Director Fundador: João Ruivo    Director: João Carrega    Publicação Mensal    Ano IX    Nº98    Abril 2006

Opinião

CRÓNICA

A esferográfica

Há um bom par de lustros, era eu um recém responsável pelo balcão albicastrense da Aliança Seguradora, fui convocado para um seminário a ter lugar num hotel de Caldas da Rainha.

Dizia a convocatória que o evento seria nos próximos sexta e sábado e versaria temas da área comportamental. Mais dizia que os participantes viriam de todo o país e, por isso, não seria de estranhar que os colegas não se conhecessem. O traje seria informal.

Dormi no dito hotel de quinta para sexta e às nove em ponto já estava no átrio disponível para a chamada.

A convocatória avisava que “não seria de estranhar que os colegas não se conhecessem” mas a surpresa é que não conhecia absolutamente ninguém. Nem de vista!

- Isto foi mesmo organizado a preceito - pensava eu ali colado ao balcão da recepção. Era no entanto estranho que “eles” se conheciam ou pelo menos conversavam entre si. Estariam a fingir, a armar ao fino? Ou era eu, pobre elemento da província a quem os colegas de Lisboa e Porto não passavam cartão?

Após um certo burburinho, por volta das nove horas, todos se encaminharam para a sala de reunião, tendo-me assim misturado com aqueles cerca de trinta indivíduos, que então passaram a cumprimentar-me, sorrindo amavelmente.

Dentro da sala, todos procuramos assento à mesa que era disposta em “U”.

Confortavelmente sentado, solicitei uma pasta e uma esferográfica, troquei dois dedos de conversa de circunstância e comecei e reparar por baixo da mesa à minha frente que alguns “colegas” calçavam sapatilhas.

- Informal, mas não tanto, caramba! - Ajuizava de forma crítica.

Foi por esta altura que um sujeito, talvez o director, por sinal bastante simpático, me abordou, inclinando-se sobre o meu lugar e perguntou:

- O colega, desculpe, veio de onde?

- De Castelo Branco. - Respondi prontamente.

- Então deve estar enganado. Isto é uma reunião do pessoal das Águas do Arieiro.

Pedi desculpa de forma atabalhoada, devo ter corado como um tomate e saí da sala com tanta vergonha, que se tivesse ali um buraco ter-me-ia afundado e desaparecido, tal o vexame.

Cá fora, conferi a convocatória: sala dois às 9.30 h.

Pedi então licença para entrar na sala seguinte, onde já funcionava o “meu” seminário. Voltei de novo às desculpas, mas desta vez já mais aliviado. Afinal eram quase todos conhecidos!

O monitor era um tipo divertido e deu início aos trabalhos com uma prelecção sobre...o trabalho. Dizia ele que era preciso aprendermos a trabalhar para não ter que trabalhar. Para criar ambiente pediu-nos que contássemos de viva voz uma história que tivéssemos vivido e que achássemos divertida.

Naquela altura do campeonato já eu achava divertida a minha história de há meia hora atrás e foi essa que contei.

No fim, os meus colegas riram a bandeiras despregadas à custa da minha peripécia e reparei que ainda tinha apertado na mão a esferográfica das Águas do Vimeiro, que me esqueci de devolver, e rematei:

- Se não acreditam, tenho aqui a prova. E mostrei-lhe a esferográfica.

João de Sousa Teixeira

 

 

 

PAU DE GIZ

... foi no tempo das melâncias

... quando chegou a nossa casa o primeiro carro e partiu o burro com a albarda e os arreios. Trocou-se a simpatia do animal a zurrar à janela do palheiro e a regular produção de estrume por nódoas de óleo no chão da garagem construída de propósito para o recolher Com sua chegada mudou definitivamente a arquitectura original da casa alargou-se o portão cortou-se a oliveira que estava na passagem em frente à porta da cozinha e a cozinha saltou para o primeiro andar da nova construção.

O CL-99-91 era um Ford Cortina de duas portas motor mil e cem banco corrido à frente caixa de quatro velocidades ao volante e ainda uma enorme bagageira O tamanho da bagageira onde cabiam à larga dúzia e meia de garrafões de vidro cheios com água da Tavila foi aliás decisivo na opção de compra versus o Renault Majo um quatro portas que nem por sombras metia tanta água Por causa da cor pouco comum baptizaram-no de Lagarta Verde ou só Lagarta para abreviar uma clara alusão às devoradoras de folhas de couve.

Tinha um irmão mais nobre em versão GT e em Inglaterra um prestigiado construtor de carros desportivos tendo por base a mesma carroçaria lançou uma versão equipada com motor Lotus que fez furor nos circuitos internacionais onde coleccionava coroas de louros umas atrás das outras Por causa desse primo especial de corrida e porque os olhos também se abriram de espanto noutros livros já não eram só os Emílio Salgari e os Júlio Verne requisitados às quintas feira na biblioteca itinerante da Gulbenkian a Lagarta passou a ser conhecida também por The Green Cabbage Worm.

Nesse tempo os carros eram poucos e pretos solenes e sisudos transatlânticos a buzinar Outeiro abaixo ou carrinhas de caixa aberta carregadas de fazenda a patinar no lamaçal da Corga.

A Lagarta possuía o carisma das grandes máquinas de produção selecta ainda que fosse um banal modelo de uma marca generalista Tinha o que tinha era como era apenas porque começou por transportar muitos sonhos velhos de anos e acabou a desbravar muitos caminhos novos de vida como acontecia sempre ao primeiro carro de qualquer família com filhos em idade de serem postos a estudar.

Não era pois pelo preço de compra em 64 por quase outros tantos contos de réis pagos metade a pronto a outra metade em doze prestações mensais por letras avalizadas Muito menos pelo extra da chófagem uma extravagância para a época a qual ligada desembaciava os vidros num fósforo mas provocava- me enjoos de morte mesmo depois de já ter lançado fora as tripas todas Mas porque nos transportou carregado de tarecos & tralhas roupas mantas loiças batatas e a bilha do azeite até uma garrafa de treze quilos de gás Cidla transportou para o grande sonho realizado os dois filhos a estudar em Coimbra. 

Coimbra era então uma lonjura entre Cernache e Figueiró a estrada era de macadame do Avelar para a frente era o fim do mundo No meu mapa escapava Penela com a igreja branca dentro das muralhas e por causa do Senhor Padre que todos os anos oferecia uma saca de castanhas à família enquanto houve relações com aquela fábrica de má memória no Avelar.

Sabia vagamente ao que ia mas não sabia o que iria encontrar numa cidade de doutores e de carros eléctricos num liceu longe de casa numa casa perto da universidade e onde ao relógio da torre chamavam Cabra.

Lembro-me que esse Desconhecido me secou a boca durante toda a viagem e ainda hoje já com calos no tal sítio e se dou de caras com algo Desconhecido me sabe ainda como daquela vez a boca a palha.

O primeiro furo da Lagarta aconteceu-lhe na subida da Monheca na viagem inaugural ao Ladoeiro com três arrobas de melancias no porão e como o pneu sobressalente ficava no fundo da bagageira foi necessário descarregar as melancias na berma Alinhadas na valeta uma verdadeira lagarta verde com patas e tudo pois foram travadas com pedras não fossem elas porem-se a andar dali para fora pela barreira abaixo.

Tinha uma pequena amolgadela à frente no lado do condutor de ter rebentado o garrafão de vinho que fervia na garagem e a rolha bem amarrada não deixou libertar os vapores da fermentação A mistela que aquilo não era vinho fez explodir o vasilhame e arranhou-lhe para sempre a pintura.

Heróica a Lagarta Verde subiu sem correntes nos seus finos pneus radiais de banda branca à Serra da Estrela pela estrada particular da Eléctrica da Senhora do Desterro quando um nevão impediu a estrada no Sabugueiro Vínhamos de Nelas pagaram-se quinze tostões de portagem e ignoraram-se os conselhos do funcionário mal encarado para voltar para trás.

Foi uma viagem longa e branca lavada a nevoeiro A tracção traseira não ajudou na subida e na descida os ziguezagues descontrolados foram uma galhofa pegada por tão assanhada contradança da Lagarta no alcatrão gelado No final da viagem por força das baforadas da demoníaca chófagem apontada para os pés e do atrito da sola de ceilão do sapato no tapete aquele par de sapatos novos do meu Pai estreados no baptizado ficou reduzido a um inútil exemplar.

Foi na Lagarta que aprendi a conduzir antes de ter idade para tirar a carta e comecei a ganhar asas para ir às festas com a parceirada ao cinema às quintas feiras na cidade a andar por aí a vadiar em amores e descobertas.

Foi na Lagarta que descobri as ruas de Lisboa daquela vez que em que fui esperar a minha Irmã à doca de Alcântara e até hoje nunca mais me perdi por lá salvo seja De Lisboa conhecia Santa Apolónia e pouco mais sabia onde o Tejo desaguava e o que o Funchal atracava vindo do lado do mar.

Acabava-se o tempo da Outra Senhora e ainda a fiel Lagarta transportava para aquele esconderijo secreto num pinhal na Silveirinha as placas de sinalização das estradas onde nos parecia ser um uma injustiça autoridades limitarem a 50 km/h a velocidade de circulação.

Onze anos depois e depois de histórias mil e mil obrigações foi metido à troca e rebentaram com ele Primeiro foi o motor que nunca tinha dado problemas um acidente acabou por fazer o resto Desmazelado foi desfalecendo num monte de sucata nas traseiras de uma oficina.

Até ser comprimido por uma traquitana medonha e barulhenta, cheia de unto montada num camião de matrícula espanhola A caminho de uma fundição onde terá morrido a cumprir a sua última obrigação : ser reciclado E eu ralado por não saber em quê.

António Luis Caramona

 


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