eu queria também destacar o trabalho realizado pelo «Jornal do Fundão», um dos mais importantes títulos portugueses e onde escreveram os maiores nomes da cultura nacional, que tem uma orientação muita clara: dar notícias. Este é um grande exemplo de como devia ser feito o jornalismo em Portugal.

Os jornais gratuitos vão ser o golpe de misericórdia nas vendas dos jornais tradicionais?

Jornais de borla existem em todo o mundo. Os jornais têm é que ser bons. Porque é que a crise não ataca o «El País», o «La Repubblica» ou o «Guardian»? Estes jornais que referi, dão notícias: o «El País» foi um dos primeiros títulos do mundo a falar das atrocidades em Guantanamo e no Iraque. Todos os dias me irrito com aquilo que leio, porque em Portugal, não se dão notícias, dá-se informação.

Porque é que diz que não é José Sócrates que manda no Governo, mas o poder económico?

O poder económico sempre dominou. A I República caiu exactamente porque o poder económico se rebelou contra as leis do Governo.

Pensa, como alguns analistas, que o Executivo é mais marketing do que substância?

Este Governo de socialista tem muito pouco e está a fazer o que a direita não fez quando estava no poder. Quando afirmam que os socialistas estão a ser determinados, eu acho que se trata de uma coragem de Sísifo. O PS é, neste momento, uma espécie de MDP-CDE do PSD. Não admira que os grandes empresários e os grandes grupos económicos aplaudam tudo o que o Executivo faz. É porque algo não está bem. 

O Governo tem tido a seu favor uma imprensa dócil e sem fazer grandes ondas?

Digamos que tem tido uma imprensa simpática, justamente porque esta encontra-se nas mãos do grande capitalismo. O Governo Sócrates está a trair as expectativas do eleitorado e estranho que isto não seja profundamente escalpelizado nas primeiras páginas dos principais jornais. É um mau sintoma para um país ter uma imprensa indiferente. A imprensa deve ser uma espécie de instituição social e guiar-se por um espírito de missão e combater por causas. Não é isso que se vê.

Compreende a contestação em peso à política da ministra da Educação?

Ela tem que explicar porque é que um casal de professores está distanciado 600 ou 800 quilómetros e se encontra a meio caminho para dormir em motéis, uma ou duas noites. Isto é a destruição do amor e de família. Já para não falar na desestabilização no Ensino. Como é que se quer que uma pessoa vá «fresquinha» dar aulas a meninos depois de ter feito mais de 100 quilómetros? 

Pais a avaliar professores também é outro disparate absoluto. 

O Ministério da Educação é uma das raízes do mal no sector, mas o problema é mais amplo. É do sistema. É ele que provoca a desmotivação dos professores. 

Que quota parte de responsabilidades pode ser atribuída aos sucessivos titulares da pasta da Educação?

Provavelmente, a frio, concluiremos que David Justino e Marçal Grilo, só para dar estes exemplos, fizeram coisas positivas. Eu pergunto é isto: porque motivo é que os que vêm a seguir destroem tudo o que foi feito atrás? Lá fora não se faz isso. Nos países escandinavos, quando a direita vai para o poder, não toca nas conquistas sociais da esquerda. É uma questão de ética, que sobreleva a questão ideológica.

Qual é a receita para erradicar os crónicos maus desempenhos a Português e Matemática?

Os alunos não sabem Matemática porque não sabem Português. São disciplinas nucleares e interdependentes. Aprender Português e Matemática é divertidíssimo. Com turmas de 30 ou 40 alunos é que me parece difícil fazê-lo.

Está de acordo com a redução do número de cursos no Ensino Superior?

É algo de fundamental. Temos cursos que não lembram ao Diabo. Os poderes constituídos devem vigiar os cursos que se ministram nas universidades privadas. O que significa um curso denominado «comunicação social»? Não quer dizer coisa nenhuma. Todos os anos saem, desses cursos, 1500 jovens para o desemprego. Ou então, se conseguem estágios, vão directos para o psiquiatra quando estes acabam.

O processo de Bolonha vai mudar radicalmente a face do Ensino Superior em Portugal?

A declaração de Bolonha é um texto ao qual pode ser aplicado o que Garrett disse sobre a Constituição: «É um documento muito bonito para não ser aplicado». No fundo, é um projecto para um grupo de gente ganhar umas coroas. É uma mentira anunciarem que o emprego vai aumentar com a introdução de Bolonha. O que as universidades precisam é de fomentar a sua relação com o exterior, nomeadamente com as grandes empresas.

Sete por cento do PIB é canalizado para a Educação, mas os resultados tardam em aparecer. Como explica a falta de produtividade?

O dinheiro do Orçamento do Estado canalizado para a Educação representa a maior verba considerando os países da UE. A origem do mal está nos governos. Os políticos portugueses, responsáveis pelo Ensino nos últimos 30 anos, deveriam estar no banco dos réus, acusados de indignidade nacional. Uma população culturalmente apta correria com esta gente a pontapé em três tempos.

Quando refere responsáveis pelo Ensino, refere-se aos sucessivos ministros da Educação?

É preciso ser sério quando se aborda esta matéria. Ministros houve que quiseram fazer, mas foram impedidos, não pelos sindicatos, mas pelos poderes fáticos que mandam muito.

A quem se refere?

Há forças interessadas em manter uma boa parte da população portuguesa inculta, iliterada, logo, mais facilmente manipulável. Basta assistir aos concursos ditos culturais nas televisões, ouvir os fóruns da TSF e da SIC-Noticias, para se constatar o que acabo de dizer. Fico pasmado quando vejo licenciados que não sabem quem foi o primeiro Rei da II Dinastia.

A historiadora Maria Filomena Mónica, atrás referenciada, caracterizou os deputados na nação como sendo «preguiçosos» e «incultos». A democracia representativa está longe de cumprir o seu papel?

Dos 220 deputados que compõem a Assembleia da República, conhecemos no máximo 10. Os restantes pertencem a uma rede de interesses muito vasta e só lá estão para assegurarem a sua reforma. Os deputados são gente que não gosta da gente. Sempre que vou a São Bento assistir a uma sessão no hemiciclo, saio de lá com espasmos no estômago. No poder local a situação não é melhor. Há dirigentes a perpetuarem-se no poder por tempo indefinido. Todos os «dinossauros» políticos são caciques.

Nuno Dias da Silva
(texto e foto)

 


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